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Entrevista: Kiko Dinucci

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Entrevista realizada por Sergio Cohn, Caco Pontes e Leonardo Lichote e originalmente publicada no Cadernos de Música – Kiko Dinucci (Revistas de Cultura, 2020)

Primeira parte – abril de 2013

Kiko, vamos falar um pouco da sua relação com São Paulo. Você nasceu onde?

Eu nasci no Hospital São Camilo, na Avenida Pompeia. Minha família na época morava no Cachambi, na Zona Oeste, lá perto da USP. Mas quando eu tinha seis meses de idade eles se mudaram para Guarulhos. Estava rolando um comercial de um conjunto habitacional em Guarulhos, minha família foi ver e comprou uma casa, à prestação. Comprou em 1977 e acabou de pagar já nos anos 2000. Era um projeto chamado “Caixa Estadual de Casas para o Povo”, CECAP. Um projeto habitacional feito na época do governo Maluf e encabeçado por dois arquitetos bem modernistas e de uma linhagem de esquerda, o Vila Nova Artigas e o Paulo Mendes da Rocha. Era estranho o Paulo Maluf, governador na época, financiando um projeto assim. Mas foi um marco. Talvez até hoje seja o melhor projeto de conjunto habitacional já feito no Brasil. Tem uma preocupação estética. Eu tive sorte de crescer ali. Parecia que estava em um pedaço de Brasília. Eu vivi lá até pouco tempo atrás.

Como era a sua relação com as pessoas de lá? Existia uma comunidade CECAP?

Existia. O bairro era recém-inaugurado, né? O terreno anteriormente era um sítio, ou uma fazenda, então ainda era uma área meio rural. Eram uns prédios modernistas em cima do barro. Então tinha muito boi, as pessoas achavam cobra dentro do apartamento. As boiadas passavam embaixo do prédio. Tinha um rio que ainda era limpo. A gente pescava, nadava, as pessoas tomavam sol em volta do mato, dos prédios. Sempre foi muito populoso, uma média de 20 mil moradores, levando em consideração que cada apartamento tinha normalmente um casal e dois filhos. E eu acompanhei a realização das calçadas, a finalização do projeto. O conjunto já tinha uma infraestrutura talvez até luxuosa em termos de Guarulhos, com água e esgoto. Mas o bairro não existia, era só rua de terra. Então você ficava meio isolado do mundo. Só depois da construção do aeroporto, já quase na metade dos anos 1980, é que construíram uma rodovia lá na região e tudo começou a crescer vertiginosamente. Subiram grandes prédios, os conjuntos tem grade hoje, portaria, guarita. E eu fui acompanhando toda essa transformação. Hoje você passa lá no bairro CECAP e é um espaço muito bom, arborizado. A arquitetura ajuda muito. O bairro é bonito. Mas sempre foi um bairro popular, de operários, que conseguiam financiar atráves da Caixa o seu apartamento.

E a cultura? Vocês tinham acesso a eventos culturais, shows, naquela região?

Quando foi construído, o CECAP tinha no projeto de ter cinema, teatro, até um estádio de futebol lá dentro. Como foi um projeto muito caro e que acabou ficando pela metade, tudo o que era cultural foi deixado de lado, como se fosse um luxo desnecessário. Só o que existia era o centro comunitário, que é um ginásio que hoje é o clube do bairro. É um ginásio que tem piscina, tem quadras, uma estrutura mínima. E no salão do centro comunitário sempre teve baile, teve show. Por exemplo, o Luiz Gonzaga foi lá tocar no final dos anos 1970. O Alceu Valença também. Nos anos 1980 todos os bregas que você pode imaginar, toda a turma do Clube do Bolinha, do Barros de Alencar e do Chacrinha tocaram lá. Teve um show do 365 que foi uma das maiores pancadarias que eu vi na vida. Veio punk de tudo quanto é lugar de São Paulo. Um cara do meu bairro foi esfaqueado. Eu vi show dos Paralamas, vi show dos Racionais, vi show do Jorge Ben. Sempre teve muitos shows lá, muitos eventos, comícios. Na frente desse centro comunitário tinha a área do Varejão, da feira, que era enorme. E nessa área sempre tinha show de pagode. Eu tenho trauma do pagode comercial dos anos 1990 por causa disso. Toda semana eles estavam lá: Negritude Junior, Katinguelê. Eu não posso nem ouvir falar nesses grupos, me dá trauma dessa época, de tanto que eu fui obrigado a ouvir. Eu era roqueiro e roqueiro detestava tudo isso. Eu era meio revoltado e fui obrigado a ouvir todos esses pagodes. Eu sei cantar todos eles, mesmo não gostando…

Como você começou a fazer músicas?

