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Entrevista: Ilessi

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Entrevista realizada por Sergio Cohn, Leonardo Lichote e Paulo Almeida. Originalmente publicada no Cadernos de Música – Ilessi (Revistas de Cultura, 2020)

De onde você veio? Como é a sua história antes da música?

Eu nasci em Campo Grande, Zona Oeste do Rio. Minha família saiu de lá quando eu era bebezinha, foram para o Cachambi, depois para Jacarepaguá, quando eu tinha uns 3 anos. Eu continuei indo muito para Campo Grande porque minha família toda morava lá, principalmente por parte da minha mãe. A minha infância, adolescência, até meus 30 eu morei em Jacarepaguá. Meu pai é músico, cantor e compositor, então eu ouvia muita música o tempo todo dentro de casa. Meu pai recebendo os amigos, os parceiros, fazendo e ouvindo muita música. Sempre foi o barato da família toda.

Qual música?

Eu era rata de rádio. Ouvia muito rádio, mandava cartinha pra rádio, pedindo música, ligava pra rádio da casa da vizinha, porque não tinha telefone em casa. Sempre tive uma ligação quase que obsessiva com a música. Agora, o que a gente ouvia era muita coisa diferente, música pop americana, música instrumental, principalmente brasileira, alguma coisa de jazz… Jazz era mais as cantoras, tipo Sara Vaughan, Billie Holiday. Essas duas principalmente. Depois Ella Fitzgerald, Nancy Wilson… Aí o pessoal que veio depois, Dionne Warwick, Diane Schuur. Cantora de jazz, a gente ouvia muito, e música brasileira. É tanta gente: Gil, Caetano, Milton, Elis, Nana, Leny Andrade, Boca Livre. Meu pai é muito fã dos Beatles, então ele tinha uma caixa, um box com toda a coleção dos Beatles. A gente ouvia muito também. Muita coisa, muito diferente. Boleros…

E qual música mexeu mais com você?

De disco infantil, eu ouvi muita coisa que, na verdade, foi lançado mais na fase da Camila e da Magna, minhas irmãs mais velhas. Obviamente eu amava Xuxa, ouvia muito. Mas eu ouvia o Daniel Azulay, estou até com uma capa aqui dele, tá bem aqui em cima. Eu ouço até hoje disco de criança.

É mesmo?

Eu gosto de imitar vozes. Inclusive eu uso isso cantando. Eu gosto de imitar personagem, criar personagens. Eu adoro disco de criança. Eu sei todas as falas da Turma do Lambe-Lambe, do Daniel Azulay. Os Saltimbancos, Arca de Noé. E também da minha fase: Trem da Alegria, Balão Mágico. Foi um pouco antes, mas cheguei a pegar.

Fui ver o Daniel Azulay no Méier, minha mãe

me levou pra autografar um livro dele…

Eu também já fui vê-lo! Nossa, fiquei assim, deslumbrada, apaixonada. Vou pegar o disco pra mostrar, peraí (sai e volta com o disco).  Essa personagem aqui, que está com o violão, a galinha Chicória, quem faz ela é uma atriz muito maravilhosa (Selma Lopes), que faz a voz da Whoopi Goldberg. A dubladora da Whoopi. Ela é muito gênia essa mulher, impressionante. E é um disco bom musicalmente!

Isso que você falou sobre criar, imitar vozes… De uma maneira exagerada, é um princípio básico do intérprete, né? Ele não necessariamente cria vozes como um humorista, o Chico Anysio, mas ele cria vozes diferentes para cada construção, cada personagem. Isso passa por aí pra você?

Passa totalmente! E é uma coisa que eu falo muito no meu trabalho como professora. Porque tem muito discurso de que você tem que encontrar o caminho original, próprio, não tem que imitar ninguém, e eu acho isso uma balela total! Todo mundo imita todo mundo! Pra aprender a falar você imita. Todo mundo tem que passar pela imitação. É claro que você vai encontrar o seu caminho em algum momento.

Não tem outro jeito, né? Você só consegue ser você no fim das contas.

Exatamente. Mas aí é isso. O meu aprendizado do canto passou pela imitação. Eu lembro de cenas assim: minha mãe e minhas irmãs vendo novela na sala, e eu fechada no quarto ouvindo música. Mas eu ouvia imitando aquelas pessoas, pra conseguir chegar naquele som, naquele tipo de recursos vocal, pra poder reproduzir aquilo.

Você lembra de alguém que você gostava de imitar?

A Elis.

Alguma canção específica?

Tem um disco que eu ouvi para isso, e muito nova, mas acho que eu não entendia direito que eu estava fazendo isso. Mas é porque talvez tenha sido o disco dela que mais me impactou, no sentido do lugar que ela chegou, com uma inteligência interpretativa que eu acho muito rara. Foi o Transversal do Tempo, ao vivo. Na minha opinião é a melhor fase dela, como cantora. Eu pegava e ficava ouvindo aquelas músicas, “O Boto”, “Cão Sem Dono”, essa “Transversal do Tempo”, essas coisas assim, né? “Corpos”, do Ivan Lins, aquelas coisas, ela cantando “Deus lhe Pague”, gritando…

Quantos anos você tinha?

Ah, acho que eu devia ter uns quatorze, por aí. Porque esse foi um disco que a gente tem o vinil, mas ele estava empenado. Então, eu só consegui conhecer mesmo, sem pular o tempo todo, mais velha. Diferentemente dos outros dela, que eu ouvia desde sempre, desde que me entendo por gente. Mas eu imitava muita gente. O Gil é um cara que conheci bem depois, acho que mais ou menos nessa fase, porque meu pai não comprava disco do Gil. Conheci através de um grande amigo.

Quem mais você imitava?

Eu acho que o aprendizado do canto foi através da imitação. Essa é a impressão que eu tenho. Eu imitava todo mundo. Lembro de eu imitando Paul McCartney, gritando, tipo “I’m Down”, aquelas coisas bem de grito, de rock. Eu imitava essas coisas. Tudo que eu ouvia, eu imitava. Especialmente esse disco da Elis, que foi um laboratório mesmo. Eu ouvia, e ouvia, e ouvia de novo, e tentava chegar naquele som. Uma coisa muito doida.

Depois que você começou a estudar o canto, você percebeu que muita coisa ali você já tinha aprendido, e já fazia intuitivamente, sem saber o que era aquela técnica?

Com certeza! Tem coisas que eu não aprendi em aula de canto nenhuma! Eu não tenho esse intuito, a princípio, de ser uma professora que vai fazer uma carreira, livros, se especializando nessa coisa mais acadêmica. Mas estou fazendo um mestrado agora, profissional, sobre improvisação vocal. Eu acho que um dos maiores recursos para improvisação vocal é a imitação. É como se você criasse um banco de dados de vários recursos possíveis, vários sons. E eu ouvi de muitas professoras frases do tipo: “isso você não pode fazer”. Como por exemplo golpe de glote, como esse efeito “ha ha ha”. Isso eu ouvi o Gil fazendo o tempo todo! O improviso do Gil no “Lamento Sertanejo”, que ele faz “hã hãããã, hã hããã” (imita). Isso é golpe de glote! Se a gente for numa onda de “um molde do canto”, a gente perde totalmente a liberdade, sabe? E isso é o que me deixa muito em paz com essa coisa de ter aprendido assim. Não como uma bandeira, mas é porque eu realmente acho que o aprendizado começa pelo som. Começa pelo improviso, de uma certa forma, no sentido de uma primeira experimentação que é improvisada, que você dá um jeito, e aí depois a formação vai te ajudando a facilitar algumas coisas, que sem conhecimento técnico você faz de uma forma que pode ser um pouco mais prejudicial vocalmente. E que pode ser um pouco mais desgastante, mais cansativo, sabe?

Alcançar lugares que sem técnica você não alcança, né?

A técnica tem uma importância para a expansão de um conhecimento que você já tem. Quando ela atua a serviço de um molde do cantor, aí ela estraga. Eu particularmente acho que tem poucos bons professores de canto no Brasil. Digo de canto popular, sabe? Primeiro, porque a gente não tem uma referência sólida. Acho que agora que estamos começando um processo bacana disso. Mas a referência primeira é o canto lírico. A bíblia do canto é “A Estrutura do Canto”, do Richard Muller, que é uma bíblia, mas é um livro feito por um cantor lírico. Então tem uma mentalidade do molde do canto, tendo como referência o canto lírico. Hoje você ainda vai em universidade de música, que ensina canto e que tem esse tipo de referência. O aluno chega querendo cantar uma onda, sei lá, querendo cantar Cátia de França, uma cantora que usa prioritariamente a voz de peito cantando, a voz “falada”. Se quiser cantar daquele jeito, vão dizer que está tudo errado. Faz a embocadura assim, faz o efeito assado… E aí mata o cantor. Porque cria um monte de moldes, vários cantores cantando da mesma maneira.

