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Discoteca Brasileira: Slave Mass (1973)

Das aventuras de Hermeto Pascoal como , uma das maiores foi o uso de porcos na música “Sereiarei”, no começo da década de 1970, na apresentação no Festival da Canção. Esses inusitados animais-músicos estão também presentes no disco Slave Mass, gravado nos Estados Unidos em 1973, como contado nesse trecho do ensaio do livro “Hermeto Pascoal – Trajetória Musical” (Oca, 2024):

Se nas gravações anteriores, especialmente no trabalho junto com o Quarteto Novo, já apareciam alguns elementos do que seria a música de Hermeto, o disco de estreia foi um salto. Não apenas sonoramente, mas no modo de fazer. Hermeto agora possuía um conjunto próprio, com músicos que estavam dispostos a um longo trabalho de ensaio e entrosamento, para que pudessem improvisar com liberdade na hora dos shows. Em relato para o jornal Rolling Stone, em 1972, ele explica o desafio que foi conseguir reunir músicos que pudessem realizar esse trabalho:

Quando nós começamos, eram três violões, três guitarras tocadas por excelentes músicos: o Lanny Gordin, o Macumbinha e o Alemão. Mas acontece que eu precisava de músicos que não tivessem problemas com dinheiro, que tivessem disponibilidade quase gratuita. Aí, eles saíram por vontade própria, foram tocar com o Gil. Mas eu sou um cara muito teimoso, se sair todo mundo eu vou tocar sozinho, e seu eu morrer tocando, vou nascer de novo tocando. Quando os guitarristas saíram faltava três dias para o show de estreia. Aí apareceram os meninos do sax. E o que eu fiz? Tudo que eu tinha escrito para as guitarras, passei para os saxofones. Conclusão: nunca mais que eu vou tocar com guitarras, ficou tudo muito melhor com os saxofones.

Dois elementos centrais do que seria a obra de Hermeto já estavam prsesentes naquele momento: a valorização do processo, da criação de um trabalho imersivo com os músicos, o que o acompanharia pelo resto da sua vida. E também um elemento performático, que ficaria cada vez mais forte em suas apresentações.

Neste segundo ponto, a canção “Sereiarei”, inclusa no disco de 1972, tem um papel importante. Ela foi composta para Alaíde Costa apresentar no VII Festival da Canção, em 1972. Mas Hermeto pensou a apresentação como uma performance experimental, sem se preocupar em disputar o prêmio do festival. Para tanto, fez um arranjo para os 44 músicos da orquestra e mais alguns convidados especiais: um porco e quatro galinhas. Na mesma matéria para a revista Rolling Stone, no calor da hora, ele conta a proposta:

O negócio é o seguinte: os porcos e as galinhas eu deixei para os últimos dias do Festival, porque eu tinha certeza de que, se eu apresentasse antes, não iria dar certo, a direção do Festival não iria concordar. Agora, muita gente pensa que eu usei isso para aparecer e não é nada disso. O que acontece é que o porco, eu observava isso na roça, se você apertar de leve o pé dele, ele dá um grito que nenhum piano desses, no último volume, conseguiria dar. Então, eu imaginei aquela orquestração toda, de quarenta e quatro músicos, e um porco e as galinhas solando em cima. Seria a coisa mais linda do mundo: Cocorococó Guiiiiinch Cocorococó Guiiiiinch Cocorococó Guiiiiinch…

O meu irmão, que mora em Bangu, foi ele quem trouxe, coitado, quatro galinhas e o porco dentro de um caixote. Cada menino da percussão iria tocar com duas galinhas e eu tocaria com o porco. Deu uma despesa de 200 cruzeiros o transporte dos animais. Quando eu cheguei na porta do Festival, o motorista estava esperando há duas horas sem saber o que fazer. Aí o Mazinho pegou os caixotes, botou na cabeça e já foi entrando. Foi quando a polícia chegou e perguntou: “Aonde o senhor pensa que vai com esse porco e essas galinhas?” Eu tentei explicar para o policial que aquilo fazia parte do meu número.

Aí o Solano Ribeiro, que era diretor do Festival, apareceu apavorado querendo saber por que eu não tinha ensaiado com o porco e as galinhas. Aí, eu disse pra ele: “Cumé que você quer que eu fique ensaiando com porcos e galinhas por aí?” Aí telefonaram para a censura e a censura mandou dizer que eu devia estar louco e que estava proibida a minha entrada com porcos e galinhas. Então, já começou a maldade dos caras. Com porco e galinha não entra, está desclassificado. Aí, nós resolvemos entrar de qualquer maneira. Bom, quando a gente estava lá dentro cortaram o o som e não deixaram a gente tocar.