Eu tinha alguns vizinhos que tocavam. Tinha uma dupla de pai e filho, o Luciano e o Lucianinho, que tocavam violão, Beatles, Rolling Stones. Tinha um cara que já faleceu chamado Cazuza, que tocava guitarra e tinha uma banda chamada Rock Local. Aí eu ficava vendo esses caras tocando, ficava de olho. Tinha um violão lá em casa e eu ficava tentando imitar. Às vezes eles me passavam um acorde ou outro, eu tocava uma música. Foi uma época em que todo mundo comprou violão, fazia aula, tocava. Eu nunca fiz aula, mas sempre ficava tentando tirar algum som. Mas não levava a sério nessa época. Só fui pegar o violão de novo, porque ele ficou jogado em casa, todo arrebentado, em 1989 ou 1990. Foi quando comecei a ouvir rock pesado e comecei a querer tirar as músicas. Aí eu peguei o violão, enrolei um monte de band-aid, segurei as emendas dele e tocava. Ele fazia uma alavanca quando você apertava o braço, alterava a afinação, então ele já tinha um trêmulo natural [risos]. Comecei a tirar de ouvido as músicas. Depois eu descobri que tinha inventado uma afinação. As pessoas chegavam e falavam que estava errado, que não era assim que se afinava. Daí se percebe como o ensino estraga a gente. Eu fico pensando que se até hoje eu tivesse tocando sem ter conhecido a afinação convencional da guitarra e do violão, eu teria achado uma música muito mais original. Mas eu fui lá e aprendi a afinação convencional…

… Desaprendeu a sua.

Até hoje eu fico tentando inventar outras afinações. Estou tentando retomar essa ideia, cada vez mais. Quando eu mudo uma afinação é justamente para começar do zero mesmo. Você muda a afinação e não sabe tocar mais, precisa aprender novamente. Às vezes eu mudo a afinação na hora do show. De vez em quando, eu faço shows de improviso livre. E normalmente eu faço isso: eu invento uma afinação um minuto antes do show e entro no palco sem ter a mínima noção do que é aquilo. Começo a tocar totalmente no escuro. Tem que ser 100% ouvido, não dá para entrar nenhum raciocínio, nada racional. Nem mesmo visual. Não dá para ter uma visão da escala, do desenho do instrumento. E de repente eu bato um acorde e penso: “Isso aqui está bonito, vou criar em cima disso”. E a partir disso tento retornar essa ideia da pessoa que não sabe nada de música, não foi contaminada pela história da música ou pela didática da música. Porque essa didática estraga muito a gente. A escola estraga, em todos os sentidos. Se eu fosse presidente, eu ia acabar com a escola…

E colocava o que no lugar?

Deixaria que as pessoas ensinassem seus filhos em casa, com os valores que cada um tem. Se eu pudesse eu ensinava meu filho. Tirava ele da escola, e a gente ia pegar os livros por aqui, ia pegar os gibis do Laerte e ler. “A aula de hoje será o gibi do Laerte!”. Eu tenho conflito com isso, com os modelos, os métodos de ensino. Sempre tive problema com a escola, nunca me adequei não. Tanto que nem fiz curso superior. Antes de prestar vestibular eu cheguei a ir um semestre lá na USP, como ouvinte, para ver se era isso, cinema, o que eu queria fazer mesmo. Aí em duas semanas que eu estava lá eu já sabia que não queria nem o curso de cinema nem a ECA e nem a USP. Queria distância. 

A sua ideia era fazer cinema?

Sim, eu pensava em cursar cinema na ECA. Eu só penso em cinema. Tudo o que eu faço é em função do cinema.

Arte gráfica, música, tudo?

Arte gráfica, música… Quando eu escrevo, tudo tem a ver com o visual, com a imagem. Tudo o que eu gosto, música, linguagem, artes visuais, teatro, está no cinema. Eu sempre penso com a cabeça de cinema. Desde criança eu gosto de cinema e sempre que eu desenvolvi alguma ferramenta artística é com base na imagem em movimento. Então quando eu pensei em estudar algo, o desejo foi logo cinema. Mas daí eu entrei no curso e vi um monte de playboy que não tinha a mínima noção do que ia fazer ali. Pessoas que já estavam entrando no curso de cinema para fazer publicidade. E aquele sistema da USP totalmente elitista. E decidi que não ia ficar um ano fazendo cursinho e vestibular para entrar naquele lugar e passar raiva. Daí decidi que ia aprender cinema fazendo. Tanto que eu fiz um filme e foi tudo na raça. Fazendo merda, fotografando errado, perdendo dia de filmagem porque esqueceu de ligar o gravador na hora de filmar. Mas é isso que eu estava falando sobre outros métodos de ensino. A experiência que eu tive em meio ano fazendo filme de Exu supera cinco anos de muitos cursos de cinema, de ficar lá parado ouvindo professor falar e não fazendo nada.

Você se lembra como começou o interesse por cinema?

