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Entrevista: Ailton Krenak

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Eu já havia conhecido o Ailton Krenak em meados dos anos 1990, quando andando com a minha irmã Clarice, que é antropóloga, pelas ruas de Olinda, no Pernambuco, encontramos por acaso ele e o cineasta Vincent Carelli, criador dos Vídeos nas Aldeias. Fomos então para a casa onde estavam hospedados e fiquei fascinado com as histórias dos dois, Vincent contando sobre a picada de uma arraia no Xingu e como se jogava contra as paredes de tanta dor. Reencontrei Ailton anos depois, quando ele começou a se hospedar na casa do saudoso João Fortes, no Rio de Janeiro, que era geminada à minha numa antiga vila de operários. Daí, conversando com ele, propus publicar um livro de suas entrevistas e depoimentos na coleção Encontros – A Arte da Entrevista. Ele topou na hora (anos depois, relembraria dessa história numa conversa com o rapper Emicida, dizendo que ele me respondeu que não escrevia textos, e que eu retruquei que suas falas eram textos – Ailton disse que foi naquele momento em que se tornou escritor). Foi um projeto desafiante, com anos de pesquisas para conseguir reunir as entrevistas realizadas por Ailton em então três décadas de atividade. Para finalizar o volume, realizei uma entrevista inédita com ele, em 2013, que foi originalmente na revista Nau, que eu estava editando. O livro da Encontros saiu em 2015, com organização minha e apresentação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, e acabou sendo de grande importância para a trajetória de Ailton Krenak, mostrando para o público não só a sua importância política, mas também que ele é um dos maiores pensadores vivos. [Sergio Cohn]

Como começou a sua atuação como liderança indígena?


Eu sempre me vejo diante dessa pergunta, porque eu mesmo também me faço, e é muito comum que as pessoas que trabalham comigo façam quando ganham um pouco mais de intimidade. Elas perguntam: “Ailton, quando foi que você passou a ser porta voz de índio?”. Aí fico me buscando, dou uma regredida e acabo indo para minha infância. Porque remete ao incômodo que eu sentia quando era moleque, de perceber que o outro que me olhava estava sempre me inquirindo, perguntando uma pergunta tão besta, que era “de onde você veio?”. Quando os colonos da nossa região me viam, geralmente, me chamavam de “Cabo Verde”. Provavelmente eles eram da colônia portuguesa e acharam que eu era do Cabo Verde, lá na África. E eu ficava irritado com aquilo. 50 anos depois, as pessoas me encontram no meu gabinete de trabalho ou em uma rua em Belo Horizonte e me perguntam: “o senhor é peruano?”. Ou indiano, ou árabe. Aí eu pergunto para os brasileiros, meus patrícios, por que é mais fácil você identificar um peruano, um indiano, um boliviano, ou até um japonês andando nas nossas ruas e não aquele que é índio, um nativo daqui?
E o outro desconforto era me identificar como índio, porque índio é um erro de português, plagiando o Oswald, que disse que quando o português chegou no Brasil estava uma baita chuva, aí ele vestiu o índio, mas se estivesse num dia de sol o índio teria despido o português, e estaria todo o mundo andando pelado por aí. Isso continua valendo até hoje, e eu atualizei dizendo que índio é um equívoco de português, não um erro, porque o português saiu para ir para a Índia. Mas ele perdeu a pista e veio bater aqui nas terras tropicais de Pindorama, viu os transeuntes da praia e acabou carimbando de índios. Aquele carimbo errado, equivocado, ficou valendo para o resto das nossas relações até hoje, e a resposta para uma pergunta tão direta e simples, poderia ser tão direta e simples quanto. Quando foi que eu atinei que eu tinha que fazer essas coisas que eu ando fazendo nos últimos 50 anos da minha vida, que é quase que repetir o mesmo mantra, dizendo para esse outro: “ô, cara, essa figura que você está vendo no espelho não sou eu não, é você, esse espelhinho que você está me vendendo não sou eu, isso é um equívoco”?
