Armando Freitas Filho faleceu neste dia 26 de setembro de 2024, aos 84 anos. Poeta e amigo, foi uma das primeiras entrevistas que realizei em minha vida, quase 30 anos atrás. Sempre generoso, participou também da Coleção Postal, que editei com Marcelo Reis de Mello e Germano Weiss, em 2016 e 2017. Antologias artesanais de poesia, que se encerravam com uma entrevista. A conversa com o Armando foi em sua casa, na Urca, que ele se orgulhava de ter no quintal o início do morro do Pão de Açúcar. Poeta primoroso, Armando deixa uma obra extensa e de grande qualidade, além da amizade e da admiração dos seus pares. [Sergio Cohn]
Antes da entrevista, Armando, estávamos conversando e você falou do impacto na sua infância que foi a morte de Getúlio Vargas. Como foi isso?
A morte de Getúlio foi um susto para mim. Eu era um menino de 14 anos. Foi assim um espanto, uma verdadeira dor, um homem matar-se assim. Eu nem mesmo entendia as coisas ainda. Mas o meu pai foi colega de turma do Ministro da Justiça de Getúlio, o Cândido de Oliveira Neto. Então, por causa disto, tínhamos uma proximidade. Aquilo foi o meu batismo político. Foi muito tocante. Mas eu fui crescendo e a minha tendência natural sempre foi à esquerda. Nós tínhamos um grupo de amigos, todos colegas de colégio: o artista visual Rubens Gerchman, o Carlos Rodrigues Brandão, que foi professor universitário e trabalhou com o grande, o genial educador Paulo Freire, o músico Arthur Moreira Lima, o poeta Mauro Gama e o Amir de Santos Filho, que era o braço esquerdo do Luiz Carlos Prestes. Nós tínhamos esse grupo, convivíamos muito e pensávamos o Brasil através de nossas conversas. Um sextexto que foi amigo a vida inteira. Foi ali que nos formamos politicamente.
Mas foi com o Golpe de 64 que se consolidou a nossa maturidade política. Eu estava completando 24 anos na época. E foi uma porrada no peito, uma coisa horrorosa. E eu nunca pensei que fosse durar tanto. Não passava pela minha cabeça. De repente a coisa foi indo, foi crescendo, e durou 21 anos. E era muito pesado. Eu me lembro de uma vez que encontrei com uma amiga no Parque Lage, no começo dos anos 1970, e nós nos sentamos à beira do lago que tem lá atrás, onde foi filmado o Macunaíma. Começamos a conversar, e ela contou que havia sido presa, porque embora não fosse militante ativa, o seu marido era. E ela me contou histórias terríveis das torturas que sofreu. A gente sabia que havia tortura como política de Estado naquela época, mas eu ainda era ingênuo e pensava que só homem era torturado. Foi um espanto descobrir a que nível de barbárie o país tinha chegado. Então essa foi a minha formação. Sinistra, mas foi. Eu fiquei uma pessoa muito mais nervosa, com medo da morte. Porque eu via a morte legal ao meu redor. Eu era um moço, não deveria estar pensando nisso.
Mas, por mais que houvesse medo, a sua poesia nunca se furtou de tratar desses assuntos, não é?
Nunca. Porque eu fiz questão de deixar pelo menos um depoimento escrito, que não fosse panfletário. O poema mais importante que eu fiz até hoje se chama “À flor da pele”, e é um poema que saiu primeiro num tabloide em papel jornal, em 1978. Nele eu pego o verbete de dicionário da palavra “pele”, e com fotos do meu querido e saudoso amigo, o fotógrafo Roberto Maia, a gente fez um tabloide. E lançamos no Parque Lage, que era dirigido na época pelo Rubens Gerchman. Esse texto consta do seguinte: eu coloquei o verbete “pele” todo, e depois fui adulterando ele, mantendo o mesmo tom do verbete. E vai se tornando em tortura sobre aquela pele. Sendo que a parte final é uma página em branco só com a palavra “pele”. E um dia, no então nascente metrô do Rio, eu vejo uma moça com aquele jornalzinho em mãos, escrevendo na parte branca. O que era o meu desejo. Porque o dicionário nunca acaba. O verbete sempre cresce.
Como foi que você começou a publicar poesia?