Eu cheguei a ser ameaçado de prisão. Chegou um tira perguntando pelo cabeludo que tinha entrado com porco, que ele iria ver uma coisa e tal. Esses tiras são muito ignorantes. Mas agora eu vou gravar um disco em São Paulo, com 16 canais, e vou botar porco em todos os canais. Bom, para simplificar, quando deu a confusão, eu desapareci. Já tinham batido no Rogério Duprat e eu não queria apanhar. Depois, a gente só voltou para o Festival por causa das obrigações contratuais. Foi quando deu aquela confusão com a Alaíde e aí o Festival acabou.

Não foi só a direção do festival que foi pega de surpresa por Hermeto. Alaíde Costa também não sabia de nada:

Eu tinha medo que a Alaíde não quisesse cantar a música, no caso dela saber que eu ia levar um porco. Quando ela soube do porco, na hora da apresentação, ela quase desmaiou! Mas chegou pra mim e disse que gostava muito de mim e da minha música, então faria o que eu dissesse. Ela foi ótima nisso. De qualquer forma, não deixaram levar o porco, mas como a música seria desclassificada, achamos melhor apresentar mesmo assim.

Mas daí tinha um cara que trabalhava lá e sabia imitar um porco, brincando, assim, no estúdio de televisão. Eu chamei o cara e pedi pra ele subir lá no palco e imitar o porco. Só que, quando ele fez isso, acharam que era o porco de verdade e desligaram os microfones. A Alaíde Costa ficou nervosa, jogou o microfone no chão, que quebrou. Chegou um investigador lá, queria bater em todo mundo com o cassetete. A Alaíde Costa teve que ficar debaixo de uma mesa. O Jackson do Pandeiro também se escondeu para não apanhar. E o Rogério Duprat levou um cassetete nas costelas. Foi uma zorra.

Hermeto não conseguiu gravar os porcos para a versão de “Sereiarei” que está em seu disco de estreia. Só conseguiria levar animais ao estúdio alguns anos depois, na gravação de Slave Mass, talvez o seu o disco mais importante, realizada nos Estados Unidos. O disco surgiu novamente a convite de Airto e Flora Purim, que o chamaram para uma série de apresentações em palcos norte-americanos. Na canção “Missa dos Escravos”, Hermeto pôde finalmente interagir com porcos. O resultado foi tão positivo que ele decidiu retirar o som da orquestra que acompanharia a música para os porcos poderem solar com mais liberdade, acompanhados apenas pelo violão:

Esse disco foi gravado, eu me lembro como se fosse hoje, em Los Angeles, porque tinha aquela história do porco, e eles não queriam que eu tocasse com o porco no Brasil, mas eu consegui nos Estados Unidos, por incrível que pareça. Lá, havia um casal que tinha dois filhos, um menino e uma moça, e cada um deles tinha um porco de estimação. Eles levaram para o estúdio para a gente fazer um som com os porcos. Eu fiquei maluco, porque eu nunca havia pego um porco limpinho, cheiroso. Ficou bonitinho na capa do disco, não é? E foi incrível na hora em que entrou no estúdio, na maneira de gravar – foram os dois porquinhos, um menor e outro maior, e o Airto pegava e eu só dizia para ele o mais agudo, o mais grave. O mais agudo era o menorzinho, isso para ter o som sempre, então ele mexia com os porquinhos e o violão.

Segundo Hermeto, os porcos “dividiram legal os compassos”. A canção “Missa dos Escravos” foi inspirada pelas histórias que Hermeto ouvia desde criança e pelo terrível contexto histórico que o Brasil estava vivendo, retratado dentro da liberdade criativa de Hermeto:

Naquele tempo estava uma ditadura muito forte aqui no Brasil e eu sempre me considero um poeta na música, sem palavras, um poeta com as palavras da imaginação. Então, eu imaginei um padre dizendo missa nas matas, porque os escravos apanhavam nas ávores. Graças a Deus eu não alcancei isso, não vivi isso, mas eu ouvia falar. Eu sempre fui um cara que filtrou o ruim para o bom, que é o som, que é a música. Então, eu transformei essa coisa. Você pode ver que o porco está gritando, é como se eles estivessem matando os animais para dar de comida aos escravos, e um padre rezando a missa para eles.

O uso de porcos não seria a única liberdade tomada pelo músico na gravação do disco. Outra canção, “Cannon”, em homenagem ao jazzista Cannonball Adderley, trazia falas de Flora, Airto e Hermeto sobrepostas a uma flauta improvisada. A gravação foi recorrentemente comparada com uma sessão espírita para os músicos se comunicarem com o recém-falecido Cannonball, um antigo conhecido deles e com quem exerciam admiração mútua. Perguntado na época sobre isso, Hermeto respondeu:

Eu não sou espírita. E vou dizer para vocês o porque: Eu não sou porque acho que a música é o meu instrumento. E eu não teria tempo de ser o músico que sou se tivesse que frequentar um centro. Mas eu peço licença a todos eles, a todas as forças, né? Essas forças que a gente não sabe o nome mas sabe que existe. E que cada um sente de uma maneira. Eu sempre peço que eles me mandem coisas boas e que eu estou aqui e garanto que vou cumprir com tudo. Então, eu tenho certeza que essa criatividade minha, por exemplo, tem a ver com isso.