Isso saiu do sentimento para a prática na pista dos meus parentes mais velhos do que eu, que estavam sendo despachados da zona rural para as periferias miseráveis do Brasil, o que acontece em qualquer canto, no Norte, no Sul, em qualquer lugar. No Rio Grande do Sul, que é tudo bonitinho, arrumadinho e alemão, também tem periferia, miséria, pobreza. As pessoas têm feito um saneamento mental a imaginar que algumas áreas do nosso país são tão bem colonizadas que já não tem mais favela, banalização do crime, miséria transbordando da beira dos córregos e dos esgotos. Mas na verdade não tem um lugar do Brasil onde a miséria não transborde, só quem é cego ou já perdeu o olfato é que não sente o cheiro de merda. As relações entre as diferentes culturas e povos que vieram se juntar aqui no Brasil são reflexo desse estado ambiental que estou descrevendo. Por isso são tão desqualificadas. As pessoas se relacionam de uma maneira tão ostensiva, os pobres ostentam sua raiva e miséria e afrontam os outros com seus 38 mm quando podem, os ricos afrontam todo mundo com sua arrogância, com seus shoppings center e seus mercedes benz, como se a gente estivesse numa corrida maluca onde ninguém tem lugar para chegar, mas todo mundo está correndo.
Eu convivi um pouco com a Danielle Miterrand nos últimos anos de vida dela. Depois que o marido dela, François Miterrand, morreu, ela passou a vir no Brasil uma vez por ano. Em alguns casos mais de uma vez. Sempre engajada em campanhas muito importantes. Uma dela era a campanha por um bem inalienável, de que nós todos precisamos, que é a água. E Danielle viu que a água passava por um processo de virar commodity, e grandes empresas, Coca-Cola, Nestlé, estão comprando as fontes de água naturais do planeta e botando tudo isso no balcão. Cada vez mais as pessoas vão ter acesso ao esgoto e cada vez menos a uma água pura para beber. Você imagina que coisa mais chata se quando você quiser tomar água pura, não puder ter acesso a ela por causa da barreira econômica que haverá em torno? E haverá os povos com água e povos sem água, da mesma maneira que nós já temos os com grana e os sem grana, sem terra e com terra, a gente vai ter os sem água e os com água. O alerta sobre essa questão da água que a Danielle trouxe para essas bandas mobilizou a visita de alguns xamãs da América do Sul, da Colômbia, do Peru, do Brasil. Ela levou uns sábios mesmo de um povo que vive na serra de Santa Marta, lá no litoral do Pacífico, e mais alguns amigos meus para uma turnê com ela na França para conscientizar a Europa, falando sobre a política de mercado que estava cuidando dos recursos naturais. Aí um dos pajés, de um povo lá do Pacífico, assistindo à fissura dos europeus de abrir estradas, mudar a natureza, mudar a paisagem, furar a terra, abrir canais, represas, tudo, disse que olhando essa fissura de transformar o planeta, que queria perguntar para os brancos: “essa pressa toda com que vocês estão andando está levando vocês exatamente para onde?”. Essa pergunta também é minha. Acredito que esse lugar da minha infância, e de outras pessoas também, era um lugar onde as pessoas podiam nascer, crescer, morrer na natureza buscando tudo o que precisavam para viver. Pessoas e recursos estavam mais ou menos perto. As relações das pessoas nesses lugares tinham alguma qualidade, aí quando nós começamos a ser invadidos por todos os lados, olhos, nariz, ouvidos, os sete buracos na nossa cabeça, a partir daí pudemos entender tudo quanto é provocação externa.
Os índios que viviam na região da minha família, os Krenak, foram quase todos expulsos dos seus territórios de origem e despachados para qualquer lugar, sem endereço. Cinco, seis gerações depois desses despachos, muita gente ficou totalmente sem saber seu endereço de origem, saber de onde veio. E aí a pergunta do português: “você é de Cabo Verde?”, pode ser de qualquer lugar do mundo, não faz mais diferença, porque esse índio foi arrancado do seu território cultural, lugar onde tudo tem significado para ele e foi perambular pelo planeta onde cada coisa que ele vê inaugura um significado novo para ele, mas ele não tem mais certeza de nada.

