Entrevista realizada por Sergio Cohn e Marcelo Reis de Mello em São Paulo, em 2016, e publicada originalmente no Livro Postal – Glauco Mattoso, em 2017.
Glauco, quando você começa a publicar, em meados dos anos 1970, você traz uma poesia que junta a experiência construtiva com a irreverência de uma geração mais jovem, mas sem cair na poesia marginal. Conta um pouquinho desse circuito que existia quando começou a ler poesia e qual foi o lugar que você encontrou para a sua linguagem.
Eu me coloquei de uma forma muito pessoal. O que eu notava na época é que tinha muito grupinho, muita igrejinha, muita panelinha, sempre um ismo contra outro ismo, e sempre um em reação ao outro. E eu peguei o bonde andando, porque sou da geração pós-tropicalista. Eu era muito adolescente na época dos festivais, então fui apenas um espectador. Mas ali por volta de 1974, 1975, já estava começando a fazer alguma coisa como reflexo desse pós-tropicalismo. E na época eu era super-careta. Eu era bancário, funcionário do Banco do Brasil, formado em biblioteconomia. Quer dizer, uma coisa extremamente burocrática, mas muito enciclopédica. Eu já tinha uma cultura enciclopédica, uma visão histórica da literatura, mas faltava aquele estopim, alguma coisa que me cutucasse e me provocasse a criar. Isso aconteceu quando, paralelamente ao trabalho de bancário, eu saí do armário num grupo de teatro amador aqui de São Paulo que era muito seguidor do Zé Celso Martinez Corrêa. Eles faziam um teatro do absurdo, uma coisa super-vanguardista para a época. E graças àquele grupo eu comecei a tomar contato com vanguardas de maneira geral. Não apenas o absurdismo, mas as vanguardas literárias, as vanguardas estéticas. E daí para o concretismo foi um passo.
Só que eu não iria entrar no concretismo pela porta que os discípulos entravam, que era aquela coisa universitária, de ser aluno do Haroldo ou seguidor do Augusto de Campos. Aquela coisa super-programática, que é o que eles queriam. Eu seria uma espécie de discípulo independente ou rebelde. Mais ou menos como o Paulo Leminski foi também. Agora, o Leminski era outra história, porque ele era publicitário, já tinha toda uma coisa engatilhada pra atingir a mídia. E eu estava preocupado em ser ao máximo independente e alternativo no que eu fizesse. Consegui uma aproximação com os concretos, porque o Augusto chancelou aquilo que eu estava fazendo, mas isso não me cooptou.
Então eu passei a fazer um tipo de poesia que flertava com as vanguardas, mas ao mesmo tempo tinha o conteúdo da poesia marginal. Porque o concretismo em si era muito impessoal, não admitia o eu lírico. E eu fazia questão de ser pessoal, porque a minha biografia é toda essa, de afirmar através da minha deficiência visual, do meu comportamento sexual atípico, de ter sido vítima de bullying, de me transformar num sadomasoquista precoce, de ser fetichista, de me assumir gay por um viés totalmente anticonvencional. Então eu precisava traduzir tudo isso em alguma expressão artística que não fosse engajada num programa de uma escola, por mais vanguardista que fosse. Eu não podia seguir o plano piloto da poesia concreta.
Ao mesmo tempo eu não tinha contato com a principal corrente da poesia marginal que estava sendo feita no Rio. Mas como na época a gente vivia uma ditadura, e qualquer forma cultural underground era de resistência, as pessoas tendiam a se apoiar mesmo que à distância, remotamente, por correspondência. Então aí já estava instalado um clima favorável à proliferação de fanzines. Ainda que não se usasse essa palavra, já que “fanzine” começou a ser usado aqui no Brasil só a partir do movimento punk, lá pelos anos 1977, 1978. E eu comecei a fazer publicações independentes em 1974, 1975. Eu já fazia aquelas apostilas poéticas que eram umas coletâneas grupais – uma se chamava “Apócrifo apocalipse”, outra se chamava “Maus modos do verbo” – na mesma época em que o Chacal tinha no Rio aquela turma da poesia marginal fazendo coisas, a Nuvem Cigana, o Almanaque Biotônico Vitalidade e tal.