Talvez seja por isso essa minha grande referência da Elis. A minha relação maior seja com ela. Tem a ver com eu achar que ela é uma das cantoras brasileiras que mais conseguiu traduzir essa relação do canto com uma flexibilidade estilística muito grande. Então, é uma cantora que a gente pode dizer que cantava tudo muito bem. Claro que não é tudo tudo, mas é muito raro uma cantora com um grau de intimidade com tantos estilos tão diferentes. Ela foi uma referência. E eu fico tentando dar um passo além, em relação às minhas referências, obviamente. Eu fico tentando explorar caminhos que eu percebo que as minhas referências não chegaram a explorar. Talvez seja, pra mim, o grande barato de ser cantora: é um universo que nunca se esgota. Você vai cavando coisas nos meios mais improváveis, sabe? E tem coisas que eu uso, cantando, do meu improviso por exemplo, que é referência de jeito de falar, do carioca, de gíria, sei lá, de grito de vendedor, coisas assim. Trazer essa coisa, uma relação com a voz mais livre, mais desprendida de padrões, de moldes.

O que é o canto popular, e por que ele é

diferente do lírico, se a voz é a mesma?

O que diferencia um do outro? Como você

compreende isso?

Eu acho que é a liberdade e a possibilidade de você inclusive flertar com esses moldes do canto lírico, sabe? É liberdade no sentido mais amplo possível. Eu, por um tempo, fiquei muito numa onda de buscar uma coisa genuína do canto popular brasileiro, e aí cheguei à conclusão de que é impossível, porque a gente é essa loucura, esse caldeirão multicultural absurdo. Então, pra mim, o canto popular se caracteriza por essa possibilidade de total utilização da voz. Obviamente que algumas coisas são características de um determinado lugar. A gente tem características da nossa língua, do nosso jeito de falar. Algumas coisas juntam mais, a gente sente que cantando usando uma determinada silabação a gente se aproxima mais de uma naturalidade da nossa fala, do som que a gente usa falando.

Mas, muitas vezes, quando a gente fica tentando, e isso está sendo meu maior desafio no estudo de improvisação, chegar numa ideia de sistematização dessa sonoridade, a gente se estrepa, porque na música brasileira já existe uma coisa muito, muito, muito múltipla, muito diversificada. São muitas possibilidades sonoras de utilização da voz. Por exemplo, o que vem na minha cabeça é: Gil, no Festival de Montreux, fazendo aquelas coisas que parecem referência a alguma coisa meio arabesca. São coisas que eu acho que ele vai introduzindo dos sons que ele ouve, das referências que ele tem, do canto e da música do mundo todo, e aquilo acaba gerando uma outra coisa, entende? Você tenta identificar, mas não é exatamente o que é feito naquele lugar. É alguma coisa que parece que é misturada com milhares de outras coisas, e aí é gerado um resultado, que é o resultado do Gil, entendeu? Como eu percebo no João Bosco, também.

Você estudou na Escola Portátil também, e chegou a dar aula lá, né?

Sim.

Então, a Bia Paes Leme me deu aula de Harmonia lá. Ela falava uma coisa que é ao mesmo tempo óbvia e uma iluminação, porque tem tanto músico que não vê isso. Quando vem esse papo de “isso tá errado, isso não pode”, ela gosta de lembrar que a  música existia antes da teoria. A teoria tentou explicar um negócio que alguém saiu cantando.

A gente parte do som! O que vem depois é estruturação, o sistema de escrita, alguma coisa que a gente tenta utilizar para se comunicar de uma forma mais fácil. Por exemplo, se você quiser se comunicar com um músico estrangeiro, e você não sabe a língua dele, então a escrita facilita muito para que as coisas sejam mais rápidas. Mas ela não vai reproduzir nunca exatamente o que é feito sonoramente. Esse trabalho que eu tô fazendo, eu fiz uma monografia sobre estilos de improvisação vocal na música brasileira. Eu ouço muito as pessoas falando “na música brasileira não tem muita improvisação vocal”. O que eu discordo absolutamente, eu acho que ela tá o tempo todo na música brasileira. Mas não num formato que a gente identifica como improvisação, que é um formato mais jazzístico. Porque mesmo alguém bem jazzístico, como Leny Andrade, ainda faz com uma silabação muito própria. É uma silabação brazuca, dentro de uma estrutura musical mais vinculada ao jazz. Mas nem tô falando só disso. Existe improvisação no Milton, por exemplo. Existe improvisação no Raul Seixas.

A Dona Ivone!

A Dona Ivone! Existe improvisação na Rita Lee, nos Mutantes! Existe improvisação no Monsueto cantando “A Tonga da Mironga do Kabuletê”. Aquilo que o Monsueto faz é improvisação, ele cria uma voz, como se fosse um cara xingando em nagô, pira ali. Ele tá fazendo improvisação livre. Existe improvisação vocal na música brasileira o tempo inteiro. Só que não tem aquele formato que a gente entende como improvisação.

Voltando aos seus 14 anos. Você, por conta do seu trabalho como cantora, compositora e professora, você pensa na música, não apenas a executa. Esse negócio de entender que a imitação é base do seu canto é teoria consciente mas também é vivência espontânea. Eu queria que você falasse um pouco disso, dessa descoberta da cantora, de quando você percebeu que não era mais apenas uma curtição, mas algo que poderia ser profissional também.

Tem uma coisa que eu nunca entendi muito o porquê, mas eu sempre gostei muito de cantar. A memória que eu tenho é que desde muito nova, criança, eu sempre gostei muito de cantar e sempre quis ser cantora. Então eu não lembro de um momento em que, sei lá, com 13 anos eu pensei “nossa, vi fulano e decidi ser cantora”. Isso, na minha cabeça, sempre foi a minha vontade. Sempre foi o que eu mais gostei de fazer, e eu via os artistas nas capas de vinil e me imaginava sendo eles.

Com mais ou menos uns 13 anos, eu comecei a estudar música, mas meu pai trabalhou em banco, no Banerj, e ele sempre quis muito trabalhar com música, mas tinha essa dificuldade, em ter aquele expediente de trabalhar das 8h às 20h. E ele falava assim: “Você tem que tocar algum instrumento! Não pode depender de músico!”. Eu achava aquilo um saco, mas foi uma lavagem cerebral, que eu cedi e o primeiro instrumento que aprendi foi o violão. Aprendi nos cursinhos furreca e tal, até chegar no Carlinhos Delmiro, que foi o professor de violão do meu pai também, que o conheceu através do Arnaldo Costa, um grande músico, parceiro do Maurício Einhorn, do Taiguara, e era muito amigo do meu pai, e foi professor do meu tio e depois do meu pai. O Carlinhos é irmão do Hélio Delmiro. É um cara genial, muito genial. Ele resolveu se dedicar à carreira de professor, hoje tá na Igreja Universal, então acho que também trabalha com ensino de música nas igrejas.

O Carlinhos reforçou um tipo de relação que eu já tinha com a música, que era tipo “se você quer tocar, toca”, sabe? Não tinha esse negócio de “essa é difícil, você ainda não está no nível de fazer essa música, você vai tocar daqui a um tempo”. Não tinha isso! Então, aquele professor completamente louco, que eu chegava e falava assim “ah, eu quero tocar uma música do Toninho Horta”, ele de pronto respondia “vambora!”.  Aquilo me estimulava! Eu era louca por aquilo, estava tocando o que eu queria tocar, o que eu mais gostava de ouvir. Aquela foi a fase piração Toninho Horta.

Isso aos 15 ou 16 anos?

Aos 14 anos, quando eu comecei a fazer aula com ele.

E quando foi a primeira apresentação em público?

