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Discoteca Brasileira: Trilogia “Re” (1975-1979)

Na segunda metade dos anos 1970, Gilberto Gil lançou a trilogia “Re”, formada pelos discos “Refazenda” (1975), “Refavela” (1978) e “Realce” (1979). No ensaio do livro “Gilberto Gil – Trajetória Musical” (Oca, 2023), é contada a história em torno da gravação dos discos, num período fértil e atribulado da vida de Gil.

Em 1975, Gil realiza o álbum duplo em parceria com Jorge Ben, Ogum Xangô, e o primeiro LP do que ficou conhecida com “trilogia do ‘Re’”, Refazenda. O LP será lançado numa grande turnê, que passa por mais de 100 cidades brasieiras. A revista Pop publicou na época uma bela matéria sobre a criação do disco:

Gilberto Gil estava na Bahia, depois de uma excursão por várias capitais e cidades do interior. Uma noite, pintou num sonho a palavra Refazenda e a imagem um pouco confusa de uma fazenda encravada num vale, com vacas, galinhas, árvores e, ao mesmo tempo, cercada de um aparato tecnológico próprio das grandes cidades. “Era um lugar de todos os homens, e ao mesmo tempo, de solidão total. Analisando depois, entendi tudo aquilo como a síntese da simplicidade e também como uma grande necessidade existencial dominando minha cabeça. Resolvi explorar a palavra Refazenda ao máximo, pois a acho muito bonita.”

Da dissecação da palavra, como forma, e do conceito Refazenda, resulta o novo LP (recém-lançado) e toda a direção do trabalho atual de Gil: “É um LP muito simples, quieto, tranquilo. As canções são todas apresentadas com muita cautela, sem improvisações e sem as explorações vocais até certo ponto absurdas que já me permito fazer. Nunca explorei um filão. Sou discípulo direto de Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi. Mas, por outro lado, já incursionei pelos experimentalismos, dodecafonismos, já usei os osciladores todos, já fui violeiro e também Jimi Hendrix.”

Mas, como ideia, o que significa o novo trabalho de Gil? O que é a Refazenda? “Refazenda é, para mim, como um prêmio conceitual a tudo o que já fiz, fui e serei. Minha intenção é acentuar esta abertura total, buscar dar mais cor ao verde das matas, fazer tudo renascer: que as flores voltem aos campos e, se for na cidade, que seja Refazenda. Em suma, Refazenda é tudo o que eu quiser viver, fazendar, andar de ré”.

Por outro lado, Refazenda é também um oportuno toque sugerindo a volta à simplicidade, à natureza, uma nova proposta de equilíbrio ecológico. Na explicação do conceito, por escrito, Gil diz: “Renda tecida com fios do milho, milho ouro, milho sol (…) Esperança transmutada em verde de verdade, verdes notas mágicas, o encanto da fazenda nova. Reencantação. A árvore da trindade: abacate, tomate, mamão. Árvore milagrosa: um fruto diferente a cada estação. (…) Refazenda segue sendo a vontade de Deus para cada estação”.

Muito dessa ideia nasceu do próprio trabalho de Gil, um trabalho incansável de troca de informações que ele pretende continuar: “Quero sair por aí conhecendo cidadezinhas do interior, levando espetáculos para pessoas que têm muito mais carência de um mundo de sonhos e fantasias como um show de Gilberto Gil ou outro artista qualquer. Uma apresentação dessas é muito mais densa que o circuito Rio-São Paulo. Alguém tem que fazer este trabalho de interiorizar a arte. Aliás, desde que voltei da Inglaterra tenho me dedicado a isso”.

E Refazenda “também deve ser na cidade”. Ou na cabeça de cada um, mesmo que isso leve ao misticismo. “Eu me considero um místico por excelência. Já abordei todas as seitas em busca do conhecimento, melhor entendimento entre matéria e espírito, céu e terra: candomblé, zen-budismo, ioga, etc. Cada nova fase é uma prisão voluntária à qual me submeti em busca da liberdade, sacou? Refazenda começa num vale e termina nos limites da mente…”

