Pular para o conteúdo

Discoteca Brasileira: Clube da Esquina (1972)

Em 1972, Milton Nascimento e Lô Borges lançam o disco duplo “Clube da Esquina”, considerado hoje um clássico da música brasileira e mundial. Este fragmento da história oral do Clube da Esquina, compilada por Sergio Cohn no livro “Clube da Esquina – Trajetória Musical” (Oca, 2024), mostra, na voz dos seus protagonistas, como foi o processo de gravação do disco:

[Cafi] Quando o Clube da Esquina realmente surge, no começo dos anos 1970, as duas pessoas que tinham ficado no Brasil eram a Gal Costa, que cantava os baianos, e o Milton Nascimento. Porque todos os outros grandes músicos da nova geração estavam exilados. Então, esses dois músicos tinham uma presença muito forte no meio da rapaziada. O Bituca cantando descalço, assumindo certas posturas, sem camisa, isso era uma coisa chocante para a época.

[Milton Mascimento] Os meus colegas de geração, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, foram saindo do Brasil. Caetano e Gil foram presos depois do AI-5, em dezembro de 1968, e depois exilados em Londres. Chico teve que ir para a Itália. Então, teve um negócio aqui que aconteceu, que a crítica era muito má, muito maliciosa comigo. Como se o fato que tivesse ficado significasse que eu tinha menos comprometimento político. Juntou muita coisa pra cima de mim, os olhos estavam todos voltados pra mim. E era exatamente o contrário. Tanto que, enquanto isso, fomos trabalhando com os estudantes. Foi uma coisa muito forte o que houve comigo e os estudantes, porque eu viajava pelo Brasil todo. Os estudantes armavam shows e eu ia fazer, para ajudar na causa. Fui parar no SNI, fui parar numa delegacia também, no Leblon, a polícia ficava na porta da casa da gente, pra vigiar as pessoas que chegavam lá, me acusando de uma porção de coisas, me proibindo de ir a São Paulo pra visitar meu filho Pablo, Essas coisas todas. Eu estava sempre à frente dos movimentos, inclusive o da liberdade de imprensa. Foi uma época em que todo show que a gente fazia diziam que ia ter uma bomba que ia estourar. A gente estava sempre com medo de ir aos lugares e, de repente, as pessoas iam desaparecendo, os nossos amigos. Foi um período muito duro.

[Cafi] Ao mesmo tempo que tinha que encarar toda a barra, o Milton também estava com uma boa moral na gravadora. Daí, ele convenceu os produtores a fazer o próximo disco dele duplo, em parceria com o Lô Borges, que virou o Clube da Esquina. Aquele seria o primeiro disco duplo da música brasileira, mas demorou a sair e no meio do caminho lançaram o Fa-Tal – A Todo Vapor, da Gal Costa, que era um registro ao vivo do show que ela estava fazendo, com um disco acústico e o outro elétrico.

[Lô Borges] Quando o Bituca me convidou para o disco, fui morar no Rio com ele. A gente morou um tempo ali perto do Túnel Rebouças, no Jardim Botânico. Daí o empresário do Milton na época alugou uma casinha em Marazul, perto de Piratininga, Niterói. Foi muito legal, porque fomos morar eu, Milton, que era o líder da turma, o único realmente adulto, porque a gente era meio crianção ainda, o Beto Guedes, que eu tinha trazido para o projeto, e o Élcio Romero, o Jacaré, que era um primo do Milton. Foi em Marzazul que a gente começou a se concentrar e a fazer o disco mesmo.

[Beto Guedes] A gente passou quase dois meses em Marazul. Era um lugar bem afastado, praticamente só a gente morava ali. Foi uma coisa sui generis, uma coisa que eu nunca vi ninguém fazer. Ficar ali trabalhando e preparando as composições e a música num mesmo ambiente foi um negócio especial…

[Lô Borges] Foi um barato. O Bituca fazendo as músicas dele num quarto. Tive a felicidade de ver o Bituca fazer “Lilia”, fazer várias canções que estão contidas no Clube da Esquina. Eu vi Bituca fazendo ao vivo, dentro do seu quarto. E tinha o quarto que eu fazia as minhas músicas. O Beto Guedes ficava igual médico andando de um quarto para o outro, vendo o que cada um estava fazendo. Um laboratório total. E a gente recebia visita direto. No dia em que as canções ficavam prontas, a gente recebia os letristas, o Ronaldo Bastos, o Fernando Brant, o Márcio Borges. O Ronaldo aparecia com mais frequência porque morava no Rio, era mais fácil. O Fernando e o Márcio moravam em Belo Horizonte, então apareciam menos. A gente recebia também os músicos que depois participariam do disco. Eles frequentavam muito a casa, queriam entender o que o Bituca estava armando com aquele garoto que eles nunca tinham ouvido falar…