A gente acabou se comunicando e formando uma espécie de rede, porque paralelamente a isso estava muito em voga aquilo que se chamava mail art, que é a arte postal, onde você veiculava pelo correio qualquer tipo de objeto, texto. O que importava era fazer circular aquele material, e o correio era o meio para isso, inclusive o mecanismo para contatos internacionais. A Arte Postal era um movimento internacional, muito alternativo. E a gente não deve esquecer que a ditadura estava conectada com todo um esquema de Guerra Fria, em que tudo o que não fosse do bloco soviético era do bloco capitalista capitaneado pelos EUA, sob o controle da CIA. Então eram ditaduras militares em que a censura restringia qualquer forma de expressão cultural que não fosse alternativa. Eles só não tinham alcance sobre o alternativo. Tanto que o meu fanzine, o Jornal Dobrabil, era datilografado numa folha solta, frente e verso. A forma datilografada tinha alguma coisa a ver com a dactilo art, que era um dos meios usados pela Arte Postal.
O Dobrabil era uma brincadeira que eu fazia com o Jornal do Brasil, que era o principal jornal cultural da época, por causa do Caderno B, e também com a Revista de Antropofagia, que era uma mistura de grande imprensa com literatura marginal. Eu brincava com manchetes muito provocadoras, que jamais poderiam aparecer na grande imprensa, e nem mesmo em tabloides. Só quem veio fazer algo parecido, mas muito tempo depois, foi o pessoal do Casseta Popular e do Planeta Diário. Mas só depois, nos anos 1980. Aquele espírito de manchetar brincando, como “Falcão vira arara”, que era uma das manchetes, e Falcão era o Armando Falcão, o Ministro da Justiça do governo militar. Esse tipo de coisa não dava pra veicular em órgãos que seriam distribuídos em banca de jornal, porque seria recolhido e os responsáveis presos. Talvez até torturados. Mas o alternativo, por ser o único caminho, e restrito, estimulava mais criatividade. Com poucos recursos você era obrigado a fazer bastante coisa. Isso é que era estimulante.
Uma coisa interessante pensando sobre isso: o alternativo era uma rede que talvez fosse bastante restrita, mas que tinha essa segurança. Agora, na rede digital, há muito mais alcance, mas o cerceamento de informação é muito mais fácil, não é?
Exatamente. Você vê aí essa história, hoje em dia se fala muito em Wikileaks, e ao mesmo tempo se fala em violação do sigilo dos celulares para serviços de espionagens… São as duas facetas, né? A extrema liberdade que a Internet propicia e ao mesmo tempo é tudo muito frágil, muito tênue, porque com um simples golpe tecnológico você pode anular toda essa liberdade. No caso do fanzine, daquela literatura, eu acredito que a gente conseguia burlar qualquer tipo de controle. Nós éramos realmente guerrilheiros da cultura underground.
Você se identificava com a performance pública de poesia, eventos como as Artimanhas da Nuvem Cigana?
Não. E é aí que está: havia divergências, que é o que eu acho mais bacana. Pluralismo. Quando eu saí de São Paulo para morar no Rio, em meados dos anos 1970, eu saí de tudo, abandonei o grupo de teatro, abandonei a família, amigos e colegas de banco. Ao mesmo tempo que eu fiz várias amizades no Rio, eu estava isolado ainda. Até sexualmente, porque eu não tinha me liberado totalmente. Mas eu fui morar num bairro que naquele tempo era uma espécie de meca hippie, que era Santa Teresa, e com os contatos que eu fiz lá fui construindo uma espécie de rede. Mas eu era ainda muito enfurnado no meu quarto, datilografava meu fanzine e enviava, e fazia exatamente o oposto do que a turma do Chacal, que promovia produções coletivas, aqueles happenings, aqueles agitos e eventos ao ar livre.
Eu só fui me enturmar um pouco com esse pessoal no início dos anos 1980, com o movimento de Arte Pornô, porque eu já era muito amigo da Leila Miccolis, que morava em Vila Isabel. Eu a visita constantemente, e ela começou a editar aqueles livros marginais, entre eles uma antologia do movimento de Arte Pornô. Quando saiu esse livrinho, em 1981, eu já estava no final do Jornal Dobrabil. Mas ainda deu tempo de publicar alguma coisa lá sobre o movimento. Depois continuei a colaborar com eles. Eu me enturmava com o movimento pornô, mas também não participei das performances deles, como aparecer pelado na praia. Eu não tinha essa liberação ainda. É dessa época o “Manifesto Obsoneto”, que foi feito especialmente para o movimento pornô e depois, mais recentemente, foi gravado no meu disco “Melopeia” pelo Alexandre Neri, que hoje é um galã global. São essas ironias…
Você tinha relação com outros poetas que estavam trabalhando a poesia homoerótica, como o Roberto Piva?