A partir dessa sensação de desterro, você foi buscar sua identidade?


Eu me agarrei a essa pergunta e fui fundo na busca dessa identidade. Eu sabia desde o começo, antes até de existir a ideia de movimento indígena, que a minha escolha pessoal de desvelar essa identidade abria um front do cacete, porque identidade implica reconhecimento de direitos, invenção de novos direitos, criação de novas personas. A erupção de novas identidades significa novos direitos, outros parâmetros de relação. E quem está fazendo esse enunciado tem que se preparar também para comandar a guerrilha, a guerra, onde recua a retaguarda e avança a vanguarda, onde avança a retaguarda e recua a vanguarda. Acho que em todos os sentidos, quando os sem terra, quando os primeiros líderes atinaram para a ideia de que havia gente que não tinha acesso a lugar para plantar, uma terra, um lugar para si e começou um reclamo tímido por terra, ele resultou num movimento imenso no Brasil que foi o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tão imenso que gerou muitas crias. Algumas dessas expressões se traduzem depois em poder político, novas forças dentro da sociedade que a gente vive. No caso dos índios, o enunciado de uma identidade significa reivindicar o Brasil de volta.

Você tinha outros índios na mídia, na imprensa, outro lugar que pudesse lhe servir de…


Exemplos? Não, porque não era um momento muito positivo para esse tipo de expressão, porque vivíamos um período na América do Sul inteira, no Cone Sul inteiro, que só tinha general mandando. No Chile, na Colômbia, todo lugar, estava o pau quebrando. Já era a ditadura do Pinochet, do Geisel e da turma dele. Só tinha monstro na periferia. E aqui no eixo tinha gente dizendo que éramos uma ilha da paz e o pau quebrando. O milagre brasileiro… Tem um camarada de quem vim a me tornar amigo depois, chamado Shelton Davis, esse cara é um consultor do Banco Mundial nesses programas de desenvolvimento para a América Latina, ele foi incumbido de fazer um relatório sobre o Brasil na década de 1970; quando ele terminou o relatório dele, tinha criado briga com quase todos os governos da bacia Amazônica e, principalmente, tinha se tornado inimigo do governo brasileiro, ele publicou um livro chamado Vítimas do milagre. Livro que fala da destruição, mesmo. Ele mostra quando o Brasil descobriu que podia se destruir do ponto de vista ambiental, porque o Brasil vira um canteiro de Transamazônica, de Perimetral Norte, essa coisa que o governo da Dilma fica fazendo de conta que está inaugurando, não está inaugurando, só pegou o pacote da ditadura, deu uma escaneada, potencializou com as novas tecnologias e está mandando brasa. O Geisel assinaria numa boa esse pacote da Dilma. Do ponto de vista do conceito e os procedimentos que eles usam é o mesmo. Não mudaram nem o estilo. Aquela imensa tragédia que estava anunciada para a cabeça dos índios em todos os cantos da bacia Amazônica provocou um despertar de índios que ainda estavam acendendo fogo com palito, girando vareta na mão, e índios que estavam fazendo curso universitário em Brasília, bolsa de estudos da Funai, ou que estavam com algum contato privilegiado com informação sobre os brancos, sobre os instrumentos dos brancos, governança e tudo. E eu me juntei com essa geração, a primeira geração de índios que estavam sendo expulsos das suas origens para uma espécie de convergência não programada de ideias. Foi isso que permitiu que um menino Xavante, outro Bororo, Guarani ou Kaingang, uns com alguma diferença de seis anos, dez anos um do outro, mas todos com experiências próximas, começassem a cerrar fileiras numa frente que a gente chamava de movimento indígena.

Começaram a se encontrar onde? Quando sentiram que eram vozes que se somavam?


Não teve evento de inauguração tão delimitado. Lógico que toda narrativa acaba elegendo um ponto de partida para si e o pessoal fala que houve um primeiro Encontro Nacional dos Índios. Quem fala isso são os amigos dos índios, os missionários, os antropólogos, os promotores desse primeiro encontro. Mas muitos dos índios que estavam lá não sabiam que aquilo era um encontro, nem que era o primeiro. Alguns daqueles caras estavam se vendo pela primeira vez naquela reunião grande ali em São Paulo, outros já se conheciam. Se já se conheciam, como podia ser o primeiro encontro deles? Estavam a três ou quatro anos fazendo militância, viajando, encontrando uns aos outros, indo para as aldeias.
Fiz minha experiência inicial não foi em encontro, mas batendo estrada, indo visitar junto com um ou outro companheiro lugares que estavam numa pior. Onde os índios não podiam nem levantar a cabeça, porque os vizinhos estavam fuzilando eles, e isso era desde os Kiriri no Nordeste até os Kaingang no Rio Grande do Sul, ou os Bororo no Mato Grosso. Os jornais não davam notícias do que acontecia com os índios, que existiam menos ainda do que hoje. Hoje eles conseguem invadir a tela, invadir terra e tela, duas paisagens que eles aprenderam a ocupar. Acho que o termo invadir pode ser mal entendido, pode dar mais sentido à carga agressiva e simbólica do que ao significado positivo do termo ocupar.

Que tem sido muito usado, Ocuppy Wall Street.


E ocupar é positivo, invadir é chutar a porta. E na época que estávamos ocupando não tinha jeito, tinha que chutar a porta mesmo. De bancos, de grandes corporações que estavam se implantando em cima dos territórios indígenas de maneira definitiva. O próprio governo, com os projetos de infraestrutura dele, estava se implantando nos territórios indígenas. A gente não podia ocupar, tinha que invadir, e tínhamos que confrontar quem estava fazendo essa invasão. Desde bancos que descobriram que podiam receber de massas falidas as terras dos índios como garantia por suas falências, até o próprio governo, governos estaduais, federal dando a terra dos índios em barganhas com interesses diversos, com o setor de mineração, com o pessoal de colonização. O próprio Incra vinha e botava o mapa deles em lugares sem perguntar se o índio estava ali e loteava a terra dos índios, o Instituto Nacional de Reforma Agrária. Nós tivemos mais da metade das terras do Mato Grosso, inclusive o Parque Nacional do Xingu loteado pelo Incra. Será que as pessoas sabem que o Xingu já foi várias vezes loteado?

Conseguiram resolver isso?


Mas você sabe quanta gente teve que morrer para resolver? Morrer, militar, se expor à violência, enfrentar a polícia, enfrentar o exército, interditar estrada. Aí quando as pessoas veem no jornal: “Índios fazem reféns os funcionários do governo, servidores da Funai”, eles não estavam vendo, não sabiam o que estava acontecendo na vida dessas pessoas. De uma hora para a outra parecia que os índios tinham estourado a tela e voltando para mostrar que era verdade todas aquelas fantasias que as pessoas tinham sobre índios montados a cavalo, correndo com a machadinha na mão. Essa caricatura que muitos brasileiros tinham só começou a ser desfeita quando índios de carne e osso começaram a aparecer nos programas jornalísticos, entrevistas com a Miriam Leitão, com o Alexandre Garcia, que são os porta vozes da Casa Grande. Porque quando estou dando entrevista ao Washington Novaes, ao Heródoto Barbeiro, quando estou discutindo um assunto desses com algum editor de jornal ou revista dessas na década de 1980 ou 1990, uma entrevista de uma página inteira para o Correio Brasiliense, ou quando o Marcos Terena vai para as páginas amarelas da Veja, ou quando Paulinho Paiakan aparece como grande bandido na capa da Veja na Eco-92, bem ou mal, as pessoas estão entrando em contato com índios que suam, que transpiram, têm medo, carne e osso. Alguns têm até RG.

