Em 1973, Jards Macalé se uniu ao poeta Waly Salomão para criar um dos discos mais experimentais da música brasileira, “Aprender a Nadar”. No ensaio do livro “Jards Macalé – Trajetória Musical” (Oca, 2023), é contada a história da gravação do disco.
No segundo disco, em parceria com Waly Salomão, Macalé decidiu mergulhar num projeto ainda mais radical, sob o signo da “morbeza romântica”, termo cunhado por Waly na época. Em entrevista para Abel Silva, no jornal Opinião, em 1973, Macalé conta a origem da proposta:
No meu último show procurei sintetizar todos os meus trabalhos anteriores, todas as minhas influências, a minha formação louca e confusa e o trabalho de meus parceiros, de Capinan, Waly, Torquato e tudo aquilo que eu e eles vivenciamos em termos existenciais e musicais, a minha carreira, enfim, que aliás não é carreira, é correria. Entre essas propostas entra isso que eu e Waly chamamos de morbeza romântica. Morbeza é a soma de mórbido com beleza. Nós assumimos a consciência desta morbeza romântica como uma forma de elevar ao máximo grau a herança romântica que trazemos, porque esta herança é a própria música brasileira, é tudo, é Lupicínio Rodrigues, é Nelson Cavaquinho, são os choros, as modinhas, é todo o romantismo que inclusive é muito mais forte nesses artistas mais antigos do que em nosso próprio trabalho. Porque essa característica não é só brasileira, ela é comum a toda latinidade, ao Terceiro Mundo, aos trópicos lânguidos, trágicos, tristes. E o romantismo é a essência desse temperamento latino. Eu sinto em mim em relação ao público e às pessoas dois pólos muito radicais: um amor profundo e um grande sarcasmo, uma agressividade muito grande e um carinho enorme. E tudo que faço traz essas características antagônicas.
Provavelmente, Waly Salomão retirou a expressão “morbeza romântica” de um fragmento da “Poesia Pau Brasil” (1924), de Oswald de Andrade, um dos seus autores de predileção: “O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese, contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico, contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”. Só que é possível ver no gesto de Waly-Macalé uma inversão, ou uma complexificação da formulação oswaldiana, marcada até mesmo pela junção morbidez-beleza da expressão. Ao invés da busca de um rigor formal, o transbordamento emocional. Há, na proposta da “morbeza romântica”, novamente a radicalização de um procedimento tropicalista de, contra o predomínio do bom-gosto e do acabamento técnico da música brasileira pós-bossa nova, valorizar o que há de excessivo, sentimental e kitsch. É o que Caetano Veloso havia realizado ao gravar “Coração Materno” de Vicente Celestino, no álbum Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968.
Segundo o próprio Waly, em texto intitulado “Mal secreto na linha de morbeza romântica???”, publicado em seu livro Gigolô de Bibelôs, de 1983:
Ao escrever “Senhor dos Sábados”, musicada por Jards Macalé, me identifiquei com o amor feminino das santas mulheres especialmente a devota Santa Terezinha suplicante por ser abrasada penetrada pelo amor divino e ser submergida num ardoroso abismo em em que é evidente a analogia entre a linguagem erótica e a linguagem mística.
Me tornei SERVA DO SENHOR, naquele tempo once upon a time naquele então da linha de da linha de da LINHA DE MORBEZA ROMÂNTICA.
Hoje: me libertei daquela vida vulgar…
Amanhã: He’ll be big and strong
Assinado: O FAQUIR DA DOR.