Lá em Guarulhos existiam dois cinemas, o Cine Star, que eu até fiz uma música com esse nome depois, e outro, que ainda em meados dos anos 1980 fechou e virou um salão de festas, ou algo do tipo. E tinha o Cine São Geraldo na Penha, um bairro da Zona Leste perto de Guarulhos. A gente ia muito para a Penha. Era o máximo que constumávamos ir em São Paulo. Para os outros lugares era uma vezes por ano. Meu pai pegava um domingão e levava a gente para o Grupo Sérgio, que era uma rede de restaurantes populares, para comer. O programa mais proletário da face da Terra. E eu já tinha ido ao cinema algumas vezes, achei legal, mas era uma coisa que rolava uma vez por ano, no meu aniversário. Era esse o jeito que eu gostava de comemorar meu aniversário: ver um filme de tarde, talvez comer um lanche na saída do cinema. Nunca gostei de festa em casa. Eu sempre pedia para a minha mãe passear comigo no meu aniversário, para não ser um dia usual, para não ser rotina. Mas em 1985 meu pai se desquitou da minha mãe e veio morar na Barra Funda, em São Paulo. E eu só via meu pai de sábado ou domingo. Ele pegava eu e a minha irmã no metrô e levava a gente para passear no centro e ir para o cinema. Foi daí que eu conheci os cinemas do centro de São Paulo. Muitos estavam abertos ainda, naquela época. Alguns já entrando em decadência pelo crescimento do videocassete, mas o centro ainda tinha muitos cinemas. E o que me fez se apaixonar pelo cinema não foi o filme, foi a sala. Foi uma paixão arquitetônica pelas salas de cinema. Aquilo me despertava um imaginário sobre o filme que você não assistiu ainda. “Nossa, tem um cara enfiando uma espada no outro, como será que é a história?”. Aí que começa a nascer a ficção na minha cabeça também, comecei a imaginar essas histórias, interpretar as cenas que eu via nas fotos e cartazes. Era que nem história em quadrinhos. Você interpreta as figuras do seu modo. Era muita informação, você estava numa sala clássica de cinema do centro de São Paulo, o Cine Marabá, por exemplo, que tinha uma fachada enorme, com colunas, e nessas colunas tinha pendurado um painel imenso, que era mais ou menos de cinco metros por três, pintado à mão. Era um imigrante oriental que pintava. Ele pintava todos os cartazes daqui de São Paulo. Foram esses cartazes que me pegaram de jeito. Eu sabia que era um artista que fazia. E esses cartazes normalmente tinham luzes piscando em volta, uma tipologia própria, com cores florescentes, rosa, laranja, verde, azul. Tudo florescente. Além desses cartazes havia displays também, feitos em madeira, com cartazes feitos a mão e fotos enormes na lateral, luzes em torno do nome do filme. E, para mim o cinema era isso: a junção dessa fachada do cinema, com a bilheteria, com o cheiro de pipoca. O filme era o que menos importava. Lógico, eu gostava de entrar e assistir ao filme, aquela coisa da sala escura, só gente estranha. Todo mundo é voyeur dentro da sala de cinema, e ninguém se vê direito. A única coisa em comum é a tela. Então entrava essas aventuras também, o som do filme que ecoava naquelas salas imensas. E isso me arrebatou. Fez nascer uma paixão em mim, a ponto de eu inventar uma brincadeira em casa que era reproduzir essas salas de cinema. Atrás da minha cama, tinha lá uma placa de madeira, e eu colava cartazinhos, fazia a bilheteria, tudo em papel colado a cuspe. E pintava com lápis de cor, de cera, guache, desenhava os cartazes. Eu comprava jornal, e o caderno de cultura vinha com aqueles anúncios dos filmes, e eu pegava esses cartazes do jornal, recortava, pintava com lápis de cor, depois reproduzia um maior feito à mão.

Esse interesse nunca o levou a pensar em

fazer arquitetura?

Eu fiz curso técnico de desenho. Quando saí do segundo grau, fui estudar em uma escola técnica chamada Carlos de Campos, que também era chamada de CACA. Muita gente saiu de lá. Grafiteiros como os Gêmeos, por exemplo. Eu fui para lá fazer desenho, mas não passei no curso, então sobrou edificações e decoração. E na época eu queria sair do CECAP porque estava ficando muito perigoso, muita gente indo armada para a escola. Eu queria sair por uma questão de sobrevivência mesmo. E fui estudar no CACA. Mas eu não queria ficar desenhando planta baixa e decoração. Só que decoração tinha história da arte, tinha desenho também, então eu acabei aguentando. Depois, eu cheguei a trabalhar com arquitetos, justamente por saber desenho técnico. Eu já fui desenhista copista. Achava chato, não quero levantar um prédio ou uma casa. Um cinema talvez eu até gostaria. Então eu nunca me direcionei, nunca quis realmente fazer arquitetura. Embora eu perceba arquitetura 24 horas por dia, pense arquitetura, seja cobaia de um puta projeto arquitetônico modernista, eu não pensaria em ser arquiteto. Eu gosto de ver, pensar e viver arquitetura. Agora para criar, eu penso em outra maneira. Criar arquitetura sonora, arquitetura visual, literária, me agrada. Eu gosto de outros tipos de arquitetura. Arquitetura convencional eu prefiro deixar para quem tenha mais paixão. Minha coisa mesmo era com cinema. O filme que estou fazendo agora, o curta, é sobre isso, as salas de cinema que não existem mais aqui em São Paulo. É uma coisa que sinto muita falta, quando ando no centro e passo na frente dos cinemas que não existem mais é como se fosse um buraco no peito. Eu vi aqueles cinemas funcionando: Marrocos, Paissandu, Comodoro…   

Quando foi que você começou a sua primeira banda?

