O livro “Cadernos de Cinema – Cinema Novo” traz uma série de debates, ensaios e entrevistas realizados pelos expoentes do Cinema Novo entre 1961 e 1965, se tornando uma antologia inédita dos documentos do período mais intenso e combativo do mais importante movimento do cinema brasileiro. Nos textos, estão presentes todos os grandes nomes do Cinema Novo, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman e Ruy Guerra. Entre os textos selecionados por Sergio Cohn e Daniel Caetano, organizadores do volume, está o “Cinema Novo em discussão”, publicado originalmente na Revista Movimento (UNE), novembro de 1962, e que conta com depoimentos de Ruy Guerra, Marcos Faria, Fernando Campos, Eduardo Coutinho, Miguel Borges, Leon Hirszman e Glauber Rocha, e que reproduzimos a seguir.
[Carlos Diegues] O chamado Cinema Novo chegou a um estágio em que se necessita discuti-lo mais profundamente. Para mim seria importante dois enfoques nesta discussão: 1) A caracterização do Cinema Novo como produção independente. 2) As consequências ou as razões disto no plano da realização. Cinema Novo deve-se caracterizar, hoje, basicamente como aquele cinema que, por ser independente, tanto do ponto de vista industrial como estético ou político, é o único que pode ser realmente um cinema livre. Creio que o Cinema Novo não pode ter regras preestabelecidas, dogmas a priori e imutáveis desde o ponto de vista estético e ideológico.
A única ideologia possível, a que une a todos, é a da emancipação nacional, vista, é lógico, do ponto de vista cultural e mais particularmente do Cinema Novo. Mas esta ideologia, em cada um, poderá ter raízes diferentes e ser entendida das mais diversas formas. Essas é que vão colorir as posições particulares dos diversos cineastas do Cinema Novo. Assim, será um cinema, em tudo, de denúncia: e, como tal, não poderá ser nunca um cinema vendido ao espetáculo comercial (no sentido convencional do termo), embora tenha que ser necessariamente um cinema público, isto é, um cinema popular. Um cinema que se comunique, desmistificando, que comunique denunciando, e por isso mesmo, se comunique transformando. Daí segue-se o debate.
[Ruy Guerra] Dois fatos básicos: Cinema Novo é fenômeno não tanto da feitura mas do público. Cinema Novo só passará a existir na medida em que exista um público para seus filmes; isto já implica então num estado, uma posição crítica em face do público. De início existe que para este público assista a esse Cinema Novo não em termos de chanchada, mas com funções críticas. A função do Cinema Novo é a de, através de seus filmes, dar oportunidade de crítica ao público, emocioná-lo, sem lhe tirar possibilidade de crítica. Este público deve ser atraído por um filme, através do tema que ele expõe. A partir daí, penso que a liberdade de expressão do cineasta deve ser possibilitada por uma produção independente. Independente significa dar possibilidade do cineasta dizer o que quer, da maneira que quiser. Então, evidentemente, não podemos pensar em filmes de grande custo e devemos pensar num cinema de autor, sem direção política, ideológica ou estética, mas a partir de uma opção pessoal de cada um dos cineastas. A partir desta opção ideológica, a linha ideológica ou estética do Cinema Novo aparecerá posteriormente e será passível de analise. A priori acho que não há necessidade de um dirigismo.
O Cinema Novo é uma posição crítica por parte dos cineastas. Não concebo filmes que informem erradamente o público sobre seus grandes problemas, um filme que aborde problemas pequenos, mesmo que seja esteticamente válido. Agora ou no futuro torna-se difícil estabelecer se ele é ou não Cinema Novo, através de sua posição estética. A função do cineasta vai ser definida pela verdade que pretende transmitir.
[Marcos Faria] Concordo com o que disseram Diegues e Ruy. Não se está discutindo aqui o que o Cinema Novo é ou vai ser, e sim aquilo que desejamos que ele seja. Discordo que deva existir uma disponibilidade ideológica, estética ou política do cineasta. O cineasta vai sempre ter uma ideologia estética, política ou filosófica. E o filme é sempre a expressão desta ideologia. É claro que nesta medida que é preciso, é conveniente que o cineasta tenha consciência dessa ideologia estética ou política. Procure fazer-se ouvir dentro de maior consciência, deste pensamento que ele tem. Caso contrário ele fará um filme confuso, do qual ele não tem o domínio completo. E o resultado para nós é o de transformar e não o problema de ser espetacular ou não. Discordo do Diegues e do Ruy, pois cinema espetacular talvez seja o que mais atinja ou transforma o público, por isso que o atinge mais ou tem uma força maior do que o cinema de caráter mais didático. E de certa forma mas racional.