O Roberto Piva é de uma geração anterior a minha. O meu contato com ele começou justamente naquele grupo de teatro, porque o Piva tinha sido professor da rede secundária por algum tempo, e alguns dos seus alunos eram ali da Vila Prudente, onde funcionava o teatro. E aí, mais tarde, com a inclusão dele na antologia 26 poetas hoje, da Heloísa Buarque da Hollanda, ele também passou a ser conhecido no circuito marginal, embora não fizesse parte da geração. O contato pessoal e a amizade que se formou entre a gente foi apenas quando eu voltei para São Paulo, em 1978, e estava sendo fundado na cidade o Somos, um grupo gay organizado, militante. O Piva não participou do grupo, mas se solidarizou. Ele era amigo do João Silvério Trevisan, que foi um dos fundadores do Somos, junto comigo e o Darcy Penteado. Tinha também o Agnaldo Silva, que não era exatamente do grupo, mas editava o jornal Lampião da Esquina, que também era bastante militante da causa gay. Eram coisas associadas e o João Silvério participava dos dois, do grupo e do jornal. Foi através do João Silvério que eu fiquei entrando em contato com pessoas que se tornaram minhas amigas, como Jean-Claude Bernardet e Jorge Schwartz. Até o Nestor Perlongher, que fugiu da Argentina porque havia uma perseguição ao movimento de liberação gay pela ditadura. E o Piva se tornou meu amigo até por outras afinidades. Afinidades estéticas e até humanas, porque ele gostava de moleque de periferia, do mesmo tipo de punk que eu curtia, e ficávamos trocando figurinha, nos ligando.
O Nestor Perlongher foi um grande divulgador do neobarroco aqui no Brasil.
É, ele até obrigou um pouco os concretos a revisar os seus conceitos. Os concretistas passaram a prestar mais atenção nessa poesia latino-americana por conta do Nestor.
Já a sua poesia nunca deixou de ter uma linguagem direta. Essas relações com autores que traziam outras linguagens poéticas, como Piva e Perlongher, não chegaram a influenciar sua própria poesia, não é? A sua poesia continuou muito particular…
Veja que engraçado, eu tinha uma afinidade direta com o Piva conversando, mas a nossa expressão poética tem muita diferença… Ele seguia aquela linha da poesia surrealista, a linha da Beat Generation dos EUA, enquanto eu, pela minha formação em biblioteca, tinha uma ligação com os clássicos. Mas eu queria recuperar os clássicos de uma forma muito iconoclasta, anárquica. E eu até consegui fazer isso, porque a minha poesia na época era muito livre, mas muito paródica de formas clássicas. Brincava com elas. Coisa que o Piva não fazia. Ele ia para a escrita automática e eu era muito cerebral. Inclusive eu brincava dizendo que ele era totalmente dionisíaco e eu apolíneo, mas a gente flertava nesse intermédio. Todos os meus poemas eram colagens de coisas que já existiam e eu tentava parodiar, subverter, fazer um pastiche. Um procedimento pós-moderno que eu ainda não tinha noção do quanto seria importante no fim do século XX, porque ali estava fazendo ainda de forma muito experimental.
E como era o seu processo de escrita? Ele variou com o tempo?
Variou muito. Naquela época eu tinha acesso às fontes escritas porque ainda enxergava. O meu glaucoma não tinha feito ainda o estrago total. Eu tinha perdido um olho e o outro era muito míope, mas eu conseguia, encostando o papel na cara, datilografar, escrever. Eu até montava coisas gráficas, poemas visuais, porque na época para fazer um poema concreto o melhor meio era um negócio chamado Letra 7 – letras decalcadas, que você tinha que posicionar no papel e fixar com precisão, medindo com régua e tudo. Era muito artesanal, mas não tinha outra maneira, não havia computador para posicionar a letra onde você quisesse. Os concretos usaram muito Letra 7, porque ele permitia que você dispusesse no espaço da página qualquer coisa. E eu mexi muito com esses procedimentos. Mas o texto escrito sempre me fascinou mais, ainda que fosse uma escrita muito anárquica, fragmentária, feita de transcrições de textos alheios. Por causa daquela questão enciclopédica mesmo, da biblioteconomia. Eu queria filtrar de alguma forma toda aquela leitura que eu tinha absorvido.
