O primeiro álbum dos Mutantes, de 1968, é hoje considerado um dos grandes discos da psicodelia mundial. Neste fragmento do ensaio do livro “Mutantes – Trajetória Musical” (Oca, 2024), é narrada a história da gravação do disco:
Embora os Mutantes ainda não estivessem na onda do LSD naquele momento, a influência do psicodelismo era central na música deles. O que foi de total encontro aos anseios experimentais do maestro Rogério Duprat. Ao explorar os limites do formato canção, a psicodelia se aproximava da música erudita de vanguarda, incorporando elementos estranhos e tidos como não-musicais. A exploração de timbres, de ruídos e de efeitos sonoros, assim como certo viés performático das canções, tem a ver com isso. Para melhorar, no caso dos Mutantes tudo isso era feito com uma total ludicidade, diminuindo o que poderia haver de excessivamente sério ou até mesmo místico em outras manifestações do gênero.
Foi essa alegria e certa desenvoltura juvenil dos Mutantes que tomou o estúdio. Mostrando uma segurança rara para músicos tão jovens, o grupo experimentava novas sonoridades, inventava instrumentos inusitados, buscava com total liberdade criar a sua própria identidade musical. Uma das mais emblemáticas histórias em relação a esse desembaraço criativo do trio no estúdio de gravação está em torno da faixa “Le Premier Bonheur du Jour”, que tinha sido um sucesso na voz da cantora francesa Françoise Hardy e que Rita Lee resgatou do antigo repertório das Teenagers Singers. Para animar a nova versão da canção, eles decidiram incluir uma bomba de Flit, um inseticida muito comum da época que era usado com um vaporizador manual, como efeito sonoro de percussão, substituindo o chimbau da bateria.
Para a música de abertura do disco, “Panis et Circensis”, uma composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil que se tornaria uma das canções mais conhecidas da Tropicália, eles decidiram brincar com o refrão que falava sobre “as pessoas na sala de jantar” simulando um jantar no estúdio, com barulhos de pratos, talheres e conversas. Até o produtor Manoel Barenbein entrou na brincadeira, aparecendo na gravação pedindo a salada. Na mesma música, há outra invenção, com um efeito sonoro de paralisação da gravação no meio da canção. O objetivo era desnortear o ouvinte, achando que era um problema técnico do próprio aparelho de som (com lembraria depois Sérgio Dias: “A grande curtição de ‘Panis’ é a hora que a gente desliga a vitrola da tomada. A ideia era fazer o cara levantar ‘Ih, parou a vitrola’, levantar e ir ver, e antes que conseguisse botar no lugar ela continua a tocar.” [2006]). Eduardo Kolody Bay, em sua bela dissertação sobre o Mutantes, descreve a colagem sonora da segunda metade da canção:
De repente, a gravação parece falhar, retorcendo o som como se o disco parasse por defeito, e a música nasce novamente, iniciando uma sequência repetitiva, hipnótica e acelerada tocada junto aos versos do refrão “mas as pessoas na sala de jantar / Essas pessoas na sala de jantar…” culminando num climax, uma “explosão”, que transforma completamente o clima da música, silenciando os instrumentos e compondo a sonoplastia dessas pessoas “à sala de jantar”: uma cena sonora pintada através de um happening, com barulhos de pratos e pessoas conversando à mesa, enquanto que, ao fundo, ouve-se o Danubio Azul, até a entrada do som de um oscilador que faz um glissando até o agudo infinito para terminar a música. Esse tipo de efeito sonoro era algo completamente inusitado para as concepções musicais da época, uma passagem musical que leva a música a se transformar numa colagem eletroacústica, como numa trilha para cinema.
Aquela não foi a única inserção de elementos sonoros experimentais, eletroacústicos, no disco. Cláudio César, o “quarto mutante”, trouxe uma colaboração fundamental para outra canção da dupla Gil-Caetano. Em “Batmacumba”, há o fruto sonoro de uma das diversas invenções de um eletrônico genial, como ele mesmo conta:
Eu peguei o potenciômetro de uma máquina de costura que costuma ter uma trava para ir do começo ao fim do curso e não continuar dando voltas. Eu tirei a chave, o que é bem fácil, e o potenciômetro ficava com a rotação livre, podia emendar quantas voltas quisesse. Amarrei o eixo do potenciômetro, prendi no pedal da máquina de costura que eu usava para enrolar os captadores de som e por esse potenciômetro passava o som da guitarra. Como o potenciômetro diminui e aumenta a resistência, ele modulava o som da guitarra. Conforme eu colocava ou não um pequeno capacitor em série, eu bloqueava os graves e possíveis ruídos. Então o som parecia ser só o da guitarra, mesmo, ou parecia um som de motor de automóvel junto, porque era o ruído do próprio potenciômetro virando e se interrompendo a cada volta. Então ele fazia aquele som que você ouve me “Batmacumba”. Essa foi uma invenção, quase uma brincadeira, mas que ficou bem conhecida, com um som muito diferente obtido. Os instrumentos eletrônicos não conseguem fazer isso facilmente, porque tem a inércia. Para se fazer aquele som, o instrumento eletrônico tende a ser tudo ou nada. Se você for girar um potenciômetro de um instrumento eletrônico para aumentar a velocidade ou diminuir a velocidade de um trêmulo, que é um efeito parecido com esse, você não vai conseguir esse overshot, essa passagem aumentando a velocidade e depois a volta desacelerada. Um processo onde a inércia funciona e tem o som de motorzinho por trás também. Eu chamei esse efeito de “Inferno Verde”.