Com 17 anos. Aí que foi a onda. Nesse mesmo período que eu comecei a estudar com o Carlinhos, eu entrei na escola Villa-Lobos. Porque meu pai falava: “Tem que tocar, tem que aprender teoria musical, não pode ser um músico qualquer, senão vão passar por cima!”. Aí eu comecei a estudar piano na Villa-Lobos. Fiz dois anos de piano, depois eu fiz violão mais dois anos. E num desses períodos eu conheci um professor, o Carlos Eduardo, que hoje é professor de História da USP, de Teoria Musical, e é filho do Bebeto, baixista do Tamba Trio. Quando eu tinha 16 anos, falei pra ele: “Eu quero aprender a cantar”. Aí ele disse: “Você tem que fazer aula com a melhor professora de canto do Rio”. Era a Mirna Rubim. Comecei a estudar com a Mirna, ela dava aula em casa, no quartinho da casa dela. Depois ela virou professora da UniRio, fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos, criou uma escola dela, o Estúdio Voce. Virou uma referência. Mas, quando estudei com ela, ela dava aula em casa.

Isso fez uma grande diferença, porque eu tive muito cedo uma base técnica muito boa. Com 16 anos, eu acho que é uma idade legal para começar a aprender técnica. Mas eu fazia sempre assim: fazia um pouquinho e parava, porque não tinha dinheiro pra pagar. Mas o que eu aprendi eu aproveitei bastante. E chegou um momento que a Mirna falou: “Você tem que começar a cantar”. Eu respondi que não tinha onde cantar, mas ela insistia que eu precisava começar a cantar em público, senão eu ficaria girando em círculos. E que eu iria aprender a cantar mesmo no palco e não numa sala de aula.

Daí, um dia, eu consegui marcar uma canja no Palpite Feliz, que é um bar em Vila Isabel, que o meu pai frequentava bastante para tomar uns gorós. E daí ele falou com a dona do bar, a Vera Gama, que eu queria começar a me apresentar, e ela falou para eu ir lá dar uma canja. E eu pedi para a Mirna me acompanhar, mas ela me deu um bolo. Até hoje eu acho que ela fez de propósito, para eu me virar! Mas eu me apresentei de qualquer forma. O meu pai pediu para um grande amigo dele, o Jorge Castro, me acompanhar no violão. Disse que era urgente, para hoje! E ele topou. E eu cantei as coisas que ouvia: Marisa Monte, Carlinhos Brown, “Maga Malabares”, “Asas nos Olhos”, que é uma música do Claudio Nucci que a Nana Caymmi gravou. E alguns standards, como a “Bewitched”, que eu conheci num disco da Carly Simon que eu ouvia muito, o My Romance.

O que achou de cantar em público?

Fiquei em pânico. A primeira sensação que eu tive foi pânico, não conseguia me mexer, muito medo. Aí a dona do bar disse: “nossa, você tá com a voz pronta, tá tudo certo, só precisa se mexer!” (risadas). Aí ela falou: “cara, vai no Chico’s Bar”, que ainda existia na época e era um lugar importante da música carioca. Aí eu ia com meu pai, porque eu era menor de idade. Lá a música começava às 23h e terminava pelas 4h da manhã. Eu lembro que na época quem estava fazendo gig lá era Leny. Então tinha crooner da casa, depois entrava Leny, depois a crooner voltava. Eu ia dar canja. E só podia dar canja depois do show da atração principal. Aí eu dava canja lá pela 1h da manhã, 1h30 da manhã. Fui algumas vezes lá, cantei bossa nova, essas coisas.

Leny te viu cantando?

Não. Eu falei com elas várias vezes. Mas ela chegava, fazia o show dela e ia embora, não ficava pra gig depois. Todas as vezes que eu falei com a Leny, de tiete mesmo, ela sempre foi muito engraçada, divertida, simpática, generosa. Ela gosta muito de falar, né? Gosta de dividir as memórias dela, o conhecimento dela. Ela é muito foda. Ela foi uma cantora que eu imitei muito! Absurdamente, imito muito Leny! Especialmente os improvisos dela.

Que são fantásticos. Como você disse, o pensamento dela é jazz, mas não é só jazz. É samba-jazz.

Ela é uma dessas artistas, como eu falei do Gil, que obviamente dentro do caminho dela, ela criou uma outra coisa, um jeito dela. Ninguém canta como ela. Ela criou uma coisa muito própria, é muito impressionante. E é muito bonito também ver a Leny interpretando canções. Porque ela tem muito essa onda de ter uma divisão muito sofisticada, domínio rítmico, uma criação de uma silabação muito própria. Só que quando ela canta “Esses Moços”, do Lupicínio, ou “Violão Vadio”, do Baden, porra! É muito foda! Não é um virtuosismo estéril.

Depois da estreia no Palpite Feliz, depois do Chico’s Bar, como foi esse caminho como cantora?

Eu não tive um caminho de cantar em barzinho, essas coisas. Eu até tentei, mas não é a minha. Eu ficava muito frustrada. Não gostava de cantar em bar. Aí eu fazia em ambientes que eu sacava que dava pra fazer uma coisa parecida com um show, onde dava pra cantar para uma plateia que vai ouvir. Cantei muito em clubes, centros culturais pequenos, essas coisas. Fui estudando. Eu lembro que quando eu estudei violão pela segunda vez na Villa-Lobos, com o Fabrício Cruz, que foi um professor muito importante pra mim, foi aí que comecei a estudar  Guinga e outros músicos desse nível. Só que eu sempre tive muita preguiça de estudar, a verdade é essa. Eu não conseguia estudar aquelas técnicas e o Fabrício foi percebendo isso, e foi criando um grupinho para que eu começasse a cantar aquelas coisas que, a princípio, eu queria tocar. Então, aí eu fui fazendo a partir daquele contexto, coisas mais sérias, digamos assim, apesar de eu sempre ter levado a sério tudo que eu fiz. E sem dúvida meu trabalho foi para um outro lugar. Veio um reconhecimento profissional maior, quando eu tive contato com a Escola Portátil. Comecei a estudar lá em 2003.

A faculdade de Serviço Social foi antes?

Não. Foi durante. Eu comecei a estudar Serviço Social em 2000, estava no meio da faculdade. Estava fazendo estágio.

Tem esse recorte do Serviço Social no meio

da história, né?

Que foi a história da família falar: “Vai fazer música? Vai morrer de fome!”.

Como que foi para você isso?

Foi horrível, eu odiava. Mas eu não tinha outra opção, eu acho. Não tinha maturidade para ter outra opção, não conseguia visualizar a possibilidade de viver de música, ganhar bem.

E peitar a galera e falar “posso sim”.

Entendi isso muito depois, mas foi importante, muita coisa que aprendi no Serviço Social. Eu viajei, apresentando trabalho em congresso. A primeira vez que viajei de avião, na vida, foi em 2005! Eu não tinha dinheiro, cara, para andar de avião. Aí eu lembro que meu pai pagou a passagem pra mim, uma fortuna. Aí depois as passagens foram ficando mais baratas, e tal. Bom contextualizarmos isso, o momento em que estávamos. Foi ficando mais possível. Porque sempre tive essa pira de conhecer compositor, conhecer gente e tal. Aí fui conhecer o meu caminho, que não era de ficar cantando coisa conhecida. Mesmo antes, no início da carreira, eu cantava coisas muito lado B. Terminei o serviço social em 2005 e comecei a trabalhar, e trabalhei no Programa Delegacia Legal. Fui demitida, obviamente, por incompetência e indisciplina (risos). Eu chegava mais tarde, saía mais cedo, porque eu queria cantar! Eu estava me detonando, entendeu? Inconscientemente.

Você estava sabotando o que você não queria, na verdade. Passarinho não combina com prisão.

Aí eu lembro que tinha muitos problemas em casa, de alcoolismo, coisas assim que a gente vive. Meu pai tinha esse problema, e isso me desestruturava muito. Muitas vezes eu passava noites em claro, por problemas que aconteciam em casa. Eu morava em Jacarepaguá, a delegacia era em Copacabana, eu levava três horas para chegar. Era um negócio que não tinha como conciliar aquilo ali, com plantão de 12 horas, trabalhando das 20h às 8h, não tinha como. Mas algumas coisas acontecem, a gente cruza com pessoas bem interessantes nesses caminhos.