O José Guilherme Merquior foi a pessoa que possibilitou que eu fizesse meu primeiro livro. Ele tinha a minha idade. Na verdade, era até um pouco mais novo. E eu acabei de escrever meu primeiro livro, Palavra, com 22 anos. Meu pai, que sempre foi o meu esteio, disse que eu precisava tomar uma decisão em relação ao livro. A Cleonice Berardinelli, a grande especialista em Fernando Pessoa, era madrasta da minha prima. E meu pai levou para ela o livro. Eu nem fui junto entregar. Eu tinha 22 anos, queria mesmo era jogar bola. Eu fui campeão de futebol de praia, com taça e tudo. E chutava com as duas pernas! Mas então meu pai levou o livro para ela ver, um livro estranho, diferente, mas ela foi muito generosa. E levou o livro para o Manoel Bandeira, que então me chamou para eu ir para a casa dele, para conversar. Eu disse ao meu pai que não tinha coragem de ir sozinho. Drummond e Bandeira eram as minhas referências. E ainda são. Eu não acabei de ler nenhum deles, porque livros como os deles são infinitos. Toda hora você está lá e descobre coisas novas.
E daí meu pai me acompanhou e nós fomos visitar o Bandeira. Meu pai era quem batia papo com ele, já que tinham uma idade mais próxima. Eu ficava lá em silêncio, encantado em ver aquele apartamento coberto de livros. Queria morar lá. Um apartamento minúsculo, modesto, mas ao mesmo elegante. Bandeira era elegantíssimo. Aliás, todos eles. Eu tive a sorte de conhecer Bandeira, Carlos Drummond, João Cabral e o que considero o quarto grande, Antonio Candido. Eu não fiz faculdade, eu fiz Antonio Candido. Estudei a obra dele inteira. Até hoje trocamos correspondência. Recebi uma carta dele agora, com 98 anos. Perfeita. Ainda com a letra firme, uma coisa fantástica. Mas, voltando, o Bandeira disse: “Você procura duas pessoas: o José Guilherme Merquior e o Ferreira Gullar”. O Gullar era 10 anos mais velho que eu, e o Merquior dois anos mais moço. Eu escolhi o mais moço, porque o Gullar me parecia muito bravo naquela época. Hoje ele é meu amigo.
Eu levei o livro pro Merquior, e ele, que era todo animado, adorou o livro. Então telefonou para o Fernando Sabino, porque ele sabia que havia uma sobra de papel na Editora do Autor. Tinha uma resma de papel que não estava muito boa, estava com algum erro de corte. E ele arranjou que eu fosse lá e pegasse o papel. Eu fui com o Mauro Gama e pegamos o papel. Daí fizemos o livro. Naquele tempo, fazer livro não era uma coisa fácil, não. Era caro. E eu não queria também pedir ajuda para o meu pai. Acabou que o meu pai, como sempre, contribuiu. Aí fizemos o livro, a repercussão foi boa e as coisas começaram a acontecer.
Uma característica que eu tenho, que eu mantive: de 1963 até hoje, são mais de 50 anos, e eu faço um livro novo mais ou menos a cada três anos. Eu nunca tive bloqueio, felizmente. Mantenho uma produção permanente, e publico um livro novo de três em três anos. O livro que demorou mais tempo levou cinco anos, que foi o tempo entre o Marca registrada e o De corpo presente. Eu mantive uma constante produção, porque obsessivo como sou, eu escrevo sempre, não espero a poesia chegar. Eu encaro como um trabalho que se faz todo dia. Você escreve. E você lê para escrever. Leitura é uma outra forma de escrita. Quando leio Machado de Assis, por exemplo, eu estou olhando a forma dele escrever, para ver se há uma expressão que pode me servir como cola, um respiro na minha voz. Hoje mesmo eu estava lendo, e ele fala do movimento de uma mulher enquanto um homem sai da sala. E escreve: “Ela furtou o seu corpo”. Que coisa linda. Isso pegando o Machado, porque eu estou sempre com ele perto.
Eu tinha uma máxima do Joyce na minha mesa: “silence, exile, cunning”. Exílio, astúcia, silêncio. A máxima que o Joyce tinha para escrever. Eu procuro seguir à risca isso. Eu tenho meus tempos, os meus horários, que eu preciso para produzir, para estudar. E eu tinha que trabalhar naquela época. Eu trabalhei 35 anos como funcionário público. É um tempo apertado. Casei três vezes. Casar é ótimo mas demanda tempo.