Quando eu perdi totalmente a visão, no começo da década de 1990, já havia passado os anos 1980, que trouxe a efervescência de literatura independente, inclusive a partir da redemocratização do Brasil. E quando eu perdi a visão tive que reformular tudo, abandonei totalmente aquela poesia anárquica e passei a trabalhar com uma coisa mnemônica, que é o processo de criação dos cordelistas, dos repentistas. Eles trabalham com versos muito ritmados, rimados, formas fixas, estrofes bem delimitadas. E aí eu sintetizei isso num formato que seria o ideal de toda a poesia ocidental, que são os 14 versos do soneto. Embora eu não me prendesse exclusivamente ao soneto, eu resolvi investir nesse formato até que eu esgotasse todas as possibilidades. E só trabalhando com a memória, sem ter acesso ao lado visual da escrita. Então mudou muito a minha técnica, meu procedimento. Antes da cegueira total era uma coisa, depois ficou totalmente diferente.
A única coisa que eu preservei, de forma retrabalhada, foi a minha temática. Aquele tipo de temática que eu abordava, que era esticar o elástico ao máximo no paradoxo entre humanismo e desumanismo, violência e barbárie de um lado e de outro uma coisa mais humanista, civilizatória. Eu explorei ao máximo essa tensão entre barbárie e civilização, que é o grande paradoxo do nosso tempo, né? Você vê que ao lado da tecnologia, das liberdades civis que se proclamam a todo momento, existe um Estado Islâmico que remete a uma barbárie de Idade Média. Essa tensão foi o que eu sempre explorei. E a partir do plano individual eu comecei a universalizar minha poesia, entrando em contato com outras formas de exclusão, de discriminação, de perseguição, que não fosse apenas a minha deficiência física.
Você é, provavelmente, o poeta mais prolífico em atividade no Brasil hoje. Escreve cotidianamente. Ao lado dessa ética da perversão, se é que se pode chamar assim, no sentido de sempre estar tentando ser contrahegemônico, não se colocando ao lado de nenhum grupo permanentemente, e a mesmo tempo criando uma temática própria, um universo próprio, você também tem essa espécie de obsessão pela escrita, não é?
É, você pegou bem. Eu sou um grafomaníaco, não há dúvida. Já que eu não posso mais escrever à mão, eu uso o teclado convencional do computador, agora com um programa falante, que foi desenvolvido pela UFRJ. Um programa muito amigável, aliás, chamado DosVox. E é através dele que eu escrevo, e de modo muito obsessivo. Na época que eu escrevia sonetos – eu encerrei essa fase em 2012, com mais de 5000 sonetos escritos – eu vivia uma espécie de febre ou transe quase esotérico. Porque eu me viciei totalmente. Eu fazia sonetos de forma quase incontrolável. Era uma coisa que eu não consigo definir a não ser como possessão. Uma possessão demoníaca. Digamos que os demônios da poesia estavam se instalando em mim.
É curioso, porque os anos 1980 tiveram a literatura independente, um desdobramento da literatura marginal, mas tiveram também a volta do soneto, embora de forma atualizada e irreverente, importante ressaltar, em uma série de autores, como o Paulo Henriques Britto e o Antonio Cicero. A volta do soneto não foi exclusiva sua. Como você vê isso?
Eu concordo, mas tem uma diferença entre esses autores e eu. Quando eles retomaram o soneto, estavam pensando em fazer alguma coisa pós-modernista. E realmente fizeram. E eu retomei de uma forma classicista, de uma forma camoniana, bocageana, e até lusófona, porque eu pegava estruturas de rima que eram mais usadas em Portugal do que no Brasil. Que nem o Olavo Bilac. Porque se você pensar os parnasianos em geral, eles copiavam a estética francesa. Os franceses gostavam mais do soneto parnasiano, com outro esquema de rima, versos alexandrinos. E eu adotei o decassílabo camoniano, mas o coloquei de forma mais rígida ainda do que era para o próprio Camões, que admitia muitas variações em torno do decassílabo. Eu não, eu peguei um formato que é o oposto do sáfico e levei isso a ferro e fogo, de uma forma que nem mesmo os nossos parnasianos costumavam praticar. E obviamente que Paulo Henriques Britto, Antonio Cicero e esses sonetistas recentes não estavam trabalhando esses formatos clássicos de soneto. Agora, eu faço questão de trabalhar com esses formatos clássicos para justamente anarquizar em cima disso. E se não fosse pra reciclar à minha maneira, não faria sentido. Eu não estava fazendo maneirismo.