Na época, eu estava tentando tocar em casas de samba, como o Carioca da Gema e o Sacrilégio. E eu fiz um CD demo para levar para esses lugares. Nunca consegui. E eu mostrei o CD para uma estagiária que trabalha lá na 10º DP, no Catete. Ela pegou o CD, fez cópia sem eu saber e distribuiu para todos os delegados, inclusive o Fernando Veloso, que era o delegado titular de lá. E um dia ele chegou, deu bom dia, subiu para a sala dele e ligou para o meu balcão, pediu para eu subir para falar com ele. Achei que eu tinha feito alguma besteira. Mas ele me disse: “O que você está fazendo aqui?” Eu nem sabia que ele tinha escutado o disco. E ele seguiu: “Pelo amor de Deus, vai embora daqui agora, vai embora desse lugar. Esse lugar vai matar você, não tem nada a ver com você! Você é uma grande cantora, não pode detruir sua carreira. Sai daqui enquanto é tempo”. Chorei pra caraca, né? Aí fui toda animada pra casa, contar pros meus pais, achei que ia sensibilizar eles. Mas eles logo disseram: “Ele vai pagar tuas contas?” (risos). Foi isso. Mas fui detonando a parada, fui demitida.

E junto com isso eu estava na Escola Portátil, fazendo aula de canto. Quando comecei não tinha canto, então tocava violão com o Maurício Carrilho, Luiz Flávio Alcofra e Paulo Aragão. Mas depois a Amelia Rabello começou a dar aula de canto. Ela foi outra grande incentivadora. Uma das maiores referências para mim. E ela começou a dizer que eu precisava gravar um disco. Mas eu não sabia como, não tinha dinheiro para isso. Só que ela e o Rogério Caetano, que é da mesma turma que eu na Escola Portátil, ficaram falando tanto nisso que decidi dar um jeito de gravar. O Rogério começou a pensar o disco comigo. E nessa época conheci o Luis Barcelos também. Isso deve ser 2006. E a gente teve a ideia de fazer um show com músicas do Pedro Amorim. E deu certo, a gente sentiu que o show foi muito impactante para as pessoas.

Vocês fizeram o show onde?

O Primeiro foi no Centro Cultural Justiça Federal. Depois a gente foi fazendo em vários lugares. A princípio fiquei em dúvida, achei complicado fazer o primeiro disco com músicas de um único compositor. Mas eu fiquei apaixonada pela música do Pedro, achava incompreensível que quase nada daquilo estivesse gravado, no máximo umas três ou quatro canções. E havia uma diversidade estilística que surpreendia as pessoas. Muita gente só conhecia o Pedro como chorão, e daí vê tantos gêneros diferentes, bolero, baião, valsa… Então, decidi concentrar todo repertório em parcerias do Pedro com o Paulo César Pinheiro.

Fizemos o disco na garra: os músicos todo tocaram de graça, tive ajuda da minha família para pagar o estúdio, e gravamos em 2007. Dois anos depois, eu conheci uma cantora de São Paulo chamada Adriana Moreira, e ela ouviu o disco e chorou muito. Ainda era inédito, então ela falou que daria um jeito do disco ser lançado, porque não podia ficar assim. Eu já nem esperava mais, havia batido nas portas de todas as gravadoras que se possa imaginar, todos os selos possíveis, todas as formas de apoio. E nada… 

O que te diziam nas gravadoras?

A maioria não dizia nada, davam gelo mesmo. Algumas respondiam. Eu ouvi coisas muito diferentes. Desde ser um trabalho tradicional demais a não ter o perfil da gravadora, essas respostas protocolares, né? Muito vagas. Mas a Adriana lançou um disco de músicas do Batatinha, e ela conhecia uma gravadora de São Paulo chamada CPC-Umes, ligado ao movimento estudantil. A gente fez um show aqui, por intermédio da Carla da Silva, chamado As Yabás, que era uma homenagem às cantoras negras brasileiras. A ideia era seguir, mas a gente acabou fazendo um só. A gente escolheu a Elizeth, Dona Ivone e Alaíde Costa. Fizemos homenagem cantando músicas delas. E foi aí que conheci, por causa da Carla, a Adriana, aqui no Rio. A Adriana levou o CD pro Marcos Vinícius, e ele, que era o diretor da gravadora, me ligou no mesmo dia e falou: “Vamos lançar esse disco?”. Eu quase caí no chão. Eu nunca me esqueci, acho que foi uma das sensações mais indescritíveis da minha vida. Fui pra São Paulo, a gente se encontrou num bar lá, na Vila Madalena, e foi muito rápido. Levou dois anos, mas também quando rolou foi muito rápido. E aí, no mesmo ano eu passei no edital do BNDES, e fiz o show de lançamento no BNDES, que lotou. Foi muito forte pra mim.

Tem fotos suas até hoje naqueles camarins.

Tem. Daquele show. Foi muito especial. Paulo César Pinheiro foi assistir. Foi um negócio tão incrível. E era assim, uma galera base, nova, amigos meus incríveis, músicos incríveis, pessoal do Sul… Luis Barcelos, Rafael Mallmith. Tinha o Leo Pereira também, de Miguel Pereira, aqui do Rio. Os outros músicos a gente foi chamando a galera da Escola Portátil, que vestiu a camisa. Foi de graça, todo mundo tocando de graça. Então, eu acho que eu era muito mais sem vergonha, tinha muita vontade de gravar há muito tempo! Hoje eu tenho muito mais vergonha do que antes. Saí pedindo para o Cristóvão Bastos, para o Marcelo Bernardes. Chegava pro cara e falava assim: “Olha, tô gravando um disco”. Aí lembro o Marcelo falando: “Tem dindim?”. “Não”. “Tudo bem, vamos nessa”. Eu não tinha um lance assim de “oi, tudo bem? eu adoro o seu trabalho”. Era totalmente direta. Eu acho que essa foi a diferença. Eu ouvi isso, na verdade. O Jayme Vignoli falou: “Eu gostei dela porque ela não ficou rodeando, ela falou olha, a situação é essa, cê pode fazer? E pronto”. Por que será que eu não faço mais as “cara de pauzisse” que eu fazia quando tinha 20 anos, quando conseguia tudo que eu queria? Agora tem que ter um projeto, um troço ali que vai dar resultado.

A tua história é cortada por uma questão, que é estar fora do núcleo onde as pessoas que produzem cultura no Rio de Janeiro estão. Você não é uma mulher da Zona Sul. Você ia para Copacabana, saindo de Jacarepaguá, e levava três horas. As pessoas na música, normalmente, têm alguma referência em casa, pai e mãe metidos com cultura, ou com gente desse meio: editor, artista, jornalista. Seu pai era músico, mas não estava no núcleo de poder da cidade. O que isso lhe deu, estar fora desse lugar e caminhar para esse lugar?. E aí, é claro, entra o lance de ser uma mulher negra.

Quando você falou do fato de eu ser mulher negra, eu já estava pensando nessa questão. Já estava passando pela minha cabeça. Não tem como falar de uma coisa e não falar de outra. Elas se atravessam. Não foi legal, não foi um processo bom. Eu tinha muitos conflitos internos, muitos problemas pessoais, familiares, e muito pouca consciência do que eu era, entendeu? Essa consciência eu ganhei mesmo, de verdade, agora. Agora. De alguns poucos anos pra cá. Eu posso dizer que a primeira sensação que eu tive, quando comecei a frequentar esses lugares, cantar na Zona Sul e conhecer músicos da Zona Sul, a primeira impressão é que tem uma gentileza quase que protocolar, porque você não faz parte. Eu senti muito isso nas relações que eu fui construindo. “Você não faz parte disso”.

Depois, teve a coisa da minha musicalidade, acho que é da minha relação muito profunda com a música, uma ligação que foi acontecendo. As pessoas que se ligaram comigo, à vera, se ligaram porque admiram muito o meu trabalho. E aí você vai sacando, filtrando de alguma maneira, e construindo muito lentamente uma certa rede. Ao mesmo tempo, coincidentemente, quando comecei a frequentar esse lugar, foi no mesmo período que estava rolando o boom do samba, na Lapa, muita gig no Carioca da Gema, Sacrilégio, Clube Democráticos. Aí eu senti aquele reconhecimento, de parte daquelas pessoas que eu estava começando a conhecer, mas ao mesmo tempo era um reconhecimento de boca. Eu não conseguia furar aquela panela. Tem uma panela, sabe?