E isso se impõe ao ofício de poeta?
Depende. Não se impõe ao ofício. Quero dizer isso muito claramente: essa é a minha maneira. Bandeira esperava a poesia chegar. Eu não espero, vou ao encontro dela. Vou contra ela, inclusive. Não só ao encontro, como contra. Essa é a minha maneira de ser. Eu não espero. Eu tomo nota em papel, tenho um monte de papeizinhos, de cadernos.
Eu lembrei de João Cabral dizendo que escrevia poesia com os olhos, e que no fim da vida, por estar cego, não conseguia escrever. E você falou muito da sua visão hoje, antes da entrevista, por ter feito um procedimento cirúrgico para a catarata. Como você entende essa questão da visão na sua poesia, da necessidade dos olhos para ler, para escrever?
Eu fico pensando que o João Cabral escreveu, depois de cego, apenas dois poemas. Um para Arnaldo Saraiva, poeta português que era amigo dele, e outro poema. Acho que ele se deprimiu. Dos grandes poetas, o mais íntimo meu foi ele. A gente conversava muito, tinha muito contato. Até fico hoje arrependido de não ter ido mais para a casa dele. Ele sempre chamava, porque gostava de falar de doenças e eu também. Então nós tínhamos um plano comum, que não era nem exatamente a poesia, que entrava assim muito levemente na conversa. Mas tínhamos tanta liberdade que eu tenho uma foto pública dando um beijo nele. Ele tinha conversas comigo bastante íntimas. Uma vez, ele trouxe um poema que tinha escrito para Marly de Oliveira, com quem ele iria se casar. Ele estava viúvo. A mulher de vida inteira foi a Stella, que morreu em 1986. E ele ficou muito abalado com a morte. Eu lembro que quando ela morreu, pouco depois eu fui visitá-lo e o João não conseguia encontrar um abridor de garrafa. Fomos para a cozinha procurar, estávamos de cócoras buscando no armário, e ele me disse: “Estou perdido na vida. Fui deixado só no meio da vida. Não consigo encontrar nem um abridor na minha casa”. Ele estava completamente desolado. Mas então, em outra vez, ele mostrou o poema que estava escrevendo para Marly, com quem não estava junto ainda. O João adorava beber. E não podia mais beber, a partir de certa idade. Então ele trouxe um papel escrito e o título era: “Meu álcool atual”. E eu falei: “João, não põe o atual, põe só ‘meu álcool’”. Ninguém sabe, mas quem deu título a esse poema do João fui eu. Está lá no livro dele. E a Cristina está de prova.
Merquior começou a muito cedo a fazer resenhas e textos no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, onde havia todo um debate sobre a poesia de vanguarda da época, o concretismo, o neoconcretismo. Na sua convivência, você chegou a ser influenciado por esses autores? Você lia Mário Faustino, Reynaldo Jardim, esses poetas-críticos?
Eu lia muito o Merquior. O Mário Faustino eu não cheguei a conhecer. Só vi ele uma vez, de passagem. Ele era bem mais velho que eu, e depois sofreu aquele desastre. Eu achava o único livro dele editado em vida, O homem e sua hora, superestimado. O Faustino fazia crítica de uma forma ferina. Atacou Drummond de uma forma horrenda. Eu não admito que se ataque Drummond. Considero o Drummond um dos maiores poetas do mundo. Antonio Candido, um dia numa conversa na casa dele, falou para mim que considerava Drummond melhor que Eliot e Fernando Pessoa. Isso o Antonio Candido falando. Eu acho Drummond um verdadeiro milagre. Porque tudo começou com ele. O meu começo mesmo com a poesia foi quando meu pai me deu um disco que tinha no lado A Manuel Bandeira, e no lado B Carlos Drummond de Andrade. Isso em 1956. Eu tinha 16 anos. Comecei a ouvir o lado A e fiquei completamente encantado com o Bandeira. Tanto que, com essa minha mania de decorar, de saber como ele escrevia aqueles poemas, como fazia isso, eu não ouvia o outro lado. De repente, um dia, eu decidi que ia ouvir o lado B. Comecei a ouvir, e foi como enfiar a mão num lago que tivesse uma porção de coisas dentro, plantas, animais, coisas assim. Eu escrevi sobre isso em “Rol”. E eu fiquei ouvindo aquele lado do disco e pensando como aquele cara podia escrever coisas que pareciam que eram minhas. E ele trazia isso para fora.