[Ronaldo Bastos] Eu fui militante integral, 24 horas por dia, do Clube da Esquina. Algumas pessoas faziam outras coisas, eu fazia faculdade, mas estava ali. Fui a Marazul e morei lá. Lembro muito da sensação do período. A gente estava numa casa que mais parecia uma colônia de férias, porque era uma casa com vários quartos e andares, num lugar com uma vista linda, num lugar lindo. Você ficava lá um pouco isolado. Saía da casa e estava na areia. O banho era num lugar cheio de árvores. Isso é um pouco minha infância, essa coisa pé no chão. A gente não tinha hora para acordar, depois resolvia o que ia comer. Quer dizer, era solto. Acho que eu fui o cara que mais conduziu esse processo, porque naquele momento tinha que ser eu. Não é que eu “eu conduzi”, mas eu estava ali. O máximo de programação que tinha nas coisas era isto: eu enchendo o saco. O resto era ficar tocando, ficar conversando, ficar lendo sem programação. A gente sabia que estava fazendo algo especial.

[Milton Nascimento] Era uma loucura porque o lugar era fascinante. Então a gente sentava na sacada, olhava para o mar e as músicas iam saindo, saindo, saindo. O mais engraçado que tinha eram os pescadores, porque a gente estava dormindo e de repente, às seis horas da manhã, começava aquela gritaria, a gente descia para ver aquele arrastão, mas não vinha peixe nenhum. Nunca vi peixe naquele negócio lá. Mas faz parte. Eu tenho um amor imenso por Marazul, aquilo tudo foi muito forte, porque a gente fez muita coisa ali.

[Lô Borges] Eu atribuo a originalidade do Clube da Esquina a ser realmente um projeto coletivo. De um lado, isso permitiu a mistura do jeito de compor do Milton com o meu jeito de compor. Acho que isso tornou o álbum uma coisa original, porque o meu estilo era completamente diferente do dele. E, de outro lado, a gente conseguiu reunir músicos incríveis no projeto, que eram todos amigos do Milton. Eu falei assim: “Bituca, eu tenho que levar o Beto comigo, porque ele entende mais do que eu gosto. Eu vou me encontrar com várias pessoas que eu nem conheço, são amigos seus, preciso de alguém que seja meu amigo também”. E os amigos dele eram maravilhosos: Nelson Angelo, Toninho Horta, Naná Vasconcelos, Robertinho Silva. Todas essas pessoas contribuíram muito para o disco.

[Cafi] Me convidaram para fazer a capa do disco. Escolhi então a foto de dois meninos que eu tinha tirado na serra carioca, porque captava bem o sentimento do disco. Era uma coisa extremamente rural, e é assim que eu vejo o Clube da Esquina, como um encontro musical. É uma música meio rural misturada com rock. Tem muita influência dos Beatles, que vinha do Lô Borges, misturada com viola caipira, com um barroco mineiro que o Milton trazia. E a capa tentava ser isso, além de representar o Milton e o Lô Borges. Para a parte interna do disco, como o disco era duplo e ia demorar muito para ser gravado, eu comecei a fotografar as pessoas que faziam parte do Clube da Esquina para colocar como um mosaico. No fim, tinha mais de 160 fotos.

[Ronaldo Bastos] O Clube da Esquina, para mim, é Milton Nascimento, Márcio Borges, Fernando Brant, Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Toninho Horta, Nelson Angelo, Robertinho Silva, Joyce, Novelli, Danilo Caymmi, Luiz Alves, o Som Imaginário, os irmãos Paulo e Cláudio e eu, além do pessoal que não fazia música: Cafi, as famílias Borges e Brant e todos os agregados.

[Cafi] O Clube da Esquina é muito relacionado a Minas Gerais, quando na realidade as coisas aconteciam lá e também aqui no Rio de Janeiro. O Lô, o Bituca, o Beto estavam morando aqui no Rio. Inclusive as gravações eram feitas aqui.