Foi sofrido, porque você fica na dúvida, uma coisa confusa. Você não sabe se é exatamente isso, uma panela, ou se você é ruim. Tem muita coisa também: eu tinha muita dificuldade de falar. Eu tenho umas lembranças de coisas que eu sofri, experiências de racismo que eu sofri, a parada é tão forte que influencia no seu processo cognitivo. Você tenta expressar uma coisa, e a sensação de opressão é tão forte que você não consegue expressar o que quer dizer.

Você pode falar de uma experiência dessa?

Ah, na faculdade, não na de Música, na de Serviço Social, eu tinha pânico de falar em público. Só que eu tinha uma certa visão romântica do movimento estudantil. Mas ele tem muito dessa coisa, você tem que falar, ir nas pessoas. Eu me ofereci para entrar no Centro Acadêmico, comecei a viajar ali, ir para encontros de estudantes e tal, e eu não conseguia falar. Eu começava a tremer, às vezes falava merda. É como se fosse um sentimento de inferioridade.

O tempo inteiro pedindo licença.

Eu fui trabalhando isso, mas muito sozinha. É uma coisa que se entende sozinha. É muito doido, mas você vai criando um mecanismo próprio, o seu jeito de entender a lógica daquelas coisas. Vai lidando com a percepção de que existe um racismo estrutural muito presente, que é algo que muita gente não percebe, mas outras pessoas percebem mas não querem mudar. Aos poucos eu fui entendendo que o meu caminho não seria um caminho de querer estar em todos os ambientes, porque eu sabia que não teria acesso. Comecei a perceber que o lance era encontrar a minha turma. Eu ia me comunicando com os músicos que eu gostava e me identificava e tal. Essa galera foi muito importante, essas pessoas que citei, que fizeram comigo o meu primeiro disco, foram pessoas que conheci na Escola Portátil. Pouco depois, mais ou menos 2008, por aí, eu comecei a conhecer uma galera que começou a fazer gig no Bar Semente. Era o Thiago Amud, Edu Kneip. Através do Amud eu conheci o Thiago Thiago de Mello, o Renato Frazão, fui conhecendo uma galera que eu me identificava, e onde eu conseguia me comunicar de uma forma muito genuína mesmo, sem ter vergonha de ser eu mesma.

Aí eu fui tomando posse disso, dessa minha questão de empoderamento. É uma palavra meio mal utilizada, mas acho que é isso o que aconteceu, realmente uma tomada de consciência do meu trabalho, da importância dele. Fui me tranquilizando em relação a isso, entendendo que eu não ia abrir mão do que eu queria, musicalmente. Nunca quis fazer concessão. Porque tem isso, naquele período que eu falei, que comecei a trabalhar com o pessoal da Escola Portátil, muitas vezes tinha o lance de algumas sugestões, de que eu virasse uma cantora de samba. Eu queria fazer alguns trabalhos de samba, mas eu sou cantora. Quero ser reconhecida como cantora. Existem muits cantoras de nicho, de samba. Eu não queria estar nesse lugar. Não faz sentido, minha formação não é essa e nunca foi.

Se você pega o Gil, por exemplo, é muito claro que em determinado momento da carreira dele, ele reconhece a negritude, puxa para si como discurso, mas sem que isso o limitasse, o colocasse no lugar do cantor negro. O que é sempre um desafio. O Luiz Melodia, por exemplo, falava muito sobre essa cobrança de que ele,sendo negro da Estácio, virasse um cantor de samba. E ele queria escrever aquelas coisas malucas…

Total! Ele deve ter lutado muito com isso. E fazia aquelas letras completamente surreais, e a coisa de cantar rock bem pra caralho, qualquer tipo de música muito bem.

Umas coisas inclassificáveis, e era cobrado dele que ele fosse, inclusive era crítica daquela época, inclusive a crítica de esquerda, que cobrava que um cara como o Melodia fosse preto, que defendesse a música preta brasileira, que não podia ser soul. Isso é muito opressor, mas por outro lado pode haver essa consciência, tipo “ser preto não significa ter que pedir licença, mas sim ser portador de uma história”, e puxar isso pra si. Você tem essa coisa de não se limitar a um nicho, mas ter essas referências da negritude. Você puxa essa referência e não a nega, mas também não se apoia nela. Como é isso?

Eu acho muito curioso isso que você está falando. Tem uma primeira coisa muito importante. Meu pai teve uma experiência de ser chamado por uma gravadora, porque ele tinha um grupo de rock. Eles até participaram de um vinil e tal, fizeram participações em TV e rádio, depois o grupo acabou e ele manteve contato em alguns lugares. Então, ele fez uma reunião numa gravadora, e sugeriram que ele fizesse, muitos anos depois, que ele entrasse no mercado competindo com Agepê, que ele fosse o novo Agepê. Ele disse: “Vai se foder!”. Aquela grosseria característica de capricorniano do meu pai. Ele sempre falava isso muito, repetidas vezes, “vão se foder, querem me enquadrar nesse negócio”. Isso sempre ficou na minha cabeça.

É engraçado, porque eu tive um tio que era de escola de samba, pessoas da família do samba. E samba não é brincadeira, sabe? Em primeiro lugar, há em mim um respeito muito grande em relação ao samba. Eu não entendi nunca o Brigador como disco de samba. Muita gente intitula disco de samba, e não é. Apesar de ter uma formação de regional. Eu tive muito essa preocupação desde sempre, não queria ser reconhecida como cantora de samba, porque não sou. Reconheço a importância, mas não me reconheço fazendo parte daquela cultura. Seria a criação de um estereótipo para me autopromover, sabe? Seria uma mentira.

Depois do Brigador, você fez o Mundo Afora: Meada. A gênese do disco é o momento em que se encontra essa turma do Amud, não foi?

Quando eu conheci Thiago Amud em 2008, eu estava fazendo um projeto de show que chamava “Mundo Afora”, que é o nome de uma música do Vidal Assis, letra do Marcelo Noronha. Também conheci o Vidal na Escola Portátil, e ele falou pra mim: “Tem uma galera fazendo show no Semente, você tem que ver, vamos lá ver”. O Vidal que me levou lá. Aí eu conheci o Thiago e o Edu. Eles ficaram meses fazendo show lá no Semente. É um negócio que quem viu não esquece. Era só o Thiago e o Edu. Aí, depois ficou um tempão o Sérgio Krakowski. E aí depois de um tempão a Mariana Baltar viu os três e teve a ideia do Sonâmbulos.Eles ficaram alguns anos fazendo show juntos. Era muito incrível. Tinha uma coisa muito de humor, os dois juntos, sabe? “Tratamento de Choque”, aquelas músicas que eu acho que o Edu chegou a gravar. Era muito impressionante.

Aí eu conheci o Thiago e a gente foi se aproximando aos poucos, não foi uma coisa de conhecer e já ficar super-amigos. Ele diz isso, que tipo, que a ficha dele foi caindo aos poucos em relação a mim, sabe? E é engraçado porque, apesar disso, a gente foi criando uma amizade como se fosse alguma coisa que eu entendia ele como um cara que tava fazendo uma música, que era aquela música que eu estava esperando alguém fazer e não conseguia encontrar. E acho, não sei se estou sendo pretensiosa, que ele viu isso em mim também, uma voz que ele estava esperando e não conseguia encontrar. A gente foi se aproximando cada vez mais, no sentido de eu cantar as músicas dele, fazer shows com repertório dele.

O Amud começou a me convidar para shows que ele fazia com o Edu e tal. Eu cantava aquelas coisas bem do início da carreira dele: “Quando a Esquina Bifurca”, “Marcha dos Desacontecimentos”, aquelas coisas. Mas esse show Mundo Afora foi um show idealizado por mim e dirigido pelo Luis Barcelos, que era o diretor do Brigador. O primeiro show foi no Centro de Referência da Música Carioca. E eu convidei o Amud para fazer participação. Eu fui percebendo com o tempo que o que eu queria realizar era aquela minha ideia de cantar músicas de compositores de todas as regiões do Brasil. E fazer com liberdade, explorando novos formatos estilísticos. Eu senti que aquela linguagem que eu estava explorando até então não estava dando conta de como eu queria expandir a estética do meu trabalho. E a partir disso fui inserindo mais o Amud no meu trabalho. Nós fizemos muitos shows juntos. Começou com participação minha, em uma ou duas músicas, de repente já eram seis músicas, de repente eu estava fazendo junto o show inteiro.