Aí Drummond foi uma espécie de leitura de vida inteira. Eu não podia fazer faculdade. Eu precisava ficar com aqueles dois ali, lendo e relendo. E daí fui encontrá-lo em 1963, para entregar o meu livro. Fui novamente com o meu pai, porque eu não tinha coragem de ir sozinho. Depois eu encontrei algumas vezes com Drummond, para conversar. Embora ele fosse um homem de difícil intimidade. Não era antipático. Ele era tímido. Falava um pouco baixo e olhava sempre para baixo. Drummond tinha os olhos azuis mais belos que eu já vi. Havia até discussões sobre a cor dos seus olhos, algumas pessoas diziam que era verde, outras que era azul. E era azul!
Então o começo foi esse: Bandeira e Drummond. Depois, o João Cabral. Eu não o conhecia. Ele morava fora, era diplomata. Eu mandei meu primeiro livro para ele e ele me mandou de Sevilha uma antologia com a dedicatória: “Para Armando Freitas Filho, como homenagem e louvor”. Para um menino de 23 anos, receber isso foi maravilhoso. Eu guardei até o envelope. E, depois, A Luta Corporal, do Ferreira Gullar, que foi um livro fundamental para mim. Meu amigo Amir, que era braço esquerdo do Prestes (eu brincava que ele não era braço direito, mas braço esquerdo), tinha um exemplar, ele me emprestava para ler. Mas só por dois dias. No segundo dia ele vinha para apanhar de volta. Ele tinha medo que a gente roubasse o livro. E eu já fui um pouco ladrão de livros mesmo. Talvez não tão pouco assim. Mas, enfim, eu peguei e copiei A Luta Corporal toda à mão, num caderno espiral, obedecendo o espaçamento original. Porque não é um livro normal. Eu chamo de livro-bomba. É um livro que tem espaços, alinhamentos. O gozado é que eu tenho até hoje esse caderno e nunca mostrei para o Gullar. Devia mostrar, porque o tempo passa. Mas então, eu copiei tudo. Porque eu precisava estudar aquilo. “Por que ele escreve Roçzeiral assim?” Eu tinha uma porção de pensamentos em torno da palavra “roçzeiral”. Esse era o meu trabalho. E é até hoje: tentar entender por que esses grandes autores escreveram os seus textos. Quando Machado escreve, no A mão e a luva, que nem é considerado um dos quatro grandes romances, “Ela furtou o corpo para o homem passar”, é uma coisa linda. É escrever de uma maneira sublime. Esse é o conjunto da minha formação.
E que são homenageados frequentemente na sua obra.
São nomes que aparecem toda hora. Eu escrevo muito sobre poetas. Saiu um livro agora apenas em formato digital, com poemas meus para poetas, e também com um perfil meu feito pela Francesca Angiolillo que está incrível. Eu ganhei um perfil grande, com mais páginas que o Messi. Porque outra coisa que eu amo é jogar bola. Infelizmente, não posso jogar mais. O médico disse que eu posso andar, e eu faço ginástica todo dia. Ele falou que posso fazer tudo, mas futebol não mais, porque senão eu terei que operar o joelho.
Você tem todo um procedimento da poesia que é encarná-la. O corpo é muito importante na sua obra.
Sim, é a minha forma. Por exemplo, Bandeira e Gullar não precisavam desse esforço todo. Gullar passa anos sem publicar poesia. Faz dez anos que ele não faz livro novo. Se acontecer isso comigo eu vou ficar muito mal. Tanto que já estou escrevendo o livro que quero lançar quando chegar aos 80 anos. Se eu chegar até lá. Eu comecei a preparar. Eu escrevo a mão, depois eu bato à máquina e depois eu bato no computador. Mas depois, quem arruma no computador é a Cristina, a minha mulher. Porque eu sou péssimo em lidar com computador. Já perdi um texto, tive que reescrever inteiro na memória. Eu fiquei até com febre. Apertei uma tecla errada e perdi. Um texto importante. Não se pode perder uma coisa assim.