Se, na Tropicália, o uso do kitsch e a revitalização de uma certa “morbidez romântica” tinha interesse especialmente estético, agora era mais do que isso. Havia na morbeza de Waly e Macalé também uma denúncia do tempo, marcado por uma intensa repressão política e por perdas trágicas, como a do parceiro Torquato Neto, que havia se suicidado no dia do próprio aniversário, em outubro de 1972. Agora, era um ato também de violência, como Macalé definiu na mesma entrevista para Abel Silva:
Neste meu último show, por exemplo, eu coloquei aquele retrato imenso do King Kong atrás do palco. Aquilo espantou alguns, mas houve quem entendesse a jogada. Nós conseguimos até agora moldar e reprimir nossos instintos e desviá-los para outras áreas, para as relações simbólicas, mas nada disso pode substituir a estrutura reprimida. E o King Kong é um símbolo dessa energia solta, enfim desreprimida. Eu apresento King Kong como “nosso velho amigo”, porque ele é também uma criança, é o novo, que inspira ao mesmo tempo medo e amor. Neste sentido é que me entendo como apocalíptico. Não no sentido de destruição. Eu, como os Novos Baianos, proponho o final do juízo, não o juízo final. Nós estamos na esquina do tempo. tem gente que carrega este século que está morrendo nas costas, e tem gente que já partiu no Expresso 2222. E nós estamos vivendo estas transformações. Claro que sempre houve transformações, mas agora a coisa é muito violenta. E é conosco. Apocalíptico, então, não como fim total, mas como sintoma de mudança. Agora eu estou a fim da liberação das coisas mais íntimas. E esta liberação inclui a própria violência. Veja o trabalho dos Rolling Stones. A liberação da violência implica no revide, na resposta. Implica em aceitar a barra pesada da volta. É terrível mas é isso. O revide é natural. No momento em que você desperta a violência, que não é gratuita e sim parte da sua estrutura, da sua vivência, da sua angústia, então você tem que aceitar essa resposta de outras vivências, de outras angústias. Desde “Gotham City” eu corro esse risco, mas eu estou a fim de comer desta farinha. É aquela transa dos espelhos de Fernando Pessoa. É claro que nós somos espelhos uns dos outros, no sentido mais profundo. Então, quando a violência volta, eu a identifico como coisa minha, da minha própria estrutura existencial, do que eu vivo e sofro. O revide é o espelho de minha violência. E eu posso fazer um trabalho em cima disso. Eu não gosto da violência, nenhuma pessoa saudável gosta, mas ela existe. E há o amor, que também é uma forma de violência, o amor pode gerar a violência na medida em que é uma liberação radical. “Gotham City” é uma música de amor e violência na medida em que eu disse da minha vivência e tentei relacioná-la com a das pessoas. Quando eu gritava “Cuidado!” isso não era apocalíptico, não era para desesperar simplesmente, pelo contrário, era um aviso extremamente amoroso, porque eu estava no mesmo barco, correndo o mesmo perigo, eu não era uma voz de fora, fria e distante, era uma transa de amor. É como se eu dissesse: olha, há um caco de vidro ali na frente, eu vi, por isso, cuidado. E há ainda a questão de interpretação. As minhas interpretações forçam a barra. Mas também chegam a ser doces e até paternalistas. Românticas, enfim. E às vezes até ingênuas. Como aquela notícia sobre poluição que eu li em pleno espetáculo. Eu sei que não está fácil nem pra mim nem pra ninguém. Daí, todo grito de perigo tem de ter esse aspecto, esse dado de amor, senão é inútil. Ninguém mais pode falar de fora. Tem de ser na mesma, sentindo a mesma barra.
É a partir de toda essa reflexão sobre a tradição romântica da música brasileira que nasce o segundo disco de Macalé, com o sugestivo título de Jards Macalé apresenta Sailormoon’s linha de morbeza romântica em Aprender a Nadar, ou simplesmente Aprender a Nadar. Nele, as letras de Waly, que segundo o poeta concreto Augusto de Campos, trazia um “bacilo lupicínico”, se soma com as referências musicais de Macalé, educado através do universo sonoro da Rádio Nacional, que a sua mãe tanto ouvia na sua infância. São sambas-canções, boleros, rumbas e outros gêneros de sucesso dos primeiros anos da década de 1950, todos eles marcados por um romantismo derramado.
Para além da composição, há um outro elemento marcante nas canções do segundo disco de Macalé, que o acompanharia a partir de então: a interpretação absolutamente pessoal, marcada por um canto influenciado por um dos seus grandes ídolos, Nelson Cavaquinho.
Segundo Fred Coelho:
É em Aprender a Nadar que o músico encontra sua voz singular, muitas vezes emulando o sambista que conheceu nos anos 1960 em bebedeiras com Cyro Monteiro. Como Nelson, ele desenvolve um canto ébrio, que se funde com o motivo cantado. Meio bêbado, meio trôpego, ora apressado e ofegante, ora solitário e melancólico, Jards inventa uma nova persona e descobre que podia fazer da voz cinema.
Aprender a Nadar é, segundo o próprio compositor afirma na época, uma volta às suas raízes tijucanas, se libertando da aura baiana que permeou a sua obra nos anos anteriores. Assim, para além das quatro composições em parceria com Waly – “Rua Real Grandeza”, “Senhor dos Sábado”, “Anjo Exterminado” e “Dona do Castelo” – Macalé trouxe para o disco uma série de sambas-canções e outras referências de infância. Para além do repertório e da interpretação, há outra novidade em relação ao primeiro disco: ao invés da base minimalista de sua estreia, com um power trio formado por bateria, baixo e violão, agora os arranjos eram marcados por uma rica instrumentação, que trazia a participação de alguns dos mais importantes instrumentistas da época. Participaram do disco antigos amigos de Macalé, como Meira, que havia sido seu professor de violão na juventude, e Dino Sete Cordas, que tocou com ele no show “Mudando de Conversa”, em 1968, e também outros grandes nomes, como Canhoto, Zeca da Cuíca e Carlinhos Pandeiro de Ouro.