Foi um processo muito importante para mim, porque foi me colocando numas encrencas musicais, de você pegar aquelas músicas do Amud, com um grau de complexidade, de estrutura harmônica e melódica, muito grande. E eu adoro isso! Sempre adorei. Eu gosto de desafio. Então, eu pegava e transpunha aquilo no violão, ficava transpondo as melodias. Eu fui estudando e fui me abrindo. O Amud é de uma importância muito grande na minha vida. Quando a gente foi se conhecendo, parecia que ele confiava nessa minha inquietação e me levava a desafios que foram muito importantes para meu crescimento como cantora. Ele me inseria em trabalhos como o do Fernando Vilela, Quadro, que traz arranjos mais camerísticos. Havia uma complexidade de polirritmia, então a entrada das vozes era uma coisa muito complicada para mim na época. Eu achava que não conseguiria, mas o Amud me incentivou a ir lá e fazer. Ele sempre acreditou muito no meu trabalho. É maravilhoso quando acontece um encontro assim. Além da coisa musical, tem uma irmandade. Então, quando fui pensar o segundo disco, conversei com o Luis e expliquei que queria deixar a direção na mão do Thiago.

Mas o que a motivou a fazer um disco assim, com compositores de todas as regiões do Brasil e diversas sonoridades?

Isso foi consequência de um processo que já vinha acontecendo desde o lançamento do Brigador. Porque nessa época o meu nome começou a circular mais no meio da música e eu comecei a viajar para fazer shows pelo país. Eu viajava no esquema mochilão doideira. Pagava minha passagem, levantava dinheiro fazendo show, e assim ia rodando e conhecendo muita gente Brasil afora. E sempre me chamou muita atenção como os artistas que eu mais gostava de conhecer não tinham ainda discos gravados, seja por falta de grana ou estrutura. E foi a partir disso que eu comecei a pensar no projeto do disco. A ideia era trazer composições de autores como o Floriano, do Belém do Pará, do Fabricio da Rocha, que é cearense, do Tarcísio Santos, que é baiano. Compositores incríveis que não tinham ainda o reconhecimento merecido. Era muita gente boa que eu tinha conhecido na época, então teve um processo muito vivo, muito difícil, de escolher os compositores que efetivamente participariam do disco. Mas era essa a ideia, mostrar o trabalho desses autores que eu estava descobrindo na época, que eram maravilhosos e ainda pouco conhecidos.

Querer fazer um disco desse tipo revela a fé em algumas coisas. Desde a fé de que existe uma coisa chamada Brasil até a fé de que gravar um disco pode de alguma forma significar, tanto para compositores e músicos, como para o público…

Sim. Quando eu comecei o projeto, eu tinha uma ideia meio sonhadora, fantasiosa, de que aquele disco conseguiria ser difundido. E que assim aqueles trabalhos teriam uma acessabilidade maior. Eu tinha uma visão meio ingênua das coisas, depois eu fui entendendo que não. Mas ao mesmo tempo eu acredito na força desses encontros. Me parece que eu estou semmpre em busca de encontros. E que meu trabalho não faz muito sentido se não tiver essa ideia mais coesa, conceitual. Eu ainda sou muito ligada no trabalho dos artistas que eu ouvi durante a minha formação, e que realizavam vinis com conceitos, faziam shows com uma direção clara, traziam um projeto junto com o trabalho.

E aqui volta a figura da Elis como influência, por essa abertura que ela tinha de gravar os compositores novos e assim ampliar o alcance deles. O que é uma forma de pensar o intérprete. Essa coisa de ser a pessoa que vai dar voz a uma geração de compositores…

O que sinto é que, no meu caso, essa coisa saiu do lugar de acreditar que o meu trabalho vai conseguir promover a visibilidade dessas pessoas e foi pro entendimento da força desses encontros. Porque eu percebo cada vez mais como alguns compositores batem em mim, a música deles reverbera e eu consigo chegar num lugar na minha interpretação que o próprio compositor não chega. Como se revelasse outra camada, que nem ele sabia na hora da composição. E isso também vai ampliando o meu entendimento sobre música. Eu acabo acreditando muito mais nesses encontros que acontecem nas vias mais improváveis.

Por exemplo, a última vez em que eu viajei para João Pessoa, eu fui num terreiro de umbanda e conheci uma galera que acabou conhecendo o meu trabalho. De uma maneira que foi a mais improvável possível. E às vezes acontecem encontros que não são registrados, mas que têm uma importância, que é muito mais sólida. Não existe uma preocupação autopromocional, digamos assim. Apesar de eu achar que é importante se promover. O artista precisa muito da comunicação, ele precisa do público, dessa sensação, do calor. Mas algumas vezes parece que o trabalho foi ganhando um outro lugar. A minha intenção com o trabalho foi ganhando um outro lugar. Eu acho que eu comunico de uma maneira menos ambiciosa hoje.

Aproveitando esse gancho do que você falou aqui,

às vezes o compositor reverbera em você, e você

se apropria daquela composição e faz aquilo ter

uma dimensão ainda maior, eu queria que você

falasse do Manduka.

Eu conheci o trabalho do Manduka na Rádio Chama, no programa de rádio que o Coletivo Chama tinha na rádio Roquette Pinto. Isso foi em 2013. Eu ouvi “Viagem de Barco” no programa e comecei a chorar. Tive uma crise de choro. Fui procurar saber quem era aquele compositor, quem era aquele cara, e falei com o Thiago Amud. Ele falou que era irmão do Thiago Thiago de Mello. Daí, procurei o Tiagão e disse que queria conhecer mais coisas do Manduka e ele gravou sete discos para mim, que eram fitas cassete que o Manduka gravava e a família digitalizou. Eu achei que o Manduka era um cara da nossa geração, mas daí o Tiagão me explicou que ele era mais velho e já tinha falecido.

Quanto Tiagão me deu os discos, ele disse que achava que eu gostar de tudo, mas que haviam dois que eram ouro. Eram duas fitas chamadas O Desmantelo, com mais ou menos 12 músicas cada uma. E realmente eu ouvi e amei, e o disco foi muito baseado nelas. Mas eu acabei colocando músicas de outros lugares, como a própria “Viagem de Barco”, que estava na última fita que ele gravou no ano que morreu e se chamava O BA BA. Mas é uma música composta nos anos 1980. “Caça de Canções” e “Bala de Vento” ele compôs nessa mesma época, no México, com um poeta de lá, o Eduardo Langagne. E depois fez versão para português dessas músicas, que eu encontrei numa das fitas. De todas as canções que eu selecionei, só uma havia sido gravada antes, “Com os Pés no Futuro”, que o próprio Manduka lançou no seu disco Terceira Asa. O resto todo era inédito.

Eu comecei a pensar o disco e percebi que seria um desafio, porque havia o risco de os músicos quererem simplificar o trabalho, e eu queria fazer o mais fiel possível do que o Manduka fazia. Aí falei com o Tiagão, e ele sugeriu o Diogo Sili, que tocava com a banda dele, Escambo, e já conhecia um pouco do trabalho do Manduka. E foi perfeito: o Diogo mergulhou total no projeto, fez a transcrição de todos os violões e a transposição para o meu tom. Um trabalho do cão. E ele fez com muito respeito ao original do Manduka e também com as músicas que eu escolhia. Não é fácil, porque tem uma riqueza no violão do Manduka, que é muito elaborado. Ao mesmo tempo que ele tem construções imagéticas muito simples, mas muito inteligentes. Tem uma bagagem poética no Manduka que me atrai muito, ele não é reducionista, panfletário. Tem um aprofundamento filosófico, existencial. É uma coisa que parece que não tem tempo. Não é datada. E isso me fascina. A minha descoberta do Manduka foi realmente um encontro de almas.

A sua obra está sempre, de alguma forma, tratando de questões contemporâneas. Isso fica muito claro quando você grava “Ladra do Lugar de Fala”, do Thiago Amud. Queria que você falasse, a partir disso, de como fica essa questão do identitarismo, o lugar onde a discussão está hoje. Como é para você ser uma mulher negra cantando um compositor branco?