Lembro da minha infância, de quando vi primeiro o Juruna e outras lideranças indígenas falando na TV, e outro dia revi uma entrevista dos anos 1980 com o Aleixo Pohi Krahô, elas eram feitas com todo o grau de preconceito e ridicularização possível. Havia uma conquista de voz ali que era terrível, porque vocês tinham que lidar com todo tipo de afronta.


A entrevista já era uma afronta. Quando o repórter ou o âncora se dirigia à gente ele inquiria a gente. Não era entrevista, era inquirição. O cara vinha mandando todo o preconceito do imaginário que as pessoas supunham na cara da gente, você sacou muito bem. De quando é essa entrevista com o Aleixo Pohi Krahô?

É de 1984, 1983. É de uma novela em que o Stênio Garcia era um índio e o Aleixo Pohi Krahô aparece falando que o Stênio não era índio, não representava os índios, e pede para falar, mas não deixam ele explicar. Criar a voz também deve ter desdobrado em mortes.
Mas não tenha dúvida. Muitos foram executados pela Rolleflex e nunca mais. Essas execuções aconteciam, às vezes, seletivamente, alguns caras que nunca iriam ter algum lugar para ocupar na tela e em alguns casos, coletivo, uma acusação genérica: “Índio não”. Aí nessa trajetória eu comecei a perceber uma coisa em reflexo. Como percebi que tinha um lugar de representação de poder dos brancos que a gente não ia conseguir nenhuma visibilidade se não conseguisse ocupar alguns pedaços, decidi muito cedo a começar a fazer uma mimetização para ocupar o lugar do cara que fala na tela. A primeira coisa que fiz foi propor para meus colegas do tal movimento indígena que estava nascendo que a gente tinha que ter um boletim, um jornal. Aí começamos a fazer uma coisa que se chamava Jornal Indígena, em São Paulo, na PUC. O pessoal do direito tinha que pegar causas populares e defendê-las pra concluir o curso, como se fosse uma residência dos estudantes. Aí virei colaborador dessa turma do direito, apresentava casos de violência contra os índios para esses advogados e eles queriam que eu transformasse essas denúncias em artigos. Artigos de denúncia. Então comecei a escrevê-los nos boletins que eram enviados para 300 aldeias no Brasil. Depois eu descobri que um boletim escrito não ia cumprir a missão, então comecei a gravar fita cassete. Cada boletim era sonoro, ele foi virando programa de rádio, o Jornal Indígena foi virando um Programa de Índio, radiofônico, que chegava a 600 aldeias. Uma fita cassete num envelope lacrado chegava ao rio Solimões, ao rio Negro, chegava aos ribeirinhos da floresta amazônica na década de 1980.
Um dia chego a uma aldeia e escuto minha voz na fita, e os índios me falam: “Ailton, essa fita é aquela entrevista que você fez sobre os direitos dos índios, à terra, à língua, à cultura. A gente toca ela todo dia na reunião da tarde”. Naquele tempo não tinha ainda a disseminação de televisão, o aparelho receptor de televisão ainda era uma novidade. Só na década 1990 o aparelho de televisão fica mais banal, e depois com o advento do vídeo e do celular e tudo, aí foi explodindo essa tela toda na cara de todo mundo. Mas a tela por qual a gente lutava para ocupar um milímetro dela era muito mais rígida, dura. Hoje a tela está líquida, a tela de que quebramos um canto para entrar era de pedra. Hoje é líquida, porque eu mesmo posso gerar a minha imagem, o conteúdo e disseminar ele por aí, mandar como um vírus. Antes não havia essa possibilidade, estávamos num bloco tão fechado que, ou éramos aceitos pelo editor, ou não íamos ao ar. Podia ser a Tupi, a Record, o Canal Brasil, a Globo, a Bloch, o que for. Na revista Manchete entrava quem o dono deixava entrar.

Ou o que é pior, deixava entrar e editava a fala para virar uma fala dele.