Para além dessas participações da “velha guarda”, tocaram em Aprender a Nadar alguns dos melhores músicos da geração de Macalé: os bateristas Robertinho Silva e Tutty Moreno, os pianistas Wagner Tiso e Aloísio Milanês, os baixistas Rubão Sabino e Luiz Alves, entre tantos outros. Mas não é só no instrumental que Aprender a Nadar brilha. Macalé faz todo um trabalho de colagem sonora e sonoplastia, desde a sua fala inicial, uma apresentação ao público (“meu nome é Jards Anet da Silva, ou melhor, da selva, ou pior, da Silva, ou pior, da selva, ou melhor da Silva”, até chegar em “Distinto público, vou ficar aqui exposto à audição pública como o FAQUIR DA DOR”), até a faixa final do disco, criando uma obra entrelaçada e unitária.
A canção que encerra o disco é uma composição coletiva de Macalé com o designer gráfico Rogério Duarte, um dos ideólogos da Tropicália, o antigo parceiro Duda Machado e um jovem poeta, Chacal, que havia acabado de se lançar na cena carioca com um belíssimo livro independente, Muito Prazer, impresso em mimeógrafo e distribuído de mão em mão nas Dunas da Gal e na noite carioca. Chacal se tornaria um dos expoentes da chamada “poesia marginal”, participando do grupo de poesia Nuvem Cigana, em parceria, entre outros, com Ronaldo Santos, irmão de Giselda, de quem Macalé havia acabado de se separar. O seu livro de estreia impressionou tanto Waly Salomão que este escreveu um belo texto sobre ele na coluna “Geleia Geral”, de Torquato Neto.
Anos depois, na autobiografia Uma História à Margem, Chacal lembrou da criação da música que finaliza o disco:
Uma tarde cheguei na casa de Macalé, a Casa 9, em Botafogo. Estavam ele e Rogério Duarte compondo e me chamaram para fazer uma parceria ali na hora. Macalé tocou um samba-canção que tinha feito naquele dia. Eu falei: “Samba é sempre a mesma história”, pensando em dor de corno, vingança e desejo. Rogério já emendou com “nosso amor morreu na Glória” e foi embora fazendo quase toda a letra. Pinguei uma coisinha aqui, outra ali. Duda Machado, que morava com Macalé, chegou no fim e colocou outra coisinha, e lá ficou a criação coletiva de Rogério, batizada com o nome de “Fantasma de Boneca”. Depois, Waly, cérebro do disco, mudou para “Boneca Semiótica”.
O segundo disco de Macalé, quando finalmente lançado, recebeu críticas de diferentes naipes. Se um conservador como José Ramos Tinhorão afirmou que só havia uma coisa boa no disco – o violão de Dino – e que Macalé cantava mal como um “Tim Maia bêbado”, o vanguardista Augusto de Campos, sempre atento para as inovações de linguagem, percebeu de primeira hora a importância e o sentido da obra do músico tijucano. Na sua segunda edição do livro Balanço da Bossa, de 1974, ele inclui um posfácio, “Balanço do Balanço”, onde afirma:
Em Aprender a Nadar, Macalé reaprendeu a cantar, descobriu uma outra voz e começou a fazer coisas incríveis com ela. Versátil, pode cantar tão apaixonadamente como Lupicínio, do qual é já um dos grandes intérpretes, ou tão solta e desinibidamente como os cantores de samba-de-breque (“Orora Analfabeta”). Recria e redescobre. Por exemplo, os líricos disparates de “Imagens”, composição de Valsinho com letra do grande Orestes Barbosa: “A lua é gema de ovo / No copo azul do céu / … / O beijo é fósforo aceso / Na palha seca do amor / Porém foi o teu desprezo / Que me fez compositor”. O samba-canção “E Daí” ganha uma notável interpretação, onde o canto-sussurro, contra um ritmo coração-pulsado sobre o fundo opressivo da orquestra, diz todo o não-dizer do amor amordaçado, “Bate com a cabeça etc”. Humor? Sim. Mas humor negro, lupi/cínico. Ri mas dói. Riso na brasa. Desesprezo. A “morbeza romântica”, dele e de Waly Sailormoon, é a mais drástica retomada do bacilo-de-lupicínio. A deformação patética da dor, grotescontraída, chega ao limite do impossível em “Rua Real Grandeza”, canto-último-arranco, delirium-tremens de amor, uma página mostruosamente bela e absolutamente única na música popular brasileira.