O Thiago Amud fez essa canção a partir de conversas muito pessoais que nós tivemos. Ela veio de um questionamento, que passa por aquilo que falamos sobre o meu pai, de quererem colocar ele como cantor de samba, esse tipo de rótulo. Eu e o Amud, a gente conversava muito sobre coisas que eu já ouvi, como por exemplo uma vez em que estava participando de um evento de audição do Mundo Afora: Meada e uma mulher negra chegou para mim, e era a única mulher negra do evento, era de Realengo, porque dava pra ver que a galera que estava fazendo a mediação eram pessoas mais da Zona Sul, e ele falou: “Eu não pude fazer perguntas porque eu cheguei muito tarde, mas eu ouvi o seu disco, e eu não queria deixar de falar, você vai me desculpar, mas eu achei o disco chato! É um disco de branco. Mas agora, ouvindo você falar, eu entendi a sua inspiração”.

Ela tinha chegado no evento num momento onde era uma gravação, então ela não podia interromper. Mas ela disse que tinha finalmente entendido o que havia me instigado a fazer aquele disco. Eu  reconheço a importância histórica do momento que a gente está vivendo. O negro há muito tempo está falando, reinvidicando, buscando se organizar politicamente, produzir intelectualmente e culturalmente também. Mas parece que só agora está começando a dar indício de uma visibilidade e uma representatividade a partir disso. E isso é muito maravlihoso. Mas também pode ser uma armadilha. Então eu conversava muito com o Thiago sobre essa questão.

Teve uma vez, no show de lançamento do Mundo Afora: Meada, que uma assessora de imprensa falou com a produtora que era responsável pelo lugar que me apresentei, sobre a minha vontade de fazer um show lá. E a produtora viu só a minha imagem, nem ouviu o disco, e disse que seria interessante fazer uma noite minha junto com a Marina Íris, só porque somos as duas negras. Olha só o que é o racismo estrutural! Eu amo Marina Íris, mas não é para quererem colocar a gente numa caixinha. Isso é uma armadilha! Eu não quero ser reconhecida como cantora negra. É importante demais essa visibilidade que a gente está tendo, várias cantoras negras maravilhosas ganhando espaço, mas não é por isso que vou deixar que me coloquem numa caixinha.

Então, eu acho que essa música do Amud diz muito sobre isso. A gente sabe qual é o nosso lugar e não vai ser alguém que vai me dizer o que eu sou, o que eu devo fazer, como e com quem devo me apresentar. Nós sabemos do nosso lugar, nós sabemos o caminho que queremos trilhar. Qual é o conceito que queremos construir com o nosso trabalho. Então é confuso, porque é tudo confuso. A gente ainda está engatinhando nessa história de uma luta antirracista mesmo.

Sim, há muitas camadas, muitas frentes.

Difícil falar, né? Tem algumas discussões que estão se abrindo agora para um aprofundamento bem interessante, nesse contexto que a gente tá vivendo, como por exemplo a questão da apropriação cultural. Obviamente que tem posicionamentos que são reducionistas, é normal. Mas estamos ganhando voz agora, então é importante que as coisas sejam faladas e discutidas. É um momento de discussão. É muito importante a gente pensar nisso. Por exemplo, essa questão do lugar de fala, é um lance que as pessoas confundem. Muita gente reduz isso a uma ideia de que o branco não pode falar sobre preto, ou não pode falar sobre racismo, ou não pode se posicionar sobre isso. Mas a questão toda é o lugar de fala. Você pode falar, mas você fala de que lugar? E aí parece que as pessoas não querem enxergar como a representatividade sempre foi branca. Sempre foi, cara!

Quando eu falo, por exemplo, dos lugares que eu quis tocar, quando comecei a cantar, e que eu tentava entrar nos lugares e participar de uma determinada programação como uma atração fixa do lugar e não conseguia, passa por várias questões. Por exemplo, de haver majoritariamente brancos fazendo samba. E quando tinha preto, era aquele preto fazendo a música que acham que o preto tem que fazer, do jeito que acham que o preto tem que se posicionar. É uma coisa muito complicada.

Então, essa música o Thiago fez externando confissões minhas, que ele ouviu nas nossas conversas. Por exemplo, não é que eu veja um problema de ver uma pessoa branca cantando funk e rebolando a bunda, mas em primeiro lugar você precisa ter essa consciência de que você não está fazendo nenhum grande ato benéfico. Você não está representando a cultura dos pretos favelados, não está sendo muito nobre. Você não vai estar naquele lugar. Você tem que entender que o lugar de fala é outro. Se você entende isso, beleza. Mas eu acho que existe uma tendência a ser reproduzido no meio artístico um discurso muito identitário, que eu acho que aparece esvaziado. As pessoas não têm ideia do que é ser um artista do funk, ser uma pessoa ali daquele meio, que construiu aquilo ali, criou aquilo ali, e que nunca vai ter a visibilidade que você tem fazendo aquilo.

Então isso é uma coisa que eu sempre questionei. Eu poderia super pegar carona numa porrada de coisas, sou preta! Mas, em primeiro lugar, eu quero fazer algo com que me identifique. Eu não tenho vontade de fazer um trabalho de funk, por exemplo. Segundo, que eu não sou isso. Eu não tenho que ser isso só porque eu sou negra. Então, entende como a coisa é confusa? É tudo muito confuso. O Thiago fez uma provocação nessa música, de dizer   “fui psicografada por um branco um pouco pancada, que rouba o meu lugar de fala e me revela inteira”. É uma coisa ambígua e provocativa, sarcástica. A gente precisa falar as coisas de uma forma mais direta agora, mais clara. Tá na hora de a gente romper com a hipocrisia. Essa música pra mim foi um marco nesse sentido, contra uma tendência de um silenciamento das coisas que eu falei lá atrás, uma tendência de me retrair, de me guardar, de não falar.

Eu gostaria que você comentasse o fato de um canal ter se recusado a exibir o clipe, chegou a sair numa nota na Folha de S. Paulo essa história. Como você viu isso dentro do que a gente tá vivendo hoje?

É um período de autoritarismo. Não sei se vocês estão sabendo, mas estão acontecendo vários ataques a páginas de pessoas negras. E é uma coisa muito horrível, muito preocupante. E a gente vê o nível do incômodo em relação a isso que eu estou dizendo. Parece que a visibilidade do negro precisa acontecer dentro dos conformes que as pessoas que estão no poder estipulam. De repente você vê pessoas com um altíssimo nível intelectual, uma capacidade de discussão e de embate, com muito embasamento, como é o caso do Sílvio Almeida, que teve a página hackeada. E está acontecendo uma série de ações contra essas pessoas.

Esse episódio do clipe teve a ver com uma questão política, mas que não se resume a isso. É uma ideologia racista que precisa ser combatida. Foi uma coisa horrível, mas foi importante acontecer, de uma certa forma, porque assim cai o véu desse horror todo que a gente tá vivendo. Mas eu sinceramente não vejo o que aconteceu, sei lá, de uma forma romântica. Não tenho otimismo sobre as coisas. Eu acho que a gente tá muito longe de conseguir enfrentar todas essas questões. Parece que a gente vive a barbárie e não quer reconhecer isso.

O que aconteceu agora, por exemplo, dentro de um contexto de pandemia, o caso do George Floyd, foi gravíssimo. A importância dos EUA no mundo. Então não foi um caso qualquer. Não é por essa relação que a gente tem meio de submissão em relação aos EUA que a gente vai tornar o caso como simplesmente “ah, porque acontece lá as pessoas respondem aqui”. Eu acho que essa resposta tem que acontecer, é importante que a gente reconheça isso, e se solidarize com esse horror que aconteceu lá. Mas é muito sintomático que a gente tenha até hoje casos e mais casos de pessoas sendo assassinadas, negros sendo assassinados, e que a gente naturalize isso.

“Ladra do Lugar de Fala” é uma música ousada, é uma música fora da caixinha. Não é uma música que romantiza a questão do racismo, é sarcástica, é provocadora. Ela deu agulhadas bem diretas sobre pessoas vinculadas ao governo que está posto e que está promovendo toda essa política autoritária. Obviamente o veto tem a ver com isso, mas também tem a ver com uma política racista, que parece que está ganhando força agora. Sempre existiu, mas parece que agora, como os movimentos estão ganhando força, está tendo que haver da parte deles uma reação maior.