A minha primeira banda foi em 1990. Era de metal, chamada Necrophobic. Esse era o nome de uma música do Slayer. Em 1991 eu parei de tocar nela, comecei a tocar punk. Eu não era bom o bastante para saber tocar metal. Não sabia solar. Por incapacidade de tocar metal eu comecei a pirar no punk. Em três acordes você podia ser gente, né? Podia montar uma banda e tocar no colégio e você não seria mais o idiota ou o nerd da classe. Eu nunca fui o cara popular na escola. Eu era o nerd que ficava no fundão com os caras bagunceiros, mas não era bagunceiro, vivia no mundo da lua, desenhando nas carteiras, desenhando no caderno… Era uma mistura de nerd com delinquente. Quando eu comecei a ouvir rock foi meio que meu rompimento com a sociedade. Eu comecei a achar tudo insuportável, a minha família, a escola. Os cinemas já estavam falindo. Aí eu comecei a me isolar, e ficava tocando, ouvindo disco, batucando no sofá as baterias dos discos. E daí entrou o punk. O punk permitia a incapacidade de tocar direito. Era a possibilidade de qualquer nerd tocar e ser um cara um pouco mais respeitado na escola. O punk me ensinou a entender um pouco porque eu estava odiando tudo. Eu não sabia a resposta, mas o punk me ensinou que era um sistema capitalista, que nós éramos alienados, que a TV era a pior merda que podia ter acontecido. E isso salvou a minha vida, possibilitou que eu percebesse o motivo de odiar tanto as coisas. Mas eu não pensava em arte, ficava só tocando e ouvindo som. E aos poucos fui arrumando amigos que também eram assim, esquisitos, que também andavam de preto. Ser roqueiro em Guarulhos no começo dos anos 1990 era muito estranho, antes da explosão do grunge. A gente se sentia muito extraterrestre. Você andava na rua e as pessoas tacavam pedras. Talvez porque Guarulhos fosse um lugar muito provinciano naquela época.

Eu era cabeludo e vestia preto, e também jogavam pedra, ovo em mim na Avenida Santo Amaro. Acho que era coisa de São Paulo inteira naquela época.

Era isso, né? Só de você andar com uma roupa mais estranha a polícia já o parava. Com o punk, eu comecei a arrumar a minha turma. E comecei a dar esse rolê pelas bandas. Conhecendo o punk, eu comecei a pegar um pouco de raiva do metal, achar o metal coisa de playboy. O punk me levou a questionar mais. Por que eu tinha que comprar uma banda que mais vende na gravadora? Por que o Metallica era da Polygram? A mesma gravadora de todas as bostas de músicas que eu detestava. Então comecei a quebrar todos os discos, a dar eles, fazer rolo. Coisa que me arrependo até a alma hoje. Fiz rolo com discos bem piores, só porque eram mais desconhecidos, undergrounds.

Quais eram as bandas punk que você ouvia naquela época?

Uma banda que mudou muito a minha cabeça foi a Bad Brains. Eles eram uma banda de pretos rastafáris, que foram um dos inventores do hardcore americano, de tocar mais rápido, de um jeito mais agressivo. Era uma banda fora dos padrões, todos eram negros, eram rastafáris, muitas letras falavam de Jah, e de repente entrava um reggae no meio do disco. Eu lembro que passei uma semana ouvindo Bad Brains, cortei meu cabelo, dei um fim em todos os discos de metal e cheguei para a minha banda de metal e falei: “Olha, vocês são todos uns alienados, vocês ficam ouvindo banda de gravadora grande achando o máximo…”. Eu saí da banda, assumi meu jeito errado de tocar e comecei a andar com uma outra galera que tocava mal também, tinha raiva de tudo. Ninguém pegava menina. A gente queria era tocar guitarra, fazer som. Ficava o dia inteiro indo na casa dos amigos ouvir som. E daí eu toquei em trocentas bandas nesse período. Toda semana a gente montava uma banda nova. Até hoje eu sou assim…

Depois, você vai unir essas influências com a

vanguarda paulista, com o samba, com o candomblé. Como foi isso?

Isso tudo veio depois. Mas certamente as bandas que eu ouvia de hardcore, que eram todas abertas a outras influências, ajudaram a abrir a minha cabeça. Bad Brains com o reggae, Minutemen com o funk, Fugazi. Todas elas tocavam outros ritmos, e eu comecei a descobrir coisas que me interessavam também fora do punk e do hardcore. E isso foi me afastando aos poucos do pessoal que eu tocava, novamente. Eles ficavam numas de “que porra é essa, Kiko?” E eu respondia que o Jorge Ben também era sujo, do seu jeito. E ficava naquela briga de que não tinha guitarra. A última banda que eu tive com esse pessoal eu quase enlouqueci eles, porque estava surgindo o Chico Science, lançando o Da Lama ao Caos, que para mim abriu também uma janelinha, e eu percebi que também dava para fazer som de um jeito mais brasileiro. Eu não queria mais ficar cantando inglês. Porque as bandas da época, quando não eram de covers, cantavam somente em inglês. E eu estava ouvindo Jorge Ben, Chico Buarque, Paulinho da Viola, e ficava pensando por que esses caras não eram vistos como punk também. Eu ouvia “Construção” do Chico e pensava “isso é punk, não é possível”. Ouvia o Jorge Ben tocando “Cavalheiro do Cavalo Imaculado” e pensava por que isso não era punk e o The Clash era. E comecei a perceber que eu não estava mais cabendo naquele mundo do punk. Os caras reclamavam que não iriam cantar uma música em português, e no dia seguinte eu chegava com uma música em quimbundo. Uma vez eu fiz isso, peguei o dicionário de quimbundo e fiz uma letra. “Vocês não querem cantar em português, então vamos cantar em alguma língua africana”. O pessoal começou a achar que eu estava louco. E queria tocar Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti. Nelson Cavaquinho foi outro cara também que eu ouvi e falei “isso é punk. Isso é a coisa mais punk que eu já ouvi”. O cara consegue ser mais punk que uma banda inteira. Um cara fora da sociedade, que grava os discos bêbado, rouco de estar virado três dias na rua, e com aquele violão sujo, todo riscado dos dois lados. Aquela voz rasgada meio Tom Waits. Sempre me fascinou essa estética do punk. Mesmo as coisas que não eram punks eu ficava identificando. Punk não é só som, punk é um comportamento, uma postura. Mas com isso, eu comecei a me afastar demais do pessoal que tocava, e acabei parando de tocar com eles em 1994. Entre 1994 e 1997, não toquei com ninguém. E nesse período que eu fiquei sem tocar eu ouvia de tudo. Eu comprava disco de música erudita, ouvia qualquer coisa.