A materialidade é muito importante para mim. Eu gosto de escrever à mão. Eu inclusive escrevo melhor à mão, no sentido ortográfico. Eu não erro escrevendo à mão. E erro na máquina. Me perco em algumas palavras. “Excessivo”… Fico pensando como se escreve. E à mão sai. É como se a mão soubesse. A máquina é à mão também, só que é uma mão mediada. É uma outra coisa. Não é a mão ali, com você sentindo o esforço, o cheiro, o suor, tudo seu ali na escrita. Isso sou eu. Outras pessoas suam na máquina de escrever, mas eu não. E depois vem o computador. Eu detesto as coisas que aceitam tudo. O computador aceita tudo. Você toca, ele registra. Eu preciso de uma resistência orgânica. De uma coisa que resista, para eu me convencer que aquilo está ficando bom mesmo. Então tem essas três fases. Não é nada para criar um método, um jeito original, não: eu sou assim naturalmente.
Charles Bernstein, o poeta da L-A-N-G-U-A-G-E Poetry norte-americana, certa vez disse que ele se tornou poeta porque era disléxico, e isso o levou para uma desnaturalização da linguagem. O que você acha disso? Faz sentido para você?
Eu acho que faz até por minha causa mesmo. Talvez essa coisa de escrever, por eu ser gago, por eu, para falar, ter que fazer um esforço em certas palavras, em certos momentos, quando me emociono. Eu tenho que vencer essa barreira. Neste sentido, eu sou parente do Charles Bernstein. Porque você tem que vencer alguma coisa para poder se chegar a um resultado razoável. Eu não sou prosa, não. Mas também não sou modesto. Sei que tudo o que eu faço é ao menos razoável. No sentido sério que essa palavra tem. Eu acho que eu consegui manter um desenvolvimento através desses 50 e poucos anos que foi crescente. E eu sou um poeta de recapitulações. Eu não capitulo. Eu não desisto. Eu não sou derrotado por aquele poema que estou escrevendo. Eu nunca jogo fora. Eu estaria capitulando. Eu vou recapitular sempre. De alguma forma eu vou. Assim você encontrará recapitulações em todos os meus livros. Inclusive citações minhas que de vez em quando eu faço em aberto. “Ver no livro tal…” Não muitas vezes, mas acontece.
O Haroldo de Campos cita a gagueira em “Metalinguagem e outras metas”. A gagueira como uma virtude. E dá o exemplo arquetípico do Machado de Assis, que seria o primeiro tartamudo do Brasil e inaugurador de uma estética que iria prevalecer no século XX. Você acha que é só superar essas falhas ou é também pensar nessas falhas como algo virtuoso da poesia? Na medida em que a poesia se alimenta de certas falhas, de certas fissuras. O grão de pedra no feijão do João Cabral…
Eu escrevi um poema contra esse poema do João. Está no meu livro Raro mar e se chama “Outra receita”. Eu amo João, mas eu gosto de implicar com ele. Sobre a pergunta, eu acho que sim. Eu tinha que pensar nisso melhor. Tem certas perguntas que eu não sei responder de pronto, para alcançar um nível razoável. Agora mesmo, eu estou precisando de uma epígrafe para esse meu livro novo. Poxa, um livro que é para daqui a três anos. Eu trabalho bem com epígrafe, que me estimula na escrita. Eu sou um leitor amador de Wittgenstein. Eu leio Sartre e Wittgenstein, que me interessam muito pelas suas obsessões. Me interessam ainda mais do que por suas realizações, o que eles conseguem efetivamente. Se posso me dar o direito de falar uma barbaridade destas… Tem um livro do Saussure chamado “Investigações filosóficas”. E não é que outro dia, olhando ele, eu dou de cara com uma frase que cai como uma luva para ser a epígrafe do meu livro novo? Eu pensei que era um verdadeiro milagre. Porque tem tudo lá, a recapitulação, todas essas coisas que me movem. Eu faço isso por escravidão. Eu sou escravo. Aí eu estou respondendo um pouco sobre o que você perguntou: não é uma habilidade que tenho, para melhorar as coisas. Eu me sinto escravo dessas coisas. Eu recapitulo porque não está bom. Eu tenho que achar um jeito de não capitular, então eu recapitulo. No livro Fio Terra, por exemplo, eu fui ao velório do João, e fiz um poema sobre isso que tem duas versões. Eu não consegui escolher. Tem um amigo meu que eu prezo muito, o Sérgio Alcides, que é poeta e professor agora da UFMG, e eu perguntei para ele o que fazer. Porque eu peço ajuda nestas horas. E eu não sabia qual escolher, porque eu não queria perder, não queria jogar nenhum deles fora. E ele disse: “então não perca, coloque os dois”. E eu coloquei o primeiro poema, então “ou” e embaixo entrava a outra versão. Pronto. De vez em quando acontece isso.