Tem uma coisa curiosa que é o acordo ortográfico que você usa, que é um dado visual no seu trabalho…
Ah sim, claro! Digamos que foi a minha maneira de voltar a ser concreto, mexendo com o formato das letras, a espacialização, sem depender da poesia visual. Isso a partir de 2009. É uma coisa mais recente. Eu já fazia sonetos desde 1999, então já havia uma década que eu fazia sonetos pela ortografia oficial. Agora, quando veio em 2009, essa última reforma que bagunçou de vez a escrita do português, aí eu resolvi mexer. Quando eu comecei a fazer poesia, antes do Dobrabil, com a antologia “Apócrifo apocalipse”, eu já usava essa ortografia. E no Dobrabil era misturado. Eu só deixei essa ortografia totalmente de lado quando eu publiquei “O que é a poesia marginal”, na coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense. Foi uma concessão, para ser lido por um público maior. E alguns livros que eu publicava por editoras saíram na ortografia comum e eu fiquei fazendo assim por um certo tempo. E aí quando eu fiquei cego, pensei que se fosse voltar à literatura seria da minha maneira. E isso coincidiu com essa história de soneto, da questão ortográfica sendo debatida muito antes de 2009, e eu já pensando em voltar à minha ortografia. O novo acordo ortográfico de 2009 foi a gota d’água.
Glauco, você teve uma relação muito próxima com o movimento punk, não é?
O que é engraçado é o seguinte, quando eu estava fazendo o Jornal Dobrabil, eu ainda estava muito sob influência da exibição no Brasil do Laranja Mecânica. E no filme do Stanley Kubrick, o Alex, personagem principal do Malcolm McDowell, tem como sobrenome Delarge. No livro, ele se chama como Alexander The Large. Não é o Grande, que seria o Alexander the Great, mas é o Large. E eu fiquei com essa fixação de criar pseudônimos com nomes de reis, e pensei em Pedro, o Podre. Pensei nisso antes que o punk chegasse aqui. E quando o punk chegou, havia o Johnny Rotten, dos Sex Pistols, e também a banda chamada Garotos Podres, com quem inclusive me associei pra criar um selo de punk rock. E eu percebi que esse heterônimo Pedro, o Podre era protopunk.
Agora, a circulação do Jornal Dobrabil coincidiu realmente com o surgimento dos fanzines e do punk rock por aqui. Inclusive a banda do Clemente, Os Inocentes, e a do Edson, o Cólera, que era amigo do Antônio Bivar, que por sua vez era amigo do Piva. Então havia uma espécie de circuito. A gente estava circulando no mesmo circuito. Tanto assim que participei da fundação de uma casa noturna aqui de São Paulo, que se chamava Madame Satã e acabou sendo um templo de bandas oitentistas. E aí o contato com o pessoal do movimento punk foi inevitável, porque eu frequentava os mesmos lugares, a cena noturna, onde havia as apresentações e distribuição dos fanzines. Havia alguns lugares que faziam seus próprios fanzines e eu ia lá e trocava pelos meus.
A estética do punk me agradava porque veio a complementar, inclusive, uma outra estética que eu tinha vivido um pouco antes, que é o movimento hippie. Ele nunca vingou realmente no Brasil, porque era um movimento retardatário. Ele foi estourar aqui na década de 1970 e já tinha acabado nos anos 1960. De qualquer forma, aquela coisa de ser contra o sistema, acreditando num futuro, na Era de Aquário, de certa forma contrastava com não crer no sistema mas não ver futuro, que era a coisa do punk. O punk era mais pessimista. Tanto que o hippie se caracterizava pelo pacifismo e o punk pela violência, pelo anarquismo esperneante. E justamente por ter essa síntese, o paradoxo me fascinava, ficando como um pêndulo entre esses dois movimentos.
E a sua estética era também muito atraente pra eles, né? Por isso terem te adotado como poeta possível do movimento…
Sim! Me adotaram porque eu era muito sujo, né? Minha poesia sempre foi muito suja, muito porca. Aquela exacerbação da escatologia, da merda. A linguagem do Dobrabil era reflexo das minhas leituras de Sade, e a fixação do Sade era com a merda, mais do que com qualquer outra coisa. E no Dobrabil eu fazia muito a apologia da merda, para me opor àqueles cânones literários que se amarravam à literatura. Nós estávamos ainda numa espécie de literatura editorialmente controlada, e militarmente controlada também. Agora, esse anarquismo que eu cultivava era justamente na direção de tentar romper com uma linguagem e ao mesmo tempo reafirmar todas as outras linguagens, porque na verdade a gente sempre trabalha ideias antigas, não existe um ineditismo. Eu até brincava no Dobrabil que o mais original é o que plagia primeiro. Ideia não tem proprietário, tem usuário. Agora, a maneira como você retrabalha… É por isso que Millôr Fernandes é um dos meus mestres. A maneira como Millôr retrabalha conceitos, de brincar com os plágios, é muito importante para mim…
A pornografia faz parte da sua obra, como na recente Antologia da poesia vaginal, não é?
A poesia vaginal é obviamente uma brincadeira. Não tem nenhuma novidade ali. A editora me pediu um apanhado geral e eu pensei que devíamos brincar com a pornografia em termos mais amplos. Mas na verdade os meus temas estão todos ali. O fetichismo está ali, e é a isso que eu me referia quando os punks me adotaram. Tinha tanta pornografia na minha poesia, mas para um lado um tanto anti-higiênico da pornografia. Agora, no caso da antologia da poesia vaginal foi o caso de brincar com os cânones também dentro da pornografia. Ali tem todos os ingredientes, mas eu nunca fujo da minha proposta anti-estética e anti-higiênica.
E a sua relação com os quadrinhos? Como foi sua relação com o Marcatti?
Minha relação com os quadrinhos começou como resquício da minha colaboração com o Pasquim. Eu comecei a colaborar com o Pasquim quando voltei a São Paulo, porque o Angeli, que colaborava com a Folha de São Paulo, foi convidado para criar um caderno interno do Pasquim que se chamaria “Rumores Paulistas”. Seria feito em São Paulo, por ele e alguns colaboradores, como Glauco e Laerte. Mas além desses colaboradores, o Angeli queria um pessoal representante da cultura escrita, como Roberto Piva e eu. A gente começou a colaborar inicialmente ali, até que ele resolveu criar o seu próprio gibi, o Chiclete com Banana, assim como o Glauco iria criar o Geraldão, e o Laerte o Piratas do Tietê. Todos pela editora Circo, do Toninho Mendes. E aí nessa esteira eu fui convidado para trabalhar dentro do encarte da Chiclete com Banana, o Jam. Daí surgiu a ideia de publicar uma versão do meu Manual do podólatra amador em quadrinhos, em capítulos, dentro do gibi. Eu acabei chegando ao Marcatti porque ele trabalhava com uma estética parecida com a minha, aquela coisa da podreira, da escrotidão, da escatologia. E aí ele topou a ideia e a gente fez os capítulos e pensou em juntar todos, completar o livro e fazer a versão em quadrinhos, que acabou saindo em 1990.
O Chiclete com Banana traz uma coisa interessante dos anos 1980, que é manter essa linguagem contracultural, punk, mas conseguindo atingindo um grande público…
Sim, o Chiclete com Banana conseguiu repetir o feito do Pasquim, que foi ser muito lido, estar em bancas do Brasil inteiro. Antes dele não se tinha isso, existia os gibis da Disney, da Abril, o Maurício de Souza tinha conseguido, mas era tudo muito careta. E o Chiclete era uma coisa bem underground mesmo. E mesmo assim ele conseguiu vender em larga escala. Até hoje eu sou procurado por pessoas que eram leitores da revista, e que depois se tornaram jornalistas, artistas, coisas mais arejadas por conta da leitura desse gibi. Ele marcou mesmo uma geração. Muito skatista lia, muito punk, office boy. Pode-se dizer hoje que há uma geração de leitores do Chiclete como há do Pasquim.
É interessante pensar o que significavam essas pautas do Chiclete com Banana, porque ao contrário do Pasquim, era uma pauta muito menos da macropolítica, e sim da biopolítica, da subversão pelo comportamento. E com muito mais abertura para comportamentos desviantes do que o Pasquim, que era majoritariamente misógino e homofóbico.
Não há dúvida, o Pasquim ainda era muito preso aos vícios da esquerda ortodoxa. Ele era muito irreverente, humoristico, mas ainda preso aos conceitos tradicionais da esquerda, enquanto que o Angeli tinha muito mais o espírito do sexo, drogas e rock’n’roll. O Chiclete com Banana era realmente contracultural. E o pessoal do Pasquim não estava muito sintonizado com essas modernidades. O Jaguar e o Ziraldo ainda eram cabeças mais da antiga.
Já o Millôr, assim como você, trabalhou com várias linguagens, né…
Sim. Ele me inspirava muito. Ele era uma figura. E o bacana é que eu tinha contato pessoal com ele, a gente se ligava, trocava correspondência, e ele me estimulava muito. É impressionante a versatilidade do cara: traduzia clássicos, Shakespeare, fazia haicai, desenhava bem, era muito bom de texto… Era uma coisa que me deixava muito estimulado. Ele era aquilo que eu queria ser quando crescesse.
E como foi essa relação? Você se aproximou dele quando morou no Rio de Janeiro?
Foi depois. Enquanto eu morei no Rio não tinha contato com ele. Eu ainda era muito encorujado pra sair procurando as pessoas. Mas assim que o Jornal Dobrabil – que ele colaborou – saiu naquela edição em livro, a com capa preta, de 1981, eu fui pessoalmente ao Rio levar pra ele. E aí que o conheci. O ateliê dele ficava numa cobertura entre Copacabana e Ipanema e fui lá encontrá-lo. Ele me levou pra almoçar, me apresentou a Cora Rónai, que inclusive conseguiu matéria na Folha pra divulgar o Dobrabil. Ele realmente dava muita força para o que eu fazia.
Qual é a sua relação, como um poeta da contracultura, com a crítica literária, que aqui no Brasil tende a ser marcada e ditada pela academia? Você seguiu um caminho alternativo, sem nunca perder sua linguagem, e hoje tem muitos professores e estudantes de doutorado escrevendo sobre você. Como você lida com isso?
É engraçado que isso teve duas fases. Enquanto eu fazia o Dobrabil eu era muito anti- acadêmico, como Millôr também. Agora, a minha atitude diante da crítica em geral, e principalmente da acadêmica, que é mais canônica, é que eu os acusava de ser necrófilos. Eles gostavam de dissecar cadáveres, não trabalhavam com poetas vivos. Inclusive uma das poucas que romperam com isso foi a Heloísa Buarque de Hollanda, quando organizou aquela antologia de poesia marginal e colocou gente viva ali. Mas eu sempre tive aquela prevenção. Até o momento em que caiu a ficha de que eu estava sendo objeto de estudo de teses, e que deveria parar de chamar a crítica de necrófila, porque se não eu estaria colocando a mim mesmo na condição de morto-vivo, né? Então aí comecei a ter mais boa vontade com eles, inclusive porque há uma geração de professores, como o Ítalo Moriconi, que mudaram essa atitude, começaram a prestar atenção nos poetas vivos e valorizar as correntes mais recentes da poesia. E aí, obviamente, estou sendo estudado, inclusive fora do Brasil. A principal tese sobre mim se dá em Miami, feita pelo Steven Butterman. Inclusive o Steven, quando ele foi fazer a tese, ele queria fazer uma coisa viva, interativa, e ele ficou uns 10 dias aqui em São Paulo me entrevistando, gravando depoimento. Foi uma relação bem pessoal.
Você citou que só nos anos 1980 realmente se liberta para a sua sexualidade. Como ocorreu essa libertação?