Mesmo sem banda, você continuou compondo nesse período?

Sim, eu fiquei só compondo em casa. Eu estava estudando no CACA, no Brás. Eu tinha um grupo de amigos que gostavam de samba, a gente emprestava discos um para o outro. E um dia eu estava no ônibus com um disco da Elizeth Cardoso, chamado Época de Ouro. Um disco tocado ao vivo. Eu passei a roleta, e um cara de uns 45 anos entrou e disse: “E esse disco, você roubou da sua mãe? O que vai fazer com esse disco?”. Eu falei que não, que era meu, eu gostava. Ele continuou tirando sarro, mas foi percebendo que eu gostava de samba, e começou a me questionar, fazer um inquérito quase policial, perguntando sobre diferentes sambistas. E eu conhecia todo mundo que ele perguntava. Ele estava sentado ao lado do cobrador, e eu comecei a conversar com ele. Ele falou que compunha, eu disse que compunha também. Ele cantou um samba dele ali do meu lado, eu cantei um meu. E então ele me disse que todo sábado acontecia um samba no Clube da CMTC, que era a empresa pública de ônibus da época, que eles chamavam de Mutirão do Samba. E falou para eu colar lá. Disse que às vezes tinha a roda de samba, outras não, porque eles jogavam bola lá, futebol de várzea, e quando acabava o jogo eles compravam carne para um churrasco e rolava o samba. Mas que seria legal se eu aparecesse. Eu fui, cheguei cedo, e não vi nada acontecendo. E decidi dar uma de sambista e ficar bebendo enquanto esperava. Quando o cara chegou, eu já estava bêbado. A roda já tinha começado do outro lado, eu nem tinha percebido. Ele me levou lá, apresentou para as pessoas. Eu não tinha levado violão, tinha ido só para conhecer. Mas pediram para eu sentar, e uma hora alguém pediu para eu cantar um samba. Eu falei para o cara do violão tocar um fá maior, daí eu cantei “se você jurar que me tem amor eu posso me regenerar”, do Ismael Silva. Todo mundo começou a cantar junto. Era uma bela roda de samba, e foi lá que eu conheci o Douglas Germano, um monte de amigos que depois eu comecei a tocar, a compor junto. Não tinha mais essa visão de banda, showbusiness, de show. Eu gostava era de me encontrar com esses caras para tocar. Eu só fui tocar de novo com banda quando fiz o Bando Afromacarrônico.

Quando foi que surgiu o Bando?

Acho que o primeiro show foi no final de 2004. Em 2005, eu comecei a tocar no bar Ó do Borogodó com eles. Para mim não era nem uma banda. Sei lá o que era. Eu tinha toda uma ligação com o samba paulista. Todo mundo tocava samba com sotaque carioca, isso não me agradava. Eu decidi ir atrás dessa coisa do samba paulista, que era obscura mesmo em São Paulo. O Bando Afromacarrônico caiu nesse exercício de tocar coisas que eram superpaulistas. As pessoas não conheciam as músicas, e ficavam pedindo para a gente tocar Cartola. E nossa resposta é que todo mundo já conhece Cartola, mas que seria legal também conhecer o Zeca da Casa Verde. Era um trabalho educacional. E eu exercia o meu lado compositor também.

Foi lá que você começou a trabalhar com

a Juçara Marçal?

Sim. A gente fez um disco, Padê, que saiu antes do disco do Bando. Foi um burburinho, teve alguma repercussão, porque era uma novidade na época, o Pastiche Nagô. Eu já a conhecia de um grupo chamado A Barca. A gente tinha alguns amigos em comum. E o fato de estar toda quarta-feira tocando no Ó do Borogodó foi uma chance de todo mundo ver o que era esse negócio que estava acontecendo. O público começou a encher. O nosso som era misturado, começou a entrar coisa de candomblé, música latina, paraense. Tocava samba de bumbo, jongo, samba rural no meio daquele salãozinho, e as pessoas enlouqueciam. Essa mistura despertou o interesse de muita gente da música também. Essa busca por uma africanidade paulista, com palavras em iorubá e tudo o mais. De repente, numa quarta-feira estava lá o pessoal do Nação Zumbi para ouvir a gente, na outra o Siba ou o Curumin. O disco foi escolhido como um dos melhores do ano pela revista Rolling Stone.

Como foi que surgiu o Duo Moviola?