Agora mesmo eu fiquei emocionado com a reedição dos dois livros da Maura Lopes Cançado, que seria uma segunda Clarice Lispector, se não fosse louca. Se não tivesse matado uma pessoa. Por que a Maura matou? Porque ela estava cansada de levar eletrochoque. Que é usado até hoje, e quando é bem usado funciona. Mas não daquela forma que faz a pessoa perder a memória. Ela sufocou uma pessoa louca como ela, com o travesseiro, para poder sair do hospício e ir para o presídio. Porque ela então seria uma assassina. Ela fez isso de caso pensado. E é claro que eu não estou justificando nada, só contando uma história. Mas eu escrevi um texto para ela, um poema inédito. Aí, depois, eu vi que o poema estava se espichando. Então imediatamente coloquei um traço, porque é tudo como se fosse físico. E comecei a escrever embaixo de novo. O poema se espichou, e depois eu mantive as duas versões.
E neste poema eu sou um anti-Fernando Pessoa. Eu tenho uma implicância muito grande com o Pessoa. Eu leio ele desde que a Cleonice me apresentou, em 1956. Já estudei muito o Pessoa. Eu achava a diferença entre os heterônimos nenhuma, compreende? Eu não conseguia. Me dava aflição. Cada poema poderia ser escrito tanto por Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou pelo próprio Pessoa. Não há diferença nenhuma gritante entre eles. Então para mim sempre pareceu uma farsa. E eu ainda nunca consegui pegar isso de jeito, para falar sobre essa questão. Eu acho que já em prosa: eu disse que a heteronímia não é anímica. A alma que escreveu aquilo é a mesma. Agora, é um grande poeta. Se eu implico com o João, porque não posso implicar com Pessoa? Eu e o João tínhamos conversas de doidos. Eu fazia críticas e ele respondia: “Se um chofer de táxi me disser que não gostou de um poema meu, eu não vou esquecer nunca mais!”
Como diria João Antônio, “abraçado ao meu rancor”…
Não é uma coisa incrível? Eu dizia para ele: “João, a sua poesia é maravilhosa, mas com essa sua mania de escrever versos em par, em quadra, algumas vezes você tem que colocar mais um verso, mas para fechar o número certo de versos você inclui dois. E daí parece que você está enchendo linguiça”. E ele me olhava bravo: “Mas você acha isso mesmo?” E eu respondia: “Em termos, em termos…”
A sua poesia tem uma particularidade fundamental, porque ela é quase um ensaio em poesia. É um statement, tem uma ideia por trás, tem uma tese a ser defendida. Como você vê isso?
Aí você acertou no alvo, porque eu sou um leitor de ensaios, o que me ensina a pensar. Eu sou um grande leitor de críticas, de Antonio Candido, de José Guilherme Merquior, de Augusto Meyer, que ninguém fala e é um grande crítico, de Álvaro Lins. Eu li toda essa gente, o que foi a minha faculdade. Eu li com muita aplicação. Então você tem razão. A minha poesia, como está numa carta que o Antonio Candido escreveu sobre a minha obra reunida até agora. Ele falou uma coisa importante para mim, que eu não tinha percebido: “você não registra, você delibera”. Antonio Candido falou por escrito. E eu acho que eu faço isso para me assegurar da razoabilidade do que eu escrevo. E eu também sou muito metódico. De vez em quando eu me pego contando letra por letra dos versos para saber se a mancha gráfica vai ser proporcional. E eu penso: “Meu Deus, o João passou esse vírus para mim!” Eu não posso fazer uma linha comprida e uma curta, que eu fico todo falseado. Parece que eu escorreguei e fui, ao invés de ensaiar melhor esse tempo. Eu me vejo também querendo fazer tudo para ficar bonitinho, bem arrumado. É claro que eu sou menos preso a isso que o João. Menos refém. Eu subverto, às vezes rompo com o corpo esse aprisionamento. É como vestir a mesma roupa sempre e achar que está bom. Não está. É preciso lavar com outras formas.