Às vezes as pessoas não entendem. Eu não sou um medium, não sou nada disso. Eu já fui a lugares espíritas. E onde chego falam que eu já estou feito e me dão a benção. Eu fico admirado, mas eu acredito na força maior, né? Eu acho que é muito importante. Eu sou um cara que vim para a Terra, como todos nós, para cumprir uma missão. E a minha religião é mesmo a música. Eu abraço a música como a minha religião porque é a coisa que eu mais gosto de fazer e porque com ela eu posso curar muita gente. Estou curando muita gente no mundo e estou me curando também. Eu fico até arrepiado com os relatos que ouço de pessoas que se curaram com a minha música.

Então eu não tenho outra religião além da música. Agora, eu respeito todas as religiões e espero que com a música eu consiga colaborar e fazer com que as pessoas pensem. Não pode se ter esse negócio de separação e de preconceito de religião, nem nada. As pessoas precisam entender que existe uma força maior que é para todos.

Em outras músicas do disco, como “As Marianas” e “Velório”, Hermeto se utiliza de objetos não-convencionais para tirar som e retratar a terra de sua infância:

Em “Velório”, eu me lembrei de quando na minha terra eu morava do lado da igreja e a feira era em frente a minha casa. Eu chegava e via passando uma rede, que era um caixão de defunto. De repente, se fosse um cara ruim, mal-visto, porque era uma cidade pequena, então, os feirantes mesmo, vendendo as coisas falavam: “Vai para o inferno, fi da peste”. “O diabo que te carregue”. Os caras já estavam encomendando a alma dele para o inferno. Outros vinham todos sorrindo e bêbados, porque ninguém enterrava ninguém lá sem cachaça. Era muita cachaça! Cerveja lá era água, então, o cara botava uma caixa de cerveja na cabeça, outra na ponta, um monte assim do lado e bebia a noite toda.

Não havia tristeza na hora do enterro, mas quando passava o funeral era que acontecia os sons que quis colocar na música. Com as matracas, com os serra-velhos e com a voz de um amigo meu, Carlinhos, que participou da gravação, a gente fez um clima. O Airto tocando pandeiro, o Roncatti tocando contrabaixo, com harpa no final, na hora do enterro. Eu botei os caras do trombone para conversarem sem palavras com os outros instrumentos, estava tudo escrito.

No estúdio, foi feito um armazém só para garrafas, prateleiras com quarenta e tantas garrafas cheias de água, todas afinadas, bem trabalhadas, com a partitura para os músicos da Sinfônica de Nova York olharem e tocarem a garrafa afinada já com sua própria nota. Os flautistas eram os melhores do mundo, como o Robert Langevin, e o que eu fiz? Tinha o serra-velho, que é aquele pedaço de madeira, e a gente coloca como se fosse uma hélice, um buraquinho e um cordão para você rodar e fazer aquele som (hum hum hum). Os caras nunca viram aquilo e eu cheguei na hora e entreguei para cada um deles na mão, eles não sabiam nem o que fazer, eu é quem tinha que tocar, para mostrar a eles.

O nome que eu queria botar era “Sentinela”, nome que se dá lá no nordeste, mas para ser conhecido universalmente e com o mesmo sentido a denominei “Velório”. Um velório alegre, que foi rolando para o cemitério. No final volta mais grave, até com o baixo, uma coisa bonita, e o Airto com o pandeiro, e então vai baixando e tem um som dos músicos fazendo como se fosse aquela terra que se joga em cima do falecido e a gente transforma aquela coisa toda como se fosse alegre.

Só essa música, se eu contar dá um filme.

Com Slave Mass, Hermeto se consagrou definitivamente no cenário internacional da música. Reconhecido como um dos artistas mais originais de seu tempo, aceitava-se até os seus arroubos de rigor, como quando se confrontava com um instrumento de má-qualidade ou defeituoso. Foi o que ocorreu em Los Angeles, durante a série de apresentações que realizou com Airto e Flora: ao fazer um solo de piano, percebeu que o pedal estava quebrado. Então, passou a dar pancadas com o pé no teclado, enquanto batucava na tampa do piano. Embora a performance não fosse das mais delicadas com o instrumento, o publico gostou e aplaudiu. E, dia seguinte, Hermeto ao chegar para o show, encontrou dois pianos no palco. Ao perguntar o motivo, responderam que era um para tocar e outro para quebrar. Não foi preciso: o piano que Hermeto tocou naquela noite estava em perfeitas condições.

O reconhecimento da música Hermeto não aconteceu apenas no exterior. No Brasil, o público também aprendeu a apreciar aquele músico único. Apelidado de “Bruxo” pela jornalista Ana Maria Bahiana, Hermeto ganhou a simpatia e admiração de um público jovem, que via naquela figura exótica um sábio e carismático companheiro de aventura.

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