Esse era um show que eu fiz com o Douglas Germano, que já tocava com a gente no Bando, mas tinha uma vida de compositor desde os anos 1980. Ele era muito mais experiente. E a gente começou a fazer muita coisa que já não cabia mais no Bando, então criamos o Duo Moviola, que era um show em dupla, onde a gente tocava todos os instrumentos. Nessa época eu comecei também a tocar bastante com o Thiago França. Em 2007, nós criamos o Metá Metá. Aquele foi um momento em que todo mundo começou a trabalhar a quebra dos padrões da própria canção. Surgiu uma visão mais experimental de música. O Thiago, quando eu conheci, era do choro, supertradicional. Um cara da música instrumental brasileira, com tudo no seu devido lugar, tudo certinho. E nesse período do Metá Metá ele começou a enlouquecer, a tocar sem pensar, indo para uma coisa mais visceral que partia mais do corpo do que da cabeça. E daí eu conheci o Rodrigo Campos, que era amigo do Rômulo Fróes. E essa turminha começou a andar todo mundo junto: eu, o Rômulo, Rodrigo, Marcelo Cabral, Thiago e Jussara. Basicamente essas seis pessoas começaram a fazer uma série de trabalhos que eram de alguma forma ligados: Metá Metá, Passo Torto, Sambanzo. A gente se aproximou por conta da visão musical, da vontade de investigar essa inquietação de sempre fazer uma coisa nova e não se repetir. Os trabalhos são sempre muito diferentes um do outro. E foi quando fizemos um show no Ibirapuera que apelidamos de Clube da Encruza, fazendo uma brincadeira com o Clube da Esquina, e que reunia quase todos os projetos que estávamos tocando. Tinha um momento Passo Torto, outro Metá Metá, outro Encarnado, a Bahia Fantástica. Era um show criado a partir de diversos momentos. E olhando agora, é impressionante a quantidade de discos que fizemos desde que começamos a sair juntos. A gente já fez em torno de vinte discos, em três anos. Todos mais experimentais, com uma visão mais inquieta da música brasileira, trabalhando os limites da música, dos gêneros.

O cenário paulista tem sido propício para essa experimentação? Além da inquietação do grupo, existem espaços externos para shows, incentivos para discos, que ajudam esse trabalho a se multiplicar?

Eu venho dos anos 1990, comecei a tocar num ambiente muito mais frágil, onde a gente nunca recebia para tocar. A gente saía de Guarulhos, outras pessoas do Grajaú, de Santo Amaro, da Zona Norte, um monte de lugares, e íamos tocar nas casas que existiam na época. Retrô, Armagedom, Urbania… E nunca ganhamos um centavo para tocar. As bandas todas ou eram covers ou cantavam em inglês. Não tinha Internet, tudo era muito difícil. Nessa época para você fazer um contato era preciso mandar uma correspondência para uma banda lá na Inglaterra, falando que você gostava do som deles, e mandava a sua fitinha. Daí, o cara mandava a fitinha deles. Era assim que se trocava informação. De revista, só tinha a Bizz. E a gente ia para a Galeria do Rock atrás de disco importado. Não tinha dinheiro para comprar o disco então conseguia uma fita cassete gravada. A loja cobrava pela fita. E essa fitinha a gente ia passando de um para o outro. Cada um levava um dia para a casa e gravava. Uma fita virava vinte fitas. A qualidade piorando cada vez mais, a cada regravação que você fazia. E o sertanejo e o pagode dominavam todo o mercado. O Brasil sai de um mercado dominado pelo estrangeiro e ganha força nacional, mas com uma música totalmente massificada. Não tinha alternativa para uma música mais à borda, mais à margem. Então, comparando com esse ambiente que eu vivi nos anos 1990, de 2000 para cá tudo melhora muito.

O Brasil tem uma tradição de grandes críticos de música popular, desde Lucio Rangel, José Lino Grünewald, Torquato Neto, Ezequiel Neves… Como você vê a crítica hoje? Ela tem acompanhado, refletido o excelente momento da música mais experimental?  

Sim, existem bons pensadores da música que está sendo feita. Mas eles não estão na grande mídia, nos jornais tradicionais. As pessoas que hoje melhor escrevem sobre música, que estão pensando o assunto, refletindo esse tempo, analisando com mais cuidado, normalmente não são profissionais do jornalismo, mas professores e pesquisadores. Um exemplo no Rio de Janeiro é o Fred Coelho, que escreve superbem, tem um blog chamado “Objeto sim, objeto não”. No entanto não é jornalista. Outro é o Bernardo Oliveira, que se não me engano é professor, e tem um blog, o “Material Material” e coopera em muitos outros blogs. Ou o Márcio Bulk, do blog “Banda Desenhada”, que reúne entrevistas com músicos da nossa geração. Ele tem um material vasto, que daria para fazer um livro, um belo documento do pensamento da nossa época. E na introdução das entrevistas ele sempre reflete muito sobre o som do entrevistado, e sobre o cenário que estamos vivendo.

Então a melhor crítica está sendo feita em blogs?

Sim. Tem uma revista nova também, que alguns deles participam, chamada Polivox. Editada pelo Marcos Lacerda. É muito boa. Interessante reparar que boa parte desse pessoal está no Rio de Janeiro. Depois de uma crise imensa que o Rio passou, agora estou notando uma manifestação emergente lá. De um lado essas pessoas pensando música, todas elas com envolvimento em movimentação musical também, não apenas escrevendo, mas agitando shows, criando espaços, festas. O Bernardo Oliveira, por exemplo, faz o “Quintavant”, na Audio Rebel, que eu acho que é o pulmão da música carioca hoje. A Audio Rebel é um lugar superpequeno, mas é o único lugar hoje em dia de música alternativa no Rio. E o “Quintavant” é um movimento que trabalha com a música de invenção, com as manifestações mais radicais no cenário nacional. Eles chamam gente de outros estados, mas tem principalmente um foco na cena local. São grupos que fazem um som mais difícil de ouvir, mas que faz muito sentido por estar num espaço onde a música tradicional sempre foi a regra. O tradicionalismo sempre foi a regra no Rio, terra do samba, do Estado Novo. O Rio sempre foi agarrado com unhas e dentes com a tradição. E o “Quintavant” vem para romper com isso. A música mais radical hoje no Brasil é dessa galera que está na Audio Rebel.