Após lançar Refazenda, que trouxe entre outros a contribuição do arcodeonista Dominguinhos, que também foi coautor de faixas como “Tenho Sede” e “Lamento Sertanejo”, em 1976, Gil se une a Caetano, Gal e Maria Bethânia para formar Os Doces Bárbaros, uma espécie de celebração do grupo baiano. Juntos, começam em junho uma turnê por diversas cidades brasileiras, que é registrada em um filme de Jom Tob Azulay e em um disco duplo ao vivo, gravado no Canecão, no Rio de Janeiro. Mas a turnê é interrompida por uma violência policial: no dia 7 de julho, após um show em Santa Catarina, Gil e o baterista Chiquinho Azevedo são presos por posse de maconha. Em depoimento na época para Nelson Motta, Caetano contou sobre a turnê e a prisão:

Quando nós, do grupo Doces Bárbaros, íamos para o Galeão, o automóvel de Elizeth Cardoso emparelhou com o nosso e ela nos sorriu de lá, acenando. Nós saímos para a excursão abençoados. Não é sempre que acontece a gente poder harmonizar tantas energias numa luz clara. E não é fácil. O que Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e eu estamos conseguindo agora é isso. Saímos por aí sem intenção de criar ou resolver problemas ou aceitar provocações. Bob Marley: “don’t deal with dark things” (não transe com coisas escuras), João Donato e Jorge Ben. Gente de fé reconquistada. Mostramos com simplicidade a música e a poesia da vida, do que vive, do que está vivendo – os Orixás, as pessoas boas, bonitas e fortes, os peixes e a esperança. Dentro das nossas possibilidades imediatas, o nosso trabalho é bom. É o que nos basta. Ao resto, o resto.

Por exemplo, a cidade de Florianópolis (nome que deram à cidade de Desterro) não deveria constar da lista das cidades visitadas, porque a produção não considerava uma boa praça (180 mil habitantes). Por insistência minha e de Gil, ela entrou. Gal não queria e Bethânia teve quase um pressentimento que nossa ida lá não seria boa. Quando os policiais interromperam nosso sono e nossa alegria, eu disse a Gal: “Parece que  ter vindo a Florianópolis foi um gesto livre demais e isso subiu à cabeça do delegado”. De fato, conhecidos meus de lá me diziam: ‘Eu não acreditava que vocês viessem até que vi vocês”. Um chegou a me perguntar: “Por que vocês incluíram Florianópolis no roteiro?” – “Por amor”, eu respondi.

A polícia entrou no apartamento de Gal Costa, Maria Bethânia, Lea Millon, Eunice Oliveira, Maria Pia de Araújo, Guilherme Araújo, Chiquinho Azevedo, Djalma Correa, Arnaldo Brandão, Perinho Santana, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tuzé de Abreu, Mauro Senise, Tomás Improta, Daniel e, ainda, nos dos técnicos de som, luz e palco, alegando ter recebido uma denúncia de Curitiba. Contra quem? Contra todos esses nomes? Eles conseguiram levar Gil e Chiquinho. Nós não saímos para discutir leis nem moral. Nem a religião, nem a política, nem a estética. Saímos para não discutir e não discutiremos. Mas saímos com uma imensa carga de luz de vida, com amor no coração. É muito difícil alguém chegar a poder dizer isto, mas eu digo que nós somos um grupo de gente que saiu por aí trabalhando pelo Bem. E quem quer que – na polícia, na imprensa, no inferno – queira nos atacar ou nos atrapalhar, estará trabalhando para o Mal.

Gil e Chiquinho são enviados para um instituto psiquiátrico perto de Florianópolis, onde permanecem por duas semanas até serem libertos e levados para o Rio, onde foram obrigados a se submeter a tratamento ambulatorial no Sanatório Botafogo. Frente a postura da polícia, de tentarem utilizá-los como exemplos no combate ao uso e a um suposto vício em drogas, Gil toma a postura corajosa de se manter firme em sua postura ideológica pela liberação do uso da maconha. João Santana, um jornalista baiano então conhecido como Patinhas (e que depois ficaria famoso como marqueteiro político do Partido dos Trabalhadores, responsável por campanhas presidenciais), realiza na época uma longa matéria acompanhando a prisão de Gil, “O fumo não é deus nem diabo”. Na longa entrevista que finaliza a reportagem, Gil declara:

Na verdade, depois que experimentei a maconha, passei a fazer uso dela, tive possibilidades realmente, digamos assim, de aparar certas arestas que eu mesmo encontrava no meu ser, na minha personalidade. Tive oportunidade de enfrentar o medo do mundo e o medo da vida. Ou seja, tornou-se um aliado meu, como diz Carlos Castañeda. Quer dizer, me deu condições de ver melhor certas coisas, de me colocar melhor diante da complexidade do mundo de hoje. Então eu não posso ficar mentindo, não tem sentido eu ficar dizendo, por causa das crianças ou por causa de não sei o quê, que é um mal e não sei o quê.