Mas, se as gravações corriam bem, foi mais difícil fechar um repertório para o disco. Os Mutantes escolheram três canções da dupla Caetano-Gil, as já citadas “Panis et Circensis” e “Bat Macumba”, além de “Baby”. Também decidiram fazer algumas versões, como da canção de Hardy e de “Adeus Maria Fulô”, de Sivuca e Humberto Teixeira, numa inesperada excursão na música regional brasileira. Em sua autobiografia, Rita explica a inusitada escolha da canção para o disco:
Para abrasileirar os Mutas (eu andava encantada com o país onde nasci), sugeri gravarmos “Adeus Maria Fulô”, que minha mãe tocava no piano e eu sabia de cor. Na gravação desta, usei um instrumentinho que os palhaços Torresmo e Fuzarca faziam com tampinhas de garrafa afinadas que, ao soltá-las no chão, tilintavam a nota certa.
Houve ainda a adição de “A Minha Menina”, composta por encomenda por Jorge Ben (Jor). Os Mutantes tinham ficado amigos do criador do Samba Esquema Novo nos bastidores dos programas televisivos e adoravam a figura e o som daquele carioca da Tijuca, que consideravam mais próximo do rock do que do samba. Mas Jorge, que havia prometido uma música para eles, nunca entregava. Até que Rita Lee decidiu ir ao seu apartamento e convencê-lo a compor algo. O desenvolto tijucano assim o fez no calor da hora: pegou o violão e criou na hora a canção, como conta a cantora:
Gulosa para garimpar mais repertório de calibre, tive a cara de pau de ir sem avisar até o apartamento de Jorge Ben e pedir “pelamordedeus” uma música. Quem abriu a porta toda descabelada foi uma cantora não muito conhecida na época. Ops, já ia me desculpando pela inconveniência quando o deus do suingue escancara a porta e simpaticamente me convida a entrar. Por cinco segundos pensei que ia rolar um ménage, mas nos segundos seguintes mr. Ben já estava no violão tocando o esboço de “A Minha Menina”, com olhares de torpedo para a moça. Tempos depois, quando a cruzava nos bastidores da vida, então já muito famosa, trocávamos olhares e um sorrisinho cúmplice.
O melhor: encantando também com o grupo, Jorge Ben foi ao estúdio e gravou um violão não-creditado no disco (por conta de ser de outra gravadora), além de algumas intervenções vocais, como a irreverente fala inicial da canção: “Tosse, todo mundo tossindo”.
De resto, o disco é formado por canções próprias, uma delas em parceria com Caetano Veloso (“Trem Fantasma”). Naquela época, os Mutantes ainda não eram desenvoltos em composição. Aprenderam na marra, vendo Gil e Caetano criarem suas músicas. É novamente Rita que relembra:
Gil e Caetano deram o mapa de como fazer letra de música em português, além de nos presentearem com “Panis et Circenses”, cuja composição em apenas quinze minutos eu, deslumbrada, testemunhei. Observando a facilidade com que os caras compunham músicas enquanto conversavam aleatoriamente, aprendi a respeitar o “santo”: aquela inspiração espontânea que baixa como um sussurro e te faz registrar no papel um pedaço de letra, dedilhar uma melodia, uma harmonia. A coisa ia se delineando sem querer querendo e, quando ia ver, já estava pronta.
Alguns truques os encantaram, como as aliterações. O jogo sonoro entre as palavras tinha tudo mesmo para atraí-los. E nessa hora entrou a figura de poeta do pai dos irmãos Dias Baptista, de quem eles herdaram a capacidade de unir conhecimento técnico com grande inventividade. Foi assim que o senhor César entrou como parceiro na versão que fizeram para a canção “Once Was A Time I Thought”, do The Mamas And The Papas, “Tempo no Tempo”: “Há sempre um tempo no tempo / Que o corpo do homem apodrece / Sua alma cansada e penada se afunda no chão / E o bruxo do luxo / Baixado o capucho / Chorando no ninho / Capacho do livro / Caprichos não mais voltarão”. Aliás, o pai deles também aparece em outra música do disco, “Ave Gengis Khan”. A sua voz cantando ópera, girando ao contrário no gravador de rolo, faz parecer que estava falando russo.
O disco foi lançado em final de junho de 1968. Para divulgá-lo, os Mutantes fizeram duas temporadas de show: na Boate Sucata, no Rio de Janeiro, e na gafieira Som de Cristal, em São Paulo. Aquele foi um período intenso. Além de tudo isso, participaram do disco coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, que trazia também Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa e Nara Leão. Estavam lá com “Panis et Circensis”, além de participar de outras canções. E acompanharam Caetano Veloso na apresentação no Festival Internacional da Canção daquele ano.