Para finalizar, fala um pouco sobre o seu envolvimento com o candomblé, com as religiões afro…

O meu envolvimento com a afrorreligiosidade na minha arte, na minha criação, veio em função da época do samba mesmo. Eu comecei a ouvir discos, a pesquisar, e descobri um território que talvez o próprio samba escondesse. Desde a difusão na rádio, no começo do século XX, o samba vem vestindo uma roupagem europeia para entrar na casa da família brasileira. Orquestras ou cordas tocando acordes. Não era o jeito que o samba era feito antes, na Bahia. Você vai no Recôncavo Baiano e vê o samba talvez mais próximo do que era, de uma viola mais polifônica, que não fazia muito acorde, mas fazia melodia que ia seguindo a voz. E os batuques. E quando eu ouvia principalmente a Clementina de Jesus, o João da Baiana, essa turma, eu ia reparando como começava a virar macumba. Não é em todo lugar que eu vejo essa macumba. O samba passou muito tempo escondendo a macumba para se tornar comercial. E eu comecei a ir atrás, parei de ouvir disco e comecei a tentar encontrar congada, jongo, batuque de umbigada. E junto dessa procura comecei a ir aos candomblés. O candomblé afro-baiano que veio para São Paulo, e a umbanda que veio via Rio de Janeiro. E comecei a me interessar pela música. Tem um bilhão de informações lá, cada orixá tem um toque próprio, não é cantando em português, mas em iorubá, e cada orixá tem sua cor predileta, sua comida predileta, sua música predileta, seu ritmo predileto. Isso começou a me aguçar a curiosidade, eu comecei a ir atrás de informação, a ler muito, e comecei a fazer um tipo de pesquisa de campo. Mas sem saber o que era isso. Passei um ano fazendo isso, e comecei a ficar muito fascinado pela figura do Exu. Foi quando eu fiz o documentário sobre o Exu. Quando eu vi, já estava fazendo ebó. Tive que tirar ebó para fazer o filme, tive que consultar búzios, e comecei a entrar no ritual. Então eu não era mais o documentarista filmando o objeto, eu era o documentarista virando o objeto. Isso é muito comum nessa área. Veja o Reginaldo Prandi, grande pesquisador do candomblé: ele é Ogan, é iniciado. E o filme acabou se tornando uma espécie de uma iniciação. Ao mesmo tempo, comecei a fazer algumas musiquinhas, vinhetas mesmo, como “Atoto” e “Padê”. Mostrei para a Jussara, ela quis gravar. E eu nem achava que eram músicas mesmo, tinha apenas duas frases. E comecei a pensar nisso, em trazer de volta ao samba essas coisas africanas que o samba sempre escondeu. Eu comecei a trabalhar com esses ritmos, com a polifonia africana. Junto com isso veio todo o interesse em música africana, comecei a pesquisas bandas de lá. Uma coisa que abriu muito a cabeça foi o contato com a música elétrica africana, o começo da música pop africana. Bandas com bateria, baixo, guitarra. Mas o jeito que eles tocavam é muito próprio, a guitarra é um balafon, tudo é meio tambor. Os instrumentos melódicos viram outra coisa, eles não têm compromisso com a melodia. O compromisso é com o batuque. O cara toca guitarra e parece que está tocando um instrumento percussivo, e repete aquilo a ponto de parecer um transe. E isso acabou influenciando muito a minha forma de pensar a música.

Segunda parte – 15 de abril de 2020

Queria começar por algo que tá no fim da entrevista que você deu ao Sergio Cohn e Caco Pontes em 2012. Qual a importância do candomblé para a forma como você vê música?

Esse interesse pela religião de influência africana, aqui do Brasil, se deu basicamente pela música. Comecei a bater na porta de algumas casas e pedir para assistir a festas, e rolou esse interesse, de sentar ali e ficar vendo os tambores, os cantos. Só que, em um determinado momento, para você entender o que está sendo cantado ali, você tem que procurar o contexto geral. Então, você vai saber um pouco sobre aquele orixá, saber um pouco da dança, da roupa, o que ele come ou o que ele não come, a cor dele, a personalidade, os arquétipos. Isso me despertou o interesse por Exu, logo de cara. Eu vindo de uma família cristã, Exu, no meu imaginário, era o capeta.

Sua família era cristã católica ou cristã protestante?

Era protestante da parte da minha mãe, eu sou até batizado na igreja Batista. Tem aqui um certificado. O meu pai era católico. Nenhum dos dois seguia muito, mas eu cresci com o imaginário da culpa e tudo mais. Nesse imaginário da culpa, Exu era o demônio. Então conforme eu fui conhecendo um pouco o aspecto original de Exu, eu comecei a me interessar em um dia fazer algo sobre ele. Eu achava um bom tema. Em 2005 acabou rolando um edital em Guarulhos, no FunCultura, e eu falei: vou fazer um filme sobre Exu, porque eu acho que música não iria dar, não daria muito conta de falar sobre esse assunto. Uma coisa até mais didática.