Eu sei que, por exemplo, a coisa da droga tem esse caráter mais cuidadoso, mais perigoso, porque são coisas que agem diretamente no centro gerador de ideias, no centro gerador do destino da humanidade. Ou seja, a forma com que a humanidade se autoencaminha é a cabeça, a cabeça é o centro de tudo. Então, pode ser que se dê muito mais cuidado aos efeitos da droga sobre a mente do que aos efeitos da manga sobre o sangue.

Agora, é uma questão de valor, também. Eu, por exemplo, que fiz macrobiótica e aprendi que o corpo é o templo do espírito, dou muita importância ao meu corpo. Pra mim, em determinadas épocas, era muito mais perigoso comer coisas supercondimentadas, comer enlatados, que contêm produtos cancerígenos, do que fumar maconha. Uma coisa eu sabia que ia me fazer muito mal, mais mal que a outra. É um problema de cada um.

Ao contrário da primeira vez em que foi preso, em 1968, agora Gil estava atento e forte, preparado para enfrentar a situação de cabeça erguida. Anos depois, declararia: “A prisão foi traumática, mas minha atitude de dizer a verdade virou uma coisa pedagógica e hoje faz parte da história da MPB”.

Logo, estava de volta à estrada. O médico que o atendeu na clínica carioca o receitou a “laborterapia”. Não poderia ser melhor: retomou a turnê do Refazenda, que atravessou praticamente todo território nacional. E, no começo de 1977, viajou com Caetano Veloso para Lagos, na Nigéria, para participar do Segundo Festival de Arte e Cultura Negra, numa experiência transformadora de entrar em contato com a cultura africana, que se desdobraria no disco seguinte, Refavela, o segundo da trilogia “Re”.

Na volta do festival, Gil realizou uma longa entrevista para o jornal Invasão, onde contou o que presenciou no festival, com apresentações de artistas e grupos de diversos países africanos, como Angola, Moçambique, Congo e Costa do Marfim. Gil relata a experiência de ter percebido o choque entre a pobreza econômica e  a riqueza cultural do continente africano:

Uma das substâncias básicas do ir ao festival na Nigéria, de estar ali, era ficar vendo toda aquela coisa étnica, que era muito interessante para nós. Era observar a África como humanidade, não é? Em observar como é que está o homem lá, como raça, como busca do ser.

Observar que o que se poderia chamar de religiosidade na minha música, a partir do aspecto negro, para eles é uma coisa que não é conhecida nesse nível. Quer dizer, o que a gente chama de religiosidade africana para eles é vida. O candomblé, o ritualismo das tribos e o caráter místico da vida tribal são coisas do dia a dia para eles.

Para mim, a experiência foi como Juscelino dizia, de 50 anos em cinco. Esse festival para a Nigéria foram 10 anos em um mês. O festival tinha para eles como heráldica, como coisa eleita para significado, o esforço no sentido de organizar para operar. E isso realmente era louvável, bonito de ver.

Para eles tudo também foi muito importante. Foi importante para eles documentarem, por todos os meios, imprensa, televisão – eles ficarem sabendo quais são os reflexos da África no Brasil, nos Estados Unidos, na América Latina. Como é que se fala de cultura africana fora da África.

E a África é uma grande reserva. Você vê, quando pintou arte moderna foi lá, pintura moderna e tal, você vai ver tá tudo lá na África. O Picasso não tem nada, nada, nada, nada de novo, ele apenas copia integralmente tudo que já se fez lá. A música moderna, tá tudo lá na África, o teatro moderno, a expresão cênica moderna, a expressão corporal. Então, é isso mesmo, é uma grande reserva.

Até clarear… custa muito tempo. Tá lá, novinha. A alma você vê que é nova, ingênua, infantil. A vitalidade…

Refavela, o disco, registra o impacto dessa experiência africana, além do importante momento de retomada da cultura negra no Brasil. Ecoam lá os instrumentos, ritmos e timbres africanos, mas também dos afoxés do Ilê Aiyê e outros blocos que estavam se fortalecendo em Salvador, os sons do movimento Black Rio que tomava a cultura carioca, a consciência política e social do MNU, o Movimento Negro Unido. Com o tempo, especialmente nos últimos anos, Refavela tem sido repensado como um dos pontos altos da obra não apenas de Gil, mas de toda a MPB.