[Ronaldo Bastos] É uma pena essa distorção em relação ao Clube da Esquina, que é essa ideia de que ele é um movimento fundamentalmente mineiro, porque aquele grupo trouxe um dos pensamentos mais universais que já houve na música brasileira, e havia muito mais gente compondo ele do que o núcleo central que ficou conhecido. Isso é algo que o Clube da Esquina tem de muito próximo da Nuvem Cigana, que foi a empresa que criamos naquela época e pouco depois se tornou um grupo de poetas ligados à poesia marginal carioca: o Chacal, o Charles Peixoto, o Bernardo Vilhena, o Ronaldo Santos e o Guilherme Mandaro.

[Cafi] A Nuvem Cigana foi quase um complemento do Clube da Esquina. Eu lembro quando essa imagem da Nuvem Cigana primeiro surgiu. Um dia, quando o Ronaldo Bastos ainda morava na Ladeira, em Botafogo, a gente tomou um ácido e saiu para andar. Passeamos pela Lagoa e fomos até Ipanema. E lá, eu nunca vou me esquecer disso, o Ronaldo apontou para o céu e perguntou: “Você está vendo uma nuvem cigana?”. Foi a primeira vez que ouvi o termo.

[Ronaldo Bastos] Eu compus a música “Nuvem Cigana” em parceria com o Lô Borges. É uma música que considero muito emblemática daquele período, porque ela vinha de uma ideia que era muito cara para nós de tentar juntar o estético com o existencial. Era algo ao mesmo tempo poético, político e que trazia uma informação muito clara do que estávamos vivendo. Essa ideia de circular por onde era possível, levar uma vida estradeira, estar em movimento, que era uma oposição radical à ditadura. E tentar construir um tipo de mito em cima disso tudo.

[Cafi] O Ronaldo Bastos ia muito a Londres, ele tinha um irmão que estava exilado lá e que nos mandava ácido de vez em quando. E lá em Londres ele foi criando essa ideia de fazer uma empresa do tipo da Apple, dos Beatles, aqui no Brasil, com pessoas de diferentes áreas trabalhando sob o mesmo símbolo. Essa era a pretensão da Nuvem Cigana.

[Ronaldo Bastos] A ideia de criar uma empresa nos moldes da Apple já vinha do Clube da Esquina. Por um tempo tentei atuar lá como articulador, mas nunca consegui realmente organizar o grupo. Eu me lembro de conversar sobre isso com o Chacal quando encontrei ele em Londres. Falamos dessa ideia de organizar um grupo em forma de uma empresa que não fosse careta e que possibilitasse uma relação saudável com o mundo. Então, quando voltei para o Brasil, registrei uma firma com o nome de Nuvem Cigana, e arrumei um cantinho no escritório de um primo como sede. Coloquei o Márcio Borges para trabalhar lá, mas é claro que não foi muito efetivo. Ele não foi trabalhar nenhum dia.

[Wagner Tiso] O primeiro arranjo oficial que eu fiz para o Bituca foi a música do Lô Borges e do Ronaldo Bastos, “Nuvem Cigana”. O Lô pediu para eu escrever o arranjo e acho que ficou bem bonitinho. É interessante que os arranjos do disco foram feitos ali no estúdio mesmo. Naquela época não tinha esse problema que existe hoje de hora de estúdio, então dava um tempo enorme para se fazer um disco. O que era impressionante, até porque o Milton, o Caetano, demoraram muito tempo para vender bem os seus discos. Mas as gravadoras acreditavam no artista, né? Hoje acreditam no produto.

[Nelson Angelo] O disco do Clube da Esquina foi gravado no estúdio da Odeon. A tecnologia do estúdio, comparada com a de hoje, é até uma coisa engraçada. Parece a diferença entre a lamparina e a luz elétrica. Era um estúdio no Edifício São Borja, no centro do Rio de Janeiro. Um prédio meio antigo, com um elevadorzinho. Era um estúdio grande, mas que não tinha muito recurso técnico. Cabia até orquestra lá dentro, mas sem muito recurso para playback. Você gravava as cordas junto com o violão, junto com as vozes. Podia gravar duas vezes, depois passaram para quatro. Então era todo mundo mundo ali ao vivo e às cores. Se alguém errasse, começava tudo de novo.