Geralmente quando os índios saíam na Manchete era a fala do dono, os índios eram usados só para ilustrar. Tinha um grande jornalista da Manchete que ia em todos os Kuarup do Xingu, parecia o National Geographic, todos os Kuarup eram iguais, como se fossem um balé, um balé Bolshoi que se apresentava uma vez por ano. Ele era despersonalizado, qualquer sentido real que ele tivesse, que a vida das pessoas estava sendo cortada por uma estrada, que os índios estivessem morrendo de tuberculose, ou de gripe, surtando e morrendo lá na Escola Paulista de Medicina tentando salvar, não aparecia. Grupos inteiros, tribos que eram de 130, 150 indivíduos foram reduzidos a 15 indivíduos, pior que uma guerra química. Então eles matavam aquele tanto de gente, as revistas davam as notícias pasteurizadas, parecia que era totalmente normal. Aí quando essas pessoas começaram a ganhar voz, falar, apareceram coisas incríveis. Eu acho que teve uma descoberta do Brasil pelos brancos em 1500, e depois uma descoberta do Brasil pelos índios na década de 1970 e 1980. A que está valendo é a última. Os índios descobriram que, apesar de eles serem simbolicamente os donos do Brasil, eles não têm lugar nenhum para viver nesse país. Terão que fazer esse lugar existir dia a dia. Não é uma conquista pronta e feita. Vão ter que fazer isso dia a dia, e fazer isso expressando sua visão do mundo, sua potência como seres humanos, sua pluralidade, sua vontade de ser e viver. Não botando uma questão de índios em cima da mesa e dizendo: “estou aqui para viver essa vida de índio”. Mas ele vai ter que criar seus filhos diante de uma nova realidade. Hoje acho que não tem quase aldeia nenhuma que não tenha escola da rede de educação no Brasil instalada lá dentro da aldeia, vinculada à superintendência de ensino regional, onde o português é uma das línguas obrigatórias dentro de sala de aula, em alguns casos é a única língua. As línguas maternas são admitidas, mas não são as que ocupam preferência do lugar da língua que a língua materna deveria ficar. Nós estamos experimentando várias camadas de colonização simultaneamente. Ao mesmo tempo que você é convidado a ter uma escola dentro da sua aldeia, você também é convidado a esquecer todo o repertório da sua cultura e começar a atualizar seu repertório para negociar as condições da sua sobrevivência. E eu não vi grandes avanços da década de 1990 para cá. Tudo que a gente conquistou foi da década de 1970 até o final da década de 1980, com o advento da Constituinte de 1988. De lá para cá foi como se a gente tivesse entrado no cheque especial e só está patinando. Como se a Constituinte tivesse sido o cheque especial.

Você precisou, não sei se foi buscar, ou se apareceram alianças externas nesse processo. Os estrangeiros foram muito importantes na sua trajetória. Como isso aconteceu?


Talvez a gente pudesse considerar que externo, na verdade, não tem que ser estrangeiro, nesse caso. As alianças foram de todas as direções. Penso que partindo do evento de os índios olharem para fora, toda a relação é estrangeira. Os Krenak criaram a expressão para designar esse outro, chamam de craí. Craí, que é parecido com aquele outro caraí, que os Tupi, os Tupinambá, nossos parentes do litoral chamavam o estrangeiro. O estrangeiro francês, português, qualquer um deles. É um outro que ainda não tem lugar na sua constelação, na sua cartografia. Ele ainda não tem janela para ele. Quando abriu a janela e ele entrou, ele entra já nomeado, numa categoria de aliado. Vira cunhado, irmão, primo, vira txai, amigo. Incluído, mas é incluído e alocado. Não é uma inclusão aberta, que você está incluído e pronto, é incluído dentro de uma categoria. Esses aliados foram sendo alocados. Aí você tinha claramente aquele aliado da Europa e que o front dele era a formação da opinião pública lá com relação ao que acontecia com a gente aqui na América do Sul. O cara poderia ser do Conselho Mundial de Igrejas, de uma grande organização humanitária, daquela Pão para o Mundo, de uma rede do tipo Médicos sem Fronteiras, uma fundação de cooperação internacional que estava na Inglaterra com projetos na Ásia, África e América do Sul. A gente foi qualificando esses aliados, buscava aliar esses tipos de competência que achava importante para nós, e sabia também que os índios não iam fazer isso. Nenhum de nós ia virar especialista e ficar na Europa fazendo opinião pública, mas íamos ter aliados que fariam isso na Europa, na língua deles, no país deles. A gente sabia que éramos poucos e que não tinha gente para ocupar todos os espaços, então tivemos que nos replicar nos nossos aliados. Eles é que passaram a ocupar espaços que precisávamos, e os aliados nos vocalizavam nesses espaços. Vocalizando através de uma rede enorme de aliados, de parceiros e tal. Essa experiência de rede, eu fui sacando na minha cabeça essa dinâmica de rede antes de existir a coisa da web. Eu já experimentava a atuação em rede, porque sabia que estava no Brasil, no Mato Grosso, mas tinha um cara na Holanda que não falava português, nem eu holandês, mas que sabia que eu estava fazendo aquela trajetória e ele estava divulgando aquilo. Eu tinha certeza que ele estava fazendo isso, e que aquilo resultava em potência para o que eu estava fazendo. Isso é rede. Na mesma hora que eu estava indo para uma situação de risco, que amanhã eu poderia estar preso ou morto, tinha um cara levantando fundos lá na Holanda para eu continuar fazendo hoje, amanhã e depois de amanhã. Isso é rede, cara. E não tinha contrato, protocolo. Era uma relação de confiança, que eu chamei de alianças afetivas. Como eu estava na frente da comunicação, bolei uma coisa e arrumei um lugar para mim nesse arranjo novo que estava surgindo no movimento indígena, o lugar da Coordenação Nacional de Publicação. Isso porque naquela época, na década de 1980, fazer um boletim e um cassete que chegava para 300 aldeias, para 600 aldeias, era um trabalho de tempo integral fantástico, impressionante. Tanto que no final da década de 1980 eu tinha uma bolsa da Fundação Ford que me apoiava para eu continuar fazendo a Coordenação Nacional de Publicações. Mas aí eu já estava acumulando essa comunicação nossa com o fato de ser o coordenador político, executivo do movimento indígena, e já tinha uma agenda totalmente invadida por aeroportos, por Nova York, pela Europa. Ia para reuniões com o Banco Mundial, com a ONU, viajava pelo mundo, estava em tudo quanto é conferência. Quando virou a década de 1980, preparatória para a Rio-92, eu passava metade do ano viajando fora do Brasil.