[Fernando Campos] Antes de mais nada quero dizer que estou comprometido com a minha formação, com uma maneira pessoal de pensar. Há uma tendência de situar o Cinema Novo como cinema de autor. E este problema, em relação ao público diante do cinema, é o que realmente importa. Há pouco tempo, numa discussão com Paulo Emilio Sales Gomes, falou-se muito de informação e comunicação e o que eram. A mim me chocou aquela discussão, por me parecer que ela fosse possível há 50 anos atrás. Hoje isso vai ser resolvido na medida em que as ciências positivas encaram este problema de uma maneira racional de situar-se o que é realmente uma comunicação. Falar-se muito de cinema de autor para mim é uma visão subjetiva e irracional. É o estertor de uma cultura individualista que chega ao fim. Por isso me choca que muita gente confunda Cinema Novo com cinema de autor. Eu tenho a impressão que estes grandes problemas tenham que ser levados ao público da maneira mais direta e eficiente possível. Não se deve pensar em cinema de expressão subjetiva de uma individualidade, mas um cinema de representação. Hoje, todo este problema de comunicação e de informação é um problema que já vem sendo situado pelas ciências positivas. Pela semiótica, pela semântica geral, e se sabe como qual é a maneira adequada e exata para se fazer qualquer determinada mensagem seja entendida. Um destes conceitos fundamentais é o da redundância. Se diz hoje que uma comunicação é uma superposição de signos do emissor e signos do receptor. Só é possível haver comunicação na medida em que estes signos coincidem. Se diz então que a informação só pode se realizar na medida em que ela tenha uma redundância. Redundância é tudo aquilo que é comum entre o autor e o público. Se sabe também pela teoria da informação que quanto maior for uma conformação menor é a redundância. E uma informação que não tem uma redundância não se realiza. É preciso não esquecer que existe um público e que este público tem uma cultura cinematográfica boa ou má, e esta cultura de uma certa maneira é uma redundância. E o problema de alcançar este público é o de dizer não de uma maneira emotiva, uma maneira subjetiva, mas de saber respeitar este público, de saber até que ponto se pode colocar uma informação que possa atingir e dizer o que ela quer.
[Eduardo Coutinho] Em relação ao problema inicial, colocando pelo pessoal todo, eu estou de acordo. Mas depois apareceram problemas paralelos quanto a problemas de autor e produção. Se entendermos a teoria da autoria, não na interpretação alienada dos críticos franceses do Cahiers, é pacífico que todo filme bom é cinema de autor. Cinema de autor pode ser feito por um homem como por uma equipe. Pode ser didático e pode ser romântico. Mas não existe nada que possa caracterizar cinema de autor como a intromissão de subjetividades na comunicação com a plateia. Quanto à produção, como não existe ainda o esquema de grandes indústrias no cinema brasileiro, eu acho que é possível fazer cinema de autor dentro de produtoras médias, que existam ou venham a se formar no Brasil. O problema da produção é secundário na caracterização do cinema de autor brasileiro.
[Miguel Borges] A característica principal do Cinema Novo é clara. Qualquer cinema é novo, se tiver uma consciência clara de que os problemas humanos neste momento são resultados de a sociedade estar baseada na exploração do homem pelo homem. E no choque dos dois tipos de sociedade: a que procura eliminar este tipo de exploração e a que está baseada sobre ela. Não quer dizer isto que o Cinema Novo deva ser sectário, porque a solução para este problema talvez não seja matéria de cinema, mas é indispensável que reflita esta consciência. Ele pode mas não precisar alardear, mas é necessário que esta consciência exista no fundo do filme. Para que este cinema possa surgir, é preciso que exista determinado tipo de produção, pois é muito difícil que exista uma indústria ou um grupo diretamente ligado à classe dominante que aceite financiar um tipo de cinema que vise denunciar isto. Pode surgir um filme produzido nestas condições, mas não haverá nunca possibilidade de se criar uma prática de Cinema Novo.
[Leon Hirszman] O que a gente tem de fazer é não cair em problemas paralelos. Acho muito importante as coisas tocadas. Mas o importante mesmo é o fundo disto tudo. Eliminamos os problemas paralelos, coloco os fundamentais. Coisas que Miguel começou a colocar é a de que a obra de arte em toda a sua história serviu ou a classe dirigentes ou à dirigida. Não há outra opção. Então o problema se coloca violentamente só nestes termos. O filme e o que define este ou outro movimento deve se definir antes de mais nada nestes termos, se é que ele quer se definir: Se ele está com a burguesia ou com a classe operária. No nosso caso mais particular, se ele está com o imperialismo e seus aliados da burguesia. Ou se está com a classe operária e seu avanço para o poder. O problema de comunicação por exemplo. Para mim não se trata apenas de ter consciência disto, mas transformar a consciência de quem não a tem. Visar o cinema visando a eficácia de levar ao poder a classe pela qual lutamos. Este é o problema. Os outros, os problemas paralelos, eu tiro desta posição.
[Glauber Rocha] Para simplificar, faço minhas palavras do Ruy Guerra e do Carlos Diegues. Acrescento que, em primeiro lugar, de agora em diante o Cinema Novo não é uma particularidade do Brasil, mas um movimento que vem desde a Índia, passando pela Europa até o Brasil, Cuba, Argentina. O Cinema Novo significa a libertação da mecânica industrial do cinema. Daí se faz o que se chama cinema de autor. O cinema de autor é dentro da história dos últimos dez anos do cinema ou a partir de 1945 esta atitude inconformista diante da máquina industrial. Concordo que no Brasil o cineasta esteja empenhado em uma perspectiva histórica e política e isto é inevitável para qualquer homem da nova geração brasileira que pensa lucidamente.
Do ponto de vista individual eu creio que o homem consciente precise se enquadrar dentro desta básica perspectiva, porque ele já está dentro deste problema. O problema está em levar tudo isto para o cinema que não só atue no movimento como sobreviva.
Daí eu ser contra um cinema colocado em esquema de teoria. O problema enquanto realização e criação artística é um problema de inteligência, violência e sensibilidade e não um problema de raciocínio, porque cinema não é sociologia ou filosofia ou qualquer outra coisa similar.