Quando você fala da música, me faz pensar em “A Voz do Morto”, do Caetano, que ele diz que  é praticamente uma transcrição do que Aracy falava com ele sobre o samba: “porra, esses caras querem me salvar, esses filhos da puta querem me salvar. Salva a mãe deles, ninguém me salva!”. “Ladra do Lugar de Fala” e “A Voz do Morto” tem uma figura que tem o discurso com autoridade do “lugar de fala” e outra que traduz isso. Ambas têm a coisa de serem amantes da causa e críticas de certas maneiras de amar a causa. Elas dão muitos nós na questão, refletem olhares muito complexos…

O Thiago certamente deve ter pensado nisso também.

Como surgiu a proposta do Dama de Espadas, de um disco de canções autorais suas?

Eu tenho essa tendência de gostar de instigar, de ser uma provocadora, mas não de uma forma tão óbvia. O Dama de Espadas foi engraçado, porque não foi idealizado, pensado como os discos anteriores. O Dama de Espadas foi acontecendo, através de um processo pessoal de empoderamento. Eu estou usando essa palavra com um pouco mais de coragem, porque eu acho que quem vai ler é inteligente e vai entender o motivo de usá-la. Eu comecei a me sentir mais segura com a minha forma de compor, que sempre foi muito mais ligada ao som, à harmonia. Eu sempre acabei me baseando nas estruturas harmônicas dos meus ídolos. As harmonias do Toninho Horta, do Nelson Ângelo, da Sueli Costa. E sempre tive uma autocrítica muito grande, de achar que não conseguiria escrever letras. Eu achava que nunca ia compor!

Mas eu comecei a sentir necessidade de falar, comecei a sentir que os compositores não estavam chegando naquele lugar que eu queria chegar. Nas minhas primeiras músicas, eu entregava para os compositores que eu gostava colocarem letra. Sem passar nenhum tipo de direção, sem dizer sobre o que eu queria falar. Porque eu não tinha ainda me convencido que seria capaz de fazer as próprias letras. Mas com o tempo eu comecei a escrever as letras também. Por necessidade de me expressar.

O Dama de Espadas está muito nesse lugar, porque eu fui convidada pela Deh Mussulini para participar do Sonora, que é o Ciclo Internacional de Compositoras. Deh é uma compositora lá de Belo Horizonte. E eu lembro que falei pra ela que só tinha seis músicas. E ela respondeu que, se eu tinha seis músicas, logo eu era uma compositora. Eu comecei a participar de um projeto de compositoras mulheres, depois eu encabecei a curadoria e a produção do Sonora aqui no Rio, depois criei o coletivo Essa Mulher. Fui criando projetos para que a gente conseguisse juntar compositoras. A coisa foi ganhando uma proporção muito grande, e eu também fui tomando consciência que eu era uma compositora e que gostava disso, achava um trabalho relevante.

Quando fiz a curadoria da segunda edição do Sonora, em 2016, eu dividi um show com a Clarissa Assad, que estava no Brasil na época. Eu convidei e ela topou. Daí, no ano seguinte, eu decidi que queria fazer um show com banda. Eu tinha conhecido o Vovô Bebê e comentei com ele. E ele topou me acompanhar e chamou dois amigos, o Guilherme Lírio e o Uirá Bueno, para tocar junto. Eu expliquei que não tinha cachê nem dinheiro para os ensaios em estúdio, mas ele foi muito generoso e disse que não era problema e que poderíamos ensaiar no estúdio dele. E daí eu comecei a pensar como fazer, já que as minhas músicas eram no formato de canção, mais suaves, mais delicadas, e agora estávamos propondo um power trio. Era outra sonoridade. Comecei a elaborar isso e decidi que seria legal fazer um negócio bem rock mesmo. Então, depois do primeiro show, a gente chamou o Elísio Freitas para tocar uma segunda guitarra. 

Começamos a fazer uma série de shows, e o Sylvio Fraga, que havia aberto a gravadora Rocinante, viu um trecho de um desses shows na rede e me convidou para fazer um disco com esse repertório. De primeira, eu não acreditei. Mas daí eu percebi que as coisas estavam tomando corpo. Tinha uma força maior, que eu mesmo não tinha consciência. Então, eu decidi que, se faria um disco como compositora, não podia ser um disco em que eu não falasse de coisas que me atravessam. E comecei a buscar isso, compor outras músicas que eu acreditava que traduziam ainda mais de mim, nas quais eu falasse sobre a questão étnico-racial, a questão do negro, de uma maneira mais condizente com a forma que eu penso.

Eu fui incluindo algumas músicas no show, como a “Ladra de Lugar de Fala”, a “Caravanas”, do Chico Buarque. Depois, fiz uma música chamada “Eu Não Sou Seu Negro”, que é instrumental, mas que eu fiz imediatamente depois que vi o filme, arrebatada pelo filme do Raoul Peck. E na véspera do show que eu ia apresentar a música, eu tive a ideia de ler um texto onde o James Baldwin faz um enfrentamento sobre essa coisa de “por que essa discussão de racismo, de negros e brancos, e não de humanidade”? Uma coisa que até hoje a gente ouve a rodo aqui no Brasil. Eu nunca esqueci daquela fala. Aí peguei o filme, transcrevi a legenda e de um dia para o outro li o texto no show. Na primeira vez em que li ao vivo, a reação das pessoas foi de silêncio absoluto. Eu terminei e ninguém aplaudiu, ninguém falou nada. Eu fiquei com aquela sensação de não ter agradado. Depois, as pessoas foram respondendo, dizendo que ficaram muito incomodadas, que não souberam lidar com aquilo. E eu achei isso ótimo. Mas comecei a pensar melhor e depois comecei a me preocupar também com a questão de que não quero reproduzir essa ideia de que a gente tem que enfrentar aqui no Brasil esse tema com o mesmo formato dos norte-americanos. O nosso contexto histórico é outro, o nosso processo é outro. É outra coisa.

E como você resolveu isso ali?

Pensei em colocar outra música junto com aquela, que é instrumental, e que fala sobre a segregação racial nos Estados Unidos. Uma música que falasse da segregação racial aqui. Pensei no Ilê Aiyê, pensei na “Milagres”, do Caetano Veloso. Eu não conhecia essa música direito, então fui procurar na internet e apareceu “Ilê de Luz”. Me chamou a atenção, por ser meu nome. Aí a música caiu na minha mão! Eu não procurei essa música. Mas me deu um insight, Caetano cantando “me diz que eu sou ridículo”. Percebi que era a música que eu precisava. Porque é essa a nossa forma de enfrentar, a nossa forma de produzir uma estética do orgulho negro é outra! A gente tem essa coisa colorida, viva, alegre, sabe? Mais percussiva, né?

O show, e depois o disco, foi um trabalho muito doido nesse sentido de que as coisas foram acontecendo. Ele não foi todo pensado e depois realizado. Ele foi acontecendo até chegar num formato que eu considero que está bem enxutinho. A gente fez muito show, gravamos o discos em setembro de 2019, no estúdio da Rocinante. Foi demais! A gente gravou ao vivo. Ele será lançado este ano ainda.

Então você está lançando dois discos no mesmo ano?

No mesmo ano! Muito doido. O Manduka foi em janeiro e o Dama de Espadas agora no segundo semestre. Aí, eu fiquei realmente pensando muito nisso, acho que o Manduka tem uma força pra mim na coisa da cantora. Em como eu me revelo de uma maneira. Foi o show que eu mais chorei cantando. O Dama eu acho que tem um lance de uma tomada de posse. Do que eu sou, de como eu penso, de como eu me coloco. Como me expresso no mundo. Tem uma força muito grande. No show eu tocava também, então tinha uma força muito grande, dessa coisa de ser uma banda de homens brancos e tal, e aquela mulher ali, preta, tocando violão, cantando. Meio que band leader ali, sabe? Tomou um outro lugar também, porque acho que eu tô mais plena mesmo. Mais inteira, mais confiante, mais madura.

É uma apropriação, né?

E eu entendo como a coisa acontece no momento que tem que acontecer. Isso não aconteceria num outro momento. Eu não teria maturidade, eu não teria esse olhar em um outro momento. Obviamente que eu penso às vezes, eu não sou muito de pensar nessas coisas, de ficar me lamentando, mas eu acho uma coisa estranha eu ficar dez anos sem gravar. É estranho. Porque foram mais de dez anos. Eu gravei em 2007! Apesar de ter lançado em 2009. E aí eu levei dez anos para gravar um outro disco. Gravei o Mundo Afora em 2017. E aí, agora, eu acho muito curioso quando as pessoas falam assim: “como que você dá conta de tanta coisa ao mesmo tempo?”.

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