Pensando nessas alianças afetivas, hoje, sempre que um ruralista quer agredir ou depreciar o movimento indígena, ele fala: “isso são as ONGs internacionais tentando invadir o Brasil!”. Naquele momento, quando as alianças internacionais começaram a aparecer, já tentaram desmoralizar essas alianças como enfraquecimento do Estado-nação brasileiro?


Você acertou de cara. Foi uma coisa reflexa. Quando a gente conseguiu ser efetivo na mobilização dessa rede, que nós conseguimos projetar antes de existir a Internet no mundo inteiro, a reação aqui dentro foi imediata. Os primeiros a dizerem isso não foram os ruralistas ou os empresários, mas os próprios militares, o Serviço de Segurança Nacional, que ainda estava atuante e agressivo naquele período. E a mídia institucional, grandona, começou a repercutir isso, dizendo: “os estrangeiros estão de olho na Amazônia! Estão usando o pretexto de proteger os índios e a floresta para invadir a Amazônia!”. Eles começaram a reagir com esse…

Terrorismo informativo, digamos assim…


Sim. Surgiu essa reação. Já que a gente estava sendo bem-sucedido numa campanha de opinião e na vasta e visível ampliação duma rede de alianças afetiva que juntava tudo, desde jovens roqueiros, o Sting só veio aparecer depois, mas a gente já juntava músicos lá atrás. Ele não apareceu de uma hora para a outra, mas sim porque o pessoal, o movimento musical, inclusive os punks, já tinham muita ligação conosco. Os punks da Alemanha, os punks da Inglaterra faziam doação para campanhas dos índios de proteção da floresta. Eles recebiam os índios em Bonn, em Bremen, em escolas na Europa e faziam durante uma semana campanhas de fundo que levantavam dinheiro que davam para os índios fazerem 20, 30 assembleias aqui na Amazônia. Eles sabiam, tinham conexão. Também no Canadá, a gente tinha relação com todo o mundo. Aí o que aconteceu? O governo começou a criminalizar algumas dessas lideranças indígenas. Eu mesmo, em vários momentos, sofri constrangimento. Se existisse a palavra bullying, eu diria que era bulinado o tempo todo, porque quase todo gol que eu tentava fazer, vinha um cara me canelando. Eu recebia cartão vermelho, canelada e tudo. Qual que era? Era não deixar esse movimento existir de verdade, se constituir. Porque se acontecesse, ele viria a ocupar, mesmo que minimamente, um espaço que desde a Primeira República é ocupado por um tipo de gente só, que são os donos de terra. No sentido real, que ocupam e dominam espaços territoriais, até os caras que são donos simbólicos de terra, que são os coronéis, os que mandam na política brasileira e que dominam o Senado, como Renan Calheiros, como Sarney, que dominam a política desde a década de 1950. Eu nasci em 1953. Quando eu nasci o Sarney já mandava na política do Brasil, e ele manda até hoje. Existe um exemplo pior do que esse para dizer que estávamos disputando um lugar na tela com poderes tão consolidados? Eles não querem que nem um milímetro dessa tela seja ocupado por outra voz ou por outro ruído de comunicação que não seja o hegemônico, o deles.
Isso não acontece apenas com os índios. Acredito que até o que eles chamam de crime organizado seja a mesma coisa. Eu desconfio que o crime organizado não seja tão organizado assim, da mesma maneira que eles atribuíam aos índios uma aliança que a gente nunca cogitou, de construir com os estrangeiros para ocupar e invadir a Amazônia, eu tenho dúvida também se tudo que eles atribuem ao crime organizado se é mesmo verdade, ou se tem muita gente aí que domina esses espaços, que ocupa as prisões, que tem as prisões como territórios políticos deles e que não vão deixar ninguém disputar com eles, não. Se você tiver na senzala ou na cadeia, isso não quer dizer que você domina o espaço da senzala e da cadeia. Você pode estar em espaços que já são pré-determinados. Você está na senzala, mas quem tem o mapa de lá e governa e mobiliza não é você, mas sim gente que está fora. Da mesma maneira que os índios têm lutado nos últimos 30 anos para se fazer ouvir de um lugar totalmente ignorado, devem existir outros segmentos da vida do nosso país que berram e que ninguém escuta de onde eles estão, porque tem gente que é dona dos lugares de onde eles estão berrando e não vai deixar a voz deles sair desse lugar. Eu não consigo pensar na luta que eu participei para conquistar uma voz, eu não consigo pensar nessa trajetória sem pensar em todos os outros possíveis caminhos paralelos ao meu que fazem a mesma busca e que não têm visibilidade. Quando no final da década de 1990, quando começou essa discussão da política de reparação para os negros, que se desdobrou depois…