[Wagner Tiso] O Bituca já trazia as coisas dele praticamente prontas. Aquelas coisas que o Bituca tinha nas vozes e no violão. Eu distribuía para o pessoal do grupo, o baixo vai fazer isso, a guitarra aquilo. “Quem vai solar? O Toninho sola aqui. O órgão entra ali.” A gente distribuía lá dentro do estúdio, porque não tinha orquestra. Os arranjos de base eram feitos lá em conjunto. Isso que era uma maravilha. E dá para ver que aqueles discos tinham um calor. Além do som ser analógico, um som gostoso de ouvir, não tem aquela mixagem perfeita e agudinha de hoje, tem aquele calor humano de todo mundo estar junto fazendo música.

[Nelson Angelo] O disco foi feito com um clima de todo mundo junto no estúdio. E era um pessoal que gostava de experimentar, então ficava alternando nos instrumentos. O Beto Guedes sentava lá na bateria e tocava uma música. O Lô Borges pegava um violão de corda de aço. Tinha um órgão Hammond maravilhoso no estúdio. Cada hora ia um e sentava e tocava. As percussões eram a mesma coisa, alguém estava passando, pegava um surdo e tocava. Havia um monte de instrumentos, violão, viola. Eu toquei de tudo no disco. Toquei viola de 12 cordas, toquei baixo, toquei percussão. Então era um parque de diversões para a gente. A gente estava, como dizia nosso querido lá da Mangueira, feito pinto no lixo.

[Lô Borges] Era como uma oficina de criação. Era uma oficina instrumental, musical, poética. Os letristas todos fazendo a letra ali no estúdio, os arranjos eram todos criados na hora, praticamente não tinha ensaio. Era tudo assim: você apresentava a canção para aquele bando de músicos super talentosos à disposição da gente e as pessoas começavam a intervir na música de maneira muito criativa. Eu lembro que se você pegar a ficha técnica do disco tem música que eu toco surdo, que o Toninho Horta toca percussão. Toninho Horta não era contrabaixista, mas há canções minhas que ele toca contrabaixo. Acho que as músicas e os músicos se prestaram ao papel de libertação. Todo mundo fez o que estava sentindo. Eu lembro que, nas minhas músicas, eu falava para o pessoal: “o arranjo é aqui na hora. O que vier, a música é essa”. O Robertinho Silva em “Trem Azul” tocava a chamada do trem na bateria, o Toninho fez aquele solo histórico e tudo na época tinha a peculiaridade de ser gravado em dois canais só.

[Nelson Angelo] O Robertinho Silva foi uma figura fundamental do Clube da Esquina, porque ele pegou toda aquela combinação que estávamos fazendo na nossa música e transformou na área dele, a percussão, com uma generosidade enorme. Ele é um músico espetacular. Depois o Naná Vasconcellos também foi uma figura de proa na criação da sonoridade do Clube da Esquina. Foi a partir deles que se estabeleceu um certo conceito rítmico para nós. A música do Clube da Esquina era uma música colorida no aspecto da percussão. E, se a gente for pensar, isso não era algo muito comum na época. Mesmo na bossa nova, a marcação é específica, mas realizada através de um baterista, de forma mais clássica. A bossa nova, da maneira que foi elaborada, não tem pandeiro, não tem chocalho, não tem toda essa cor na percussão. Já o Clube da Esquina tinha uma grande riqueza nesse sentido.

[Lô Borges] Toda a parte instrumental era feita na primeira sessão e na segunda sessão a gente colocava voz. Eu, Milton e Beto, os vocais. Tudo ao vivo. Se tivesse que cortar tinha que ser com gilete, então se alguém desafinasse ou errasse tinha que voltar tudo. Mas era engraçado que tudo saía de primeira. Como a gente estava morando juntos, já estava com sintonia em relação àquelas músicas. E o Bituca já tinha grande sintonia com aqueles músicos presentes ali. Ele já era um cara mais experiente, mais amadurecido. Mas, para surpresa de Bituca e de todos os outros músicos, os garotos de Belo Horizonte também mandaram bem. A gente acertava mesmo. Eu estava revestido de um senso de total irresponsabilidade e achava tudo fácil demais. Foi um disco muito relaxado nesse sentido, todo mundo muito feliz de estar fazendo aquelas músicas, de poder contribuir com aquelas músicas.

[Ronaldo Bastos] O disco ficou acima do parâmetro da época. Inclusive na qualidade de som. Nós atentávamos muito para isso. E, se você pegar, os discos daquela época, com raríssimas exceções, por mais bacanas que fossem, como os primeiros da Tropicália, tinham uma qualidade de som ruim. E nós caprichamos muito nisso, o que contribuiu para o disco virar um marco da música brasileira.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *