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Entrevista: Hilda Hilst

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Entrevista realizada por Sergio Cohn, Fabio Weintraub, Ilana Gorban e Marina Weis, na Casa do Sol, em 1999. Originalmente publicada na edição especial de 10 anos da revista Azougue, em 2004.

Você leu o artigo dedicado a você no último livro do José Castello, Inventário de sombras? Nesse artigo, ele aponta como contraditório o seu desejo de aceitação por parte do público, considerando a sua recusa a qualquer tipo de concessão às formalidades literárias, a qualquer tipo de mistificação, e o fato de você sempre ter se mantido “livre para fracassar”, como dizia Bataille…

… É o potlacht: o “poder da perda”. Não é que eu queira uma aceitação do público. Mas quando vai chegando a velhice, os 70 anos, dá uma pena ver que ninguém lê essa obra que eu acho maravilhosa, que é a minha. Fico besta de ver como as pessoas não a entendem, como ficam sempre insistindo em perguntar por que eu escrevo do jeito que escrevo. Falam coisas absurdas, que a minha obra não tem pontuação, não tem isso, não tem aquilo… Fiz todo tipo de texto possível e parece que ninguém entendeu. E eu me recuso a explicar outra vez. Acho desagradável ter que falar sobre a minha obra, é muito difícil. Eu não sei falar, sei escrever.

E a proximidade dos bichos? Em Sobre tua grande face, você pede a Deus para não lhe dar cachorros, pois Ele sabe que você ama animais e se sentiria confortada com eles…

Adoro bichos em geral. Menos aqueles de que todo mundo tem medo: aranha, escorpião, barata. Mas eu nunca mato bicho algum. Se for um besourinho, eu coloco no jardim. Mas se for barata eu dou aqueles gritos horrendos e chamo o caseiro para tirar ela de perto. Mas não deixo matar. Os cachorros eu adoro. Se pudesse, teria cavalos e vacas também. Mas nunca para matar. Tenho uma afinidade com bichos desde criança. Não sei por quê. Ontem li uma coisa horrível no Correio Popular: um cachorro faminto comendo outro cachorro. Coisa medonha. Culpa do dono do canil que deixou os animais sem alimento, todos magérrimos. Fiquei desesperada. Mas, como já tenho um monte, não pude fazer nada.

E quem toma conta de todos esses cachorros?

O caseiro. Essas relações com empregados podem ser desconcertantes. Minha mãe tinha um cachorro grande, uma espécie de boxer, não me lembro ao certo. Um dia ele fez cocô na sala. Fui pedir a um empregado, que se chamava Marciano, para limpar aquilo. “Marciano – vejam só o nome – você limpa pra mim a bosta do cachorro?”, perguntei. Ao que ele respondeu: “Não limpo bosta de cachorro”. Aí fiquei brava e quis imitar minha mãe. Minha mãe era severa demais com os empregados, que curiosamente a adoravam. Falei: “Se eu, que sou uma doutora, limpo, por que você não pode limpar?”. E ele: “É uma questão de gosto, doutora Hilda”. Pegou o guarda-chuva e foi embora… Desatei a rir sem parar por causa da resposta dele, que achei ótima. Minha mãe não viu graça, porque era uma mulher muito ressentida.

O Alcir Pécora escreveu certa vez que a presença dos bichos e da loucura ao longo da sua obra constitui sinal de uma utopia, a de uma vida fora da lei – bichos e dementes são subtraídos ao pacto civilizatório…

Sim, é verdade. Os loucos se prendem a essa coisa que já contei várias vezes, à figura do meu pai. Que era um homem lindo, deslumbrante, e acabou louco. Gostaria muito que, no futuro, a minha casa fosse transformada numa fundação chamada “Apolônio de Almeida Prado Hilst”. E num centro de estudos psíquicos sobre a ressurreição da carne e a imortalidade da alma. Estou pensando em como fazer tudo isso.

Os seus textos possuem momentos belíssimos que são mergulhos no inconsciente, na loucura. E o que me impressiona é que são momentos na verdade muito lúcidos, de descobertas…

Toda a minha obra é uma homenagem à loucura. É devido ao meu pai. O fato de ele ter ficado louco me impressionou muito. Mas eu achava lindo ser louco, porque diziam que ele era louco. Então eu sempre tive um deslumbramento muito grande pela loucura. Pode ser que eu seja louca também, tanta gente fala que sou…

Você tem medo disso?

No começo eu tinha. Muito medo de ficar igual ao meu pai. Minha mãe então inventava mil histórias. Falava que ela havia traído meu pai, que eu não era filha dele… Tudo muito confuso. Ela inventava um cara, um joalheiro que morava em Jaú, de quem eu seria filha. Comecei a ficar obcecada atrás desse joalheiro. Um loiro dos olhos azuis. Até que ela me confessou que era mentira, que ela havia inventado tudo porque temia que eu ficasse pensando demais no meu pai e acabasse enlouquecendo também. Eu tinha tanto amor pela idéia do meu pai… Por causa disso, sempre tive medo de ter filhos. Os médicos sempre dizem que a loucura acontece na segunda geração. O filho de uma pessoa paranóica, esquizofrênica, pode ser normal, mas o neto terá grandes chances de ser louco. Por isso nunca quis ter filhos. Não tenho afinidade com crianças. Elas não me entendem e eu não as entendo. Ficam olhando pra mim, esquisitíssimas. Tenho muito medo de crianças. Um médico me disse que é porque eu também sou criança: criança tem medo de criança… Essas coisas: vem a mãe e pede para o filho: “Olha como a tia é bonita!”. Daí vem o menino e diz: “Eu não acho, ela é feia”. Eu ficava discutindo com a criança: “Por que você me acha feia?” Sempre tive um diálogo desagradável com crianças… (risos)

Mas construiu uma personagem criança adorável, a Lory Lambi…

É. Eu queria muito fazer um livro para crianças com a história do cu do sapo Liu-Liu. Um sapo que queria tomar sol no cu. As crianças iam adorar. É tão bonita a história, seria divertido. Podia virar um livro grande, com ilustrações coloridas. Do Angeli, por exemplo. Ficaria lindo.

Há uma passagem no Estar sendo, ter sido em que você descreve uma cena de felação com uma prostituta banguela. Há realmente várias ocorrências desse motivo odontológico na sua obra…

É verdade. Acho que eu tenho pavor dessa coisa de perder os dentes, que eu associo muito à idéia da morte. Por isso estou aflita pra ir ao dentista. Mas são deslumbrantes as vantagens de ser banguela. O chato é que a gente não pode rir nunca. Só que, no meu caso, a perda dos dentes veio um pouco tarde: agora eu não chupo mais o pau de ninguém. Há vinte anos não vejo um pau. Até falei pra Marilene Felinto de um amigo meu que estava tomando banho aqui em casa. Entrei por engano no banheiro e, quando vi o pau dele, comecei a rir sem parar e fui hospitalizada. “Meu Deus, é por causa disso que se briga tanto nesse mundo?”, pensei. Ri tanto que fiquei com falta de ar, porque tenho bronquite asmática. Tiveram que me hospitalizar, de tanto que eu ri…

Essa coisa do sexo fica tão desimportante depois que a gente envelhece. Fica cômico também, não dá mais pra levar a sério. Então, a gente só pode rir com esse negócio de foder. Perde-se também aquilo que o Flaubert chamava de alacridade, isso que a pessoa sente quando está gostando de alguém. Uma alegria que não se pode explicar. Pra mim ficou tudo esquisito agora. Posso achar a pessoa muito bonita, mas não tenho mais atração por nenhum homem. Nem por mulher. Por mulher seria ótimo. Parece que a Simone de Beauvoir ficou lésbica depois de velha. Essa chance eu não tenho. Sempre tive medo da buceta, um medo mortal. É uma coisa tão escura, tão funda, parece que você está entrando numa gruta. A gente nunca sabe o que tem lá dentro. Pode ter uma aranha, um gato morto, ou sei lá o quê. Sempre tive medo da minha buceta, medo pânico. Ela me assusta terrivelmente agora. Nem olho. Fico pensando: “Meu Deus, o que será que vem por aí?…” Tenho medo de colocar o dedo lá dentro. Fico enojada e com medo. Não sei o que pode aparecer. Por isso nunca me masturbei. Como é que homem pode gostar de mulher? Acho uma coisa impressionante.

Jung fala da vagina dentada…

É a porta da iniciação do herói. Tenho pavor da vagina dentata. No Estar sendo, ter sido também há a história do cara que inventou de ter dentes na bunda.

O William Burroughs tem uma história parecida…

Ah, é? Ele é louco.

Queria voltar à sua idéia de transformar a Casa do Sol num centro de estudos psíquicos sobre a imortalidade da alma e a ressurreição da carne. Você se refere à imortalidade da alma pessoal ou à imortalidade de uma parte suprapessoal da alma que se cruza com o espírito divino, criador, algo como a enteléquia aristotélica?

Acho que é a consciência que vai sempre se manter.

E essa alma é dada? Tem aquele verso famoso do Keats, “Chame o mundo, se te apraz, de o Vale da Criação da Alma”…

Realmente parece que a gente constrói uma alma. Até sobre esse ponto há uma história engraçada. Fui, junto com Mário Schenberg, dar uma aula inaugural na Unicamp. Mário achava que nós, eu e ele, havíamos nascido no Egito. Que eu havia sido uma sacerdotisa amiga dele. É claro que ele não falava dessas coisas na Universidade. Dizia que se eu falasse, ele desmentiria. “Tenho medo de perder o meu emprego”. Mas nessa aula, a que compareceram muitos físicos, por causa do Mário, comecei a falar desses assuntos. A certa altura, um físico meio gargalhante, que estava coçando o saco, metido a besta, perguntou: “Quer dizer então que a senhora acredita mesmo na imortalidade da alma?”. Respondi: “Acredito na imortalidade da minha alma. Mas o senhor, se continuar coçando o saco dessa forma, sequer constituirá uma!”.

Como era o Mário Schenberg?

Era um homem maravilhoso, capaz de explicar pra gente as teorias de Einstein com uma simplicidade impressionante. Não tinha nenhum orgulho, era muito humilde, muito simpático. Foi um grande amigo, cuja perda me deixou muito triste. E tinha uma intimidade muito grande com a arte. Tem até um texto que eu escrevi para ele numa revista…

E aquela figueira linda lá fora?

Essa figueira acho que tem uns trezentos anos. Ela atende pedidos. Hoje, aliás, é um bom dia, por causa da lua cheia. Tudo o que eu pedi pra essa figueira deu certo. O que os meus amigos pediram também aconteceu. Por exemplo, o Caio Fernando Abreu pediu que a voz dele engrossasse. Ele tinha uma voz muito fina, quase não falava, de medo que os outros rissem. Ele pediu que a voz engrossasse, pediu para ganhar o prêmio Chinaglia e também para ir à Europa. A figueira deu tudo pra ele. No dia seguinte, ele estava com outra voz. Fiquei besta. Ele veio me cumprimentar de manhã e eu não sabia quem é que estava falando. É cada história que acontece aqui nessa casa…

O que foi que você pediu à figueira?

Pedi, quando era mocinha, pra construir uma casa neste lugar. Queria fazer uma casa perto da de minha mãe, que não queria me dar o terreno. Minha mãe tinha uma hipoteca sobre toda a fazenda. Daí eu tive que pagar, porque a mamãe estava sem dinheiro na época. Houve até um homem, chamado Pedro Romero, que se propôs a pagar a hipoteca em troca da figueira. Propôs na frente dos advogados, todos esperando com a caneta na mão. Eu disse: “Não, essa figueira sou eu mesma. Não posso me vender para o senhor”. Todo mundo ficou boquiaberto. Depois de uma meia hora, ele topou pagar a dívida sem me tomar a figueira.

A água, a fluidez, são imagens muito freqüente na sua obra. Parece-me que até mais que isso, são também uma dinâmica muito forte da sua escrita…

Não sei nada sobre a minha obra. Só sei que a escrevi. Durante cinqüenta anos pude escrever tudo o que queria escrever. Nunca parei, apesar de dizerem que ninguém lia. Eu mesma não sei explicar o que fiz. Queria ser como Joyce, que sabia falar sobre o seu Ulysses. Todo mundo que escreve de um modo diferente é levado a dar explicações. Mas, para mim, tudo vem do alto. Sou apenas uma intérprete disso. Claro que eu me esforcei muito, trabalhei muito, mas a poesia é um dom divino, inexplicável. A gente fica doente, não, fica doente não, fica excitada, febril. É algo imediato. Depois tudo vem vindo gradativamente, como uma continuação do dom inicial. Como o primeiro verso do Cantares do sem nome e de partida: “Que este amor não me cegue e não me siga”, que apareceu assim, do nada… Vocês não querem se servir de um pouco de vinho do Porto?

É a sua bebida preferida?

Durante o dia, sim. Às onze horas eu começo a tomar vinho do Porto. Tomo mais ou menos meia garrafa. Há homens, como o Richard Francis Burton, aquele que descobriu a foz do Nilo, traduziu Camões, o Kama Sutra, as Mil e uma noites… que tomava como remédio. Acho que ele tomava umas treze doses, todo dia. Daí me deu também essa vontade. À noite, eu só tomo uísque.

Você tem interesse pela literatura mística mais hermética?

Tenho interesse pela literatura visionária. Há uma santa sobre quem li muito, Santa Ângela de Foligni. É uma santa que perdeu, em poucos meses, o marido, o filho e a mãe. Depois ela entrou para a Ordem de São Francisco. Li uma coisa dela que me assustou horrivelmente. Ela dizia que teve uma visão de Deus em plena majestade. Era “uma luz tão intensa”, ela escreveu que lá não havia “nem sombra de amor”. Fique gelada quando li.

… E Santa Margarida Maria Alacoque?

Nossa Senhora! Era aquela que bebia água em que se banhavam os leprosos. Isso me assustava quando eu era criança. As freiras me mandavam ler sobre a vida dessa santa. Eu vomitava sem parar. Outro dia, tive um sonho estranho. Alguém falava comigo: “… e insere a tua oitava maravilha neste espaço: Roxana, lua baça”. Algo assim. A única Roxana de que eu me lembro foi a mulher do Alexandre Magno. Naquele livro do Däniken, Eram os deuses astronautas?, há uma Orjana. Parece que é uma mãe extraterrestre que fecundou setenta humanos. Mas não sei o que querem dizer essas coisas todas. Eu acordei de manhã e ouvi alguém falar “e insere a tua oitava maravilha neste espaço, Roxana, lua baça”. Então eu vi as pirâmides do Egito. Não entendi até hoje. De outra vez, me falaram: “Lembra-te, Apuleia, e se cantássemos juntos a canção?”. Apuleia. Daí eu fui ler tudo sobre o Apuleio. Ele escrevia em muitos estilos. Ouvi três vezes essas vozes estranhíssimas. Mas qual seria a oitava maravilha? Eu conheço as sete maravilhas do mundo. Qual seria a oitava? Deduzi que seria uma coisa secreta, pois a pirâmide tem muitos símbolos secretos. São recados esotéricos demais pra nós.

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