Nas cotas…


Sim, mas também na ampla reivindicação dos negros com relação à terra para os quilombolas, acesso à educação, à saúde, à representação nos quadros, nos lugares, nos empregos que existem, depois nos assentos dos tribunais, nos ministérios; quando começou essa conta, o desconforto, a irritação dos caras que sempre estiveram no controle da vida política econômica do país foi tão grande que eles reagiram da mesma maneira que contra os índios. Reagiram dando porrada para todo lado, desqualificando a demanda dos negros, dizendo que esse negócio de cota é uma palhaçada, dizendo que você tem entrar pelo caminho do vestibular na universidade, da meritocracia.

Os negros foram solidários ao movimento indígena? Quando começou, eles entenderam?


Tem uma história de que os negros e os índios cooperaram entre si nos quilombos, que eu desconfio que isso não tenha acontecido. Tem um mito sobre o Quilombo de Palmares de que ele foi fundado pela três raças, eu acho que é uma colagem do mito…

Para inventar um Brasil solidário, cordial…


Pré-capitalista, pré-moderno. Eu não acredito que tenha acontecido isso de verdade, porque quando experimentei fazer, levantar isso que chamamos de movimento indígena não houve contato, ligação. É como se a gente rodasse em pistas paralelas, tão distintas umas das outras que a gente não se encontra. E uma das explicações que eu me dava era o seguinte: no Brasil os índios são do mato, e os negros da cidade. Negro no Brasil é urbano.

Mesmo nas pequenas cidades?


Negro é o Pelé, entendeu? É o Gilberto Gil. O Abdias do Nascimento. Quem mais que é negro? Negro do sentido de trazer com ele, representar uma coisa… Milton Gonçalves. São todos urbanos. Negro no Brasil é urbano, não adianta vir querer dizer que tem negro rural.

E o quilombola?


É também uma construção, que aconteceu na Constituinte de 1988. Mas, o que é principal para se pensar, é que muitos desses quilombolas estão também reinvidicando espaços urbanos. São terreiros e outros sítios que são considerados sítios simbólicos, mas que incidem sobre espaços urbanos. Aí o pessoal reivindica esse espaço, mas acho que é menos do espaço físico e mais o reconhecimento, ter voz. O grande reclamo é menos por coisas e mais por visibilidade, voz. Quando dizem que os negros são invisíveis, ou os índios na nossa sociedade, eu digo que a mobilização dos índios e dos negros é por visibilidade. Menos por acesso a coisas, as que dão o poder, que são efetivas formas de representação do poder político, que é acesso, domínio, controle sobre áreas, territórios, bem materiais, e tal. Juntos reivindicam menos o acesso a esses lugares físicos e mais a esse lugares simbólicos de reconhecimento.

O problema é que o que mais as pessoas temem é a visibilidade desses povos.


Acho que aqui estamos fechando o ciclo da nossa reflexão, porque essa contestação dialoga com a pergunta que abriu essa conversa nossa, que foi o que disparou em mim a consciência de atuar como liderança. E aqui chegamos ao mesmo ponto da minha resposta inicial. Quando você consegue ocupar esse lugar simbólico, da representação, você se potencializa para ocupar o lugar de fato, reivindicar o território, dizer: “isso aqui não é terra do branco, do fazendeiro, do banco, é terra dos meus ancestrais, dos meus antepassados. Eu vou viver aqui, quero viver aqui, ela tem significado para mim. Essa montanha é sagrada, ela tem um humor, ela fala; eu desperto pela manhã e vejo o semblante da montanha e sei se ela está feliz, irritada, bem, descansada, repousando. A montanha fala comigo, porque eu me reconheço nesse lugar. A hora que me tiram daqui e me jogam em qualquer canto eu não ouço mais a voz da montanha, e não escuto mais em que linguagem o rio está falando. Se eu não entendo a linguagem do rio, ele vira um esgoto para mim. Se a montanha não fala comigo, eu posso pegá-la e jogá-la em cima de um trem e mandá-la para um depósito de minério qualquer”. Porque você despersonaliza a paisagem, tira o sentido, esvazia o significado desta cosmovisão, dá um chute no castelo, e isso despenca. Se você não tem um imaginário, se você não ocupa um imaginário, se o seu coletivo não compartilha um espaço que é recriado o tempo todo pela alma, pelo espírito, pela cultura, pelo ambiente da visão, a visão da cultura, você está visando uma coisa totalmente miserável, que não tem sentido nenhum. Você foi jogado em qualquer lugar. Agora se você quer reclamar uma voz de humanidade, de conserto da humanidade, você tem que ser capaz de criar uma plataforma que caiba todo mundo. De onde você fica em pé sobre si mesmo e dialoga com um mundo de seres que são de verdade, não é uma mímica, um bando de imbecil num festival tarado no planeta, voraz no planeta comendo-se a si mesmo, chutando a própria bunda.