Eu descrevo isso no Manual do podólatra amador, meu romance biográfico, que na verdade é um pseudoromance pós-moderno. Ali tem muita fantasia misturada com realidade, mas tem o básico que é minha atitude ao mesmo tempo muito convicta com a sexualidade, mas decidida a me enrustir durante o tempo que fosse necessário. Durante a faculdade eu ainda tive algumas relações heterossexuais, e depois que passei a participar do grupo de teatro amador eu comecei a me soltar um pouco mais, a me abrir com os outros integrantes do grupo. Mas só quando fui morar no Rio comecei a namorar, ter contatos homossexuais mais efetivos. E aí na minha volta para São Paulo a coisa se abriu totalmente, porque era a época da abertura política, que já permitia alguns grupos se formarem. O Somos foi um deles. E a partir desses grupos que eu realmente vim a me soltar totalmente, transar e pôr em prática minhas fantasias sexuais que estavam reprimidas, inclusive as fantasias sadomasoquistas.
Você falou que a paródia é um princípio central no seu trabalho. A paródia é uma forma de atuação política?
O que eu gosto na paródia é que ela se encaixa no paradoxo também, porque de um lado o parodista homenageia o original, porque se está parodiando é porque tem uma certa admiração pelo original, percebe uma certa potência nele, que você copia e ao mesmo tempo satiriza. Mas tem também outro potencial, que é de crítica de toda aquela estética que está sendo parodiada. Se parodia também para avacalhar. A paródia tem uma função ambígua que eu gosto muito. Essa sutileza que existe na ambiguidade é fascinante, desconcerta as pessoas, porque você nunca dá a certeza ao público de que cara você realmente tem, de que lado realmente está. Isso é muito importante para o artista, principalmente em relação à política. É uma máxima entre os humoristas que não existe humor a favor. Humor a favor é o que estão fazendo agora nas redes, tentando partidarizar o humorismo. Isso é ridículo. O humorismo tem que conservar sua capacidade crítica e não pode perdoar ninguém, nem o próprio autor. Ele mesmo precisa se ridicularizar.
Para finalizar, eu gostaria que você comentasse para além dessas influências que são mais comentadas e evidentes no seu trabalho, de Gregorio de Mattos, Boccage. Você pode comentar mais sobre o seu panteão, quem são seus autores, uma vez que você tem uma produção muito heterodoxa?
A questão é que eu sempre fui muito eclético, muito erudito a partir da minha formação. Mas é claro que tenho minhas leituras prediletas, e toda aquela linhagem dos malditos, passando pelos clássicos, pela Idade Média, como François Villon, Baudelaire, Apollinaire, Jean Genet, fazem parte delas. Mas acho que na prosa o Marquês de Sade é insuperável. Você tem o Cavaleiro Masoch, mas ainda é uma leitura aristocrática, enquanto que o Sade baixava o nível mesmo, sem cerimônias. Agora, na poesia tem muita gente, e para ficar mais na literatura em língua portuguesa tem o Antonio Lobo de Carvalho, que ficou conhecido como Lobo da Madragoa. Aqui no Brasil, além do Gregório de Mattos existe uma tradição nordestina muito interessante no século XIX, ainda com Laurindo Rabelo, que foi discípulo do Muniz Barreto, e depois tudo aquilo foi veiculado pela literatura de cordel. E a gente brinca que tem uma linhagem no cordel que é chamada literatura de bordel, porque existe toda uma tradição erótica dentro da cantoria, do repentismo. Eu ainda sigo essa vertente até hoje, porque é uma tradição que precisa ser preservada. Uma das coisas que me entusiasmaram recentemente é o que eu chamo de neo-cordelismo, que o pessoal da área chama de cordel novo, que é uma revitalização da coisa. Um dos principais representantes disso é o Moreira de Acopiara, um cearense que está morando aqui na região do ABC de São Paulo há um tempo, e que deixou muitos discípulos por aí. E é muito bacana saber que esse pessoal continua fazendo uma poesia viva, porque é uma vertente atemporal, que pega aquela coisa medieval ibérica e vem trazendo ao totalmente moderno. Agora, os clássicos também me marcaram, o 1984 do Orwell, o Admirável Mundo Novo do Huxley, e o Laranja Mecânica, do Burgess. Essa literatura contestadora da estrutura civilizatória ocidental, e ao mesmo tempo crítica da barbárie, continua me interessando. E, no caso do Laranja Mecânica, é fantástico porque além de ser um livro fenomenal, também se transformou num filme fenomenal do Kubrick. É muito difícil você ter um filme tão bom quanto o livro original. As minhas leituras principais são essas.