Em entrevista para Ana Maria Bahiana, na época do lançamento, Gil definiu seu olhar sobre o disco:

O disco ficou muito assim sobre o conceitual de Refavela mesmo, essa coisa de arte dos trópicos, comunidades negras contribuintes para a formação de novas etnias e novas culturas no Novo Mundo, Brasil, Caribe, Nigéria, Estados Unidos… Todas essas coisas, essas culturas emergentes como presença forte do dado negro. O disco acabou ficando uma coisa que eu diria 60% a 70% orientada nesse sentido, no sentido de manifestar essa visão desse universo.

O disco teria uma ideologia explícita, básica, que é essa minha, esse aspecto confessional do meu estado existencial, uma coisa que parece que já vem desde o Expresso 2222, está assim nos meus discos todos recentes, uma coisa que poderia ser vista… Aliás as pessoas da imprensa vêm querendo reivindicar como mais ideológico do disco, mas que eu não colocaria tanto como ideológico, mas como temático, que é essa coisa black, black jovem, Black Rio…

O disco tem um tom de reportagem da situação das populações negras das cidades. Tem também “Ilê-Aye”, que é justamente a música de uma agremiação negra da Bahia… “Somo criolo doido/ somo bem legal/ temo cabelo duro/ somo black pau”… Isso é um tom ideológico. Mas o que eu gostaria de evitar, gostaria de esclarecer como não necessariamente intencional no meu trabalho, nessa escolha de repertório e tudo, é um coisa política no sentido de uma política de negros contra brancos ou qualquer coisa.

É uma coisa que eu estava escrevendo, pra mim, comunidades negras, o Continente Africano especificamente, pra mim é uma reserva, mas não uma reserva no sentido de uma coisa que vai ter o seu momento particular pra si. A cor negra é como um combustível luminoso, vibrátil, que fornece uma espécie de energia pra toda a humanidade, da qual a humanidade está cada vez mais carente. Uma energia telúrica, tá entendendo? Ela dá no sentido principalmente da miscigenação que vai se fazendo cada vez mais no mundo. 

Embora o disco fosse primoroso em termos de composição e arranjos, Gil sempre se ressentiu do seu resultado final, especialmente em relação à mixagem. A questão técnica vira uma preocupação cada vez mais constante em sua produção artística. O que será ainda mais ressaltado com a experiência de gravar um disco no exterior, Nightingale. A proposta do disco nasceu depois da brilhante apresentação de Gil no Festival de Montreux, na Suíça, acompanhado da banda A Cor do Som, além do guitarrista Pepeu Gomes e do percussionista Djalma Corrêa. A repercussão do show fez com que surgisse o interesse de Gil criar uma carreira internacional.

Para tanto, Gil vai morar por um ano com a família em Los Angeles. Lá, grava Nightingale, com produção de Sérgio Mendes, e excursiona por várias cidades norte-americanas. Embora a carreira internacional de Gil não tenha deslanchado naquele momento, o disco traz duas contribuições importantes: um maior conhecimento técnico para gravar em estúdio e também uma sonoridade mais pop, marcada pela influência dos músicos que conheceu nos Estados Unidos, e que estaria presente nos seus discos seguintes:

Com Nightingale, eu conheci Michael Sambello, Stevie Wonder, Nathan East e Abe Laboriel, todo esse pessoal que já vinha e viria depois ocupar o espaço nobre da música pop californiana, com a fusão do pop e do rock que se iniciava naquele momento. E aí, com esse disco, fiquei muito tocado, muito estimulado por este tipo de coisa. Quando fui fazer o Realce, logo em seguida, aquela dimensão estava muito presente.

Realce, o disco que fecha a trilogia “Re”, lançado em 1979, é um dos maiores sucessos de Gil. Traz uma sonoridade dançante, que passa pela faixa-título, além da canção “Não Chore Mais”, versão de “No Woman, No Cry”, de Bob Marley, que se tornaria um dos hinos da abertura política que o Brasil estava vivendo na época e o compacto mais vendido da carreira de Gil, com mais de 750 mil cópias comercializadas. É também a consolidação da relação de Gil com o reggae, que conheceu ainda em sua estada em Londres, tendo acompanhado a cena de Portobello, centro de difusão da cultura jamaicana na Inglaterra. Em 1980, Gil chegou a se apresentar com Jimmy Cliff, outro grande nome do reggae. E, em 2001, fez o disco Kaya N’Gan Daya,

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