Observando você esses dias, sua casa, seus textos, lembrei muito daquela frase do Darcy Ribeiro, sobre a vontade de beleza entre os ameríndios. É visibilidade, mas tem na essência uma vontade de cuidado, de beleza. Acha que o Darcy pegou uma essência mesmo dessas culturas ameríndias?


Ele capturou essa fagulha, conseguiu traduzir isso com essa afirmação, não tenho dúvida. Porque mesmo quando você tem um pequeno grupo de famílias, que sejam duas, três famílias de qualquer povo nosso, se ele estiver vivendo na beira da estrada, de um rio, em cima da montanha, tudo quanto é prioridade deles vai ser uma prioridade de recriar essa beleza, seja numa pequena pluma de um cocarzinho de uma criança, seja em um pequeno coxo de bambu onde botar água, botar pequenos bastõezinhos de cera com algodão para acender o fogo ali em cima e com aquele pequeno altar criar um simbolismo de transcendência daqui da terra para as outras terras e outros céus. Sempre tem uma galeria de espaços míticos, sagrados, de representação, que não precisam existir nesse mundo que nós vivemos agora porque há a possibilidade de outro céu. Em cima deste céu tem outro céu e depois daquele tem um outro céu sem estrelas. E tem outro céu e outro e outro, e outro. Essa terra que a gente vive nela agora pode ter sido um céu, foi um céu em algum momento, ela caiu e nós estamos aqui nessa plataforma, é céu também. Aí ela pode cair e isso virar um céu. Essa perspectivas de a gente estar habitando céus, mas a gente só não experimenta ele porque a gente ainda não realizou toda a beleza e potência que ele tem, aí ele cai e a gente fica numa outra paisagem que a gente vai ter que trabalhar, trabalhar, trabalhar para criar, evocar essa beleza de novo, fazer ela pairar. A hora que ela estiver pairando, sendo capaz de se constituir nessa coleção de céus, aí ela vai ser céu, nem que seja por um instante. Aí vem aquela coisa de dançar, botar os cocares e dançar para manter o céu suspenso. Aí alguém fala: “Mas é na ponta daquelas plumas, aquelas coisas tão… Como aquilo vai… Como são infantis”. Não é infantil! Isso é o pensamento mágico! É ele que permite que as plumas sustentem o céu. Ou que cantar suspenda o céu. Essa mágica de restabelecer o dom dos humanos, devolver para a humanidade essa potência de suspender o céu, de fazer a terra se mover, as montanhas falarem, isso é resgatar o sentido cósmico da vida. É a cosmovisão, viver dentro da coisa. Não é só verbalizar, mas viver dentro dela. Isso é maravilhoso, porque abre a possibilidade para nós, humanos, de recriarmos o mundo. Agora, como que a gente traz para o cotidiano essa mágica? Acho que foi isso que o Darcy sacou: “Essa gente fica o tempo inteiro recriando o céu, recriando beleza, chamando a beleza, expressando isso num pote, num bonequinho de barro, num balaiozinho, em tudo”. Isso está em tudo. No detalhe de tudo. É isso. Acho que demorei para caramba, uns 40, 50 anos da minha experiência, para compreender, conseguir trazer essa magia para o meu cotidiano. Essas coisas que eu avistei lá atrás e que eu tinha uma espécie de ansiedade, é como se esperasse por alguma coisa que já existiu há muito tempo, mas que eu ansiava por fazer existir de novo, para poder ter isso de novo. Daí veio a ideia de que eu posso contar meu tempo não como tudo que já passou, mas como tudo que eu tenha daqui para frente. Estou experimentando com muita frequência essa visão: tudo que eu tenho é daqui pra frente. E a partir disso, vejo que o que passou é muito pouco. É como se daqui para frente você tivesse a eternidade, daqui para trás só há o que você já viu. E daqui para frente tem tudo que pode vir a acontecer. Eu acho que essa circunstância de a gente ter sido encontrado aqui nos trópicos, nos psicotrópicos, e termos sido confundidos pelos portugueses como uma coisa pré-estabelecida que era essa gente que eles chamaram de índios, isso pode durar um tempo, mas eu fico com uma visão que não é isso que vai prevalecer. Que esse embrulho que rolou aqui, esse meio milênio de confusão vai ser outra coisa lá na frente.

Ontem você lembrou do “eu e as minhas circunstâncias”, que remete à expressão do Ortega y Gasset. Estamos falando disso aqui, não? Essa definição que tem a capacidade de estar aberto ao mundo para se pensar, que foi como você se definiu. Como é essa ética no mundo?


Entender que todo o embrulho que a gente viveu até agora, que resultou na nossa ira, na nossa frustração, na motivação de a gente olhar a vida nessa batalha, isso tudo, lá na frente, no tudo que a gente tem por acontecer, vai se potencializar em outros céus, em outras criações. Essa é a garantia da circunstância. “Eu e minhas circunstâncias” não é só uma aposta no vazio, é uma confiança num porvir, em alguma coisa. Porque senão vira uma arrogância, um “eu sou eu”, e não tem nada a ver.

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