Quando eu decidi que iria fazer um filme, comecei a entrar fundo mesmo, a ir em muita festa, muita casa e falar com muito sacerdote, falar com estudioso. Então fiquei acho que inteiro… Foi isso. Passando todo sábado de madrugada em algum terreiro, indo atrás de sacerdotes e conversando, e no meio do caminho eu encontrei a Iyá Sandra Epega, Sandra de Xangô. Ela morava em Guararema, uma cidade aqui da Grande São Paulo. Ela sabia para caramba, eu fiquei muito encantado com ela. Ela brilha muito no documentário. O filme se chama Dança das Cabeças… Não desculpa, Dança das Cabeças é de Egberto Gismonti, o meu filme chama Dança das Cabaças – Exu no Brasil.

Essa figura, que era a Iyalorixá Sandra, eu reencontrei ela depois de ter lançado o filme. Ela me convida, fala: “Kiko, vai lá na minha casa, vai lá na festa”. Eu fui. Ela falou: “Kiko, vai lá no tambor, estou vendo que você está com vontade de tocar”. Eu falei: “Pô, mas nem sou iniciado”. Ela falou: “Vai lá, depois a gente conversa”. Eu sabia alguns toques. Quando chegou nas músicas de Xangô e eu estava tocando o alujá, que é o toque de Xangô, é bem corrido, bem rápido. Aí o Xangô dela veio, pediu para eu jogar com ela e tudo. Comecei a voltar no terreiro, e quando eu vi já era filho de santo, já estava em todas as festas, participando de todos os rituais.

O que Xangô falou pra você?

Xangô me perguntou por que eu tinha nascido pela barriga. Falei: “Não sei”. Aí ele falou: “Conversa com a minha filha, ela vai te falar qual o problema”. Eu tinha nascido de cesariana. Fui falar com ela: “Xangô perguntou por que eu nasci pela barriga, que tinha um problema que tinha que resolver”. Aí eu joguei com ela, tive que fazer um ebó, era uma coisa que estava… Um problema mesmo, até meio ancestral, nos meus caminhos. Eu arrumei lá com o ebó e comecei a voltar. Voltava lá: “Kiko, vai para o tambor”. Aí nos rituais de sacrifício, no orô: “Kiko, pega o tambor”.  Depois já estava ajudando também a segurar os bichos, para matar, quando eu vi já estava lá vestido de branco e participando de tudo, né. Fiquei alguns anos lá. Ela faleceu, eu acho que em 2012. E eu fiquei indo lá até 2012, direto, participando de tudo, uma participação intensa nas atividades da casa.

Isso me contaminou muito, porque eu fui me aprofundando, fui aprofundando não só na música, mas na filosofia mesmo. No modo de viver. Lá era uma casa muito ligada a Ifá, então ela contava muita história. As histórias de Ifá, os Itan de Ifá, as histórias de orixás e os fundamentos da religião. Ela tinha muito conhecimento, nos anos 1980 começou a viajar para Nigéria e começou a se iniciar lá. Ela já era do candomblé aqui no Brasil, mas resolveu ir atrás da fonte mesmo e começou a se iniciar lá, de novo. Então, era uma Iyalorixá que estudava muito mesmo, tinha uma biblioteca imensa, gostava muito desse assunto de Ifá. Ela passou muito conhecimento, isso contaminou minha arte. Não só minha arte, mas minha visão de mundo mesmo.

Sempre que estou com problema vou atrás de um jogo e tento resolver as coisas fazendo ebó, as oferendas. Esse contato com a natureza, com as forças da natureza que o candomblé tem. Você manipular, de alguma maneira, as forças da natureza e criar uma harmonia em seu convívio com elas. Isso impregnou muito na música. Não rolou uma pesquisa, rolou uma vivência mesmo. Eu estava lá segurando o bode, depois levava o bode que mataram para limpar ele na cozinha, depois ia para o tambor, depois fazia faxina no terreiro. É uma vivência do dia a dia. Aprendi a fazer uma comida ou outra. Sempre, cada ida à casa, a gente aprende alguma coisa.

A Iyá Sandra, ela também tinha muita sede de passar isso para os filhos, então ela passou muita coisa. Talvez, prevendo que não fosse viver muito, eu não sei qual era o motivo, mas ela passava, não tinha tanto tabu. O tabu do segredo era encarado de outra forma. Não tinha um tabu assim: “Não pergunte isso para mãe de santo que ela vai te dar um esporro”. O que você perguntava, ela respondia. Ela ensinava, no meio das oferendas, ela explicava cada coisa. Porque cada comida, porque cada coisa. Então acho que isso me impregnou, impregnou muito a minha obra. Isso está lá desde o Padê. E está impregnado mesmo. Não foi uma pesquisa, foi vivência.

O que despertou sua curiosidade inicialmente pela macumba? Que músicas você estava ouvindo? O que o levou ao terreiro?

Lembro da Clementina de Jesus, que você escuta os discos e não consegue dissociar umbanda, macumba, candomblé do samba. Se você pegar um disco do Cartola, os discos dele oficiais que ele lançou depois de uma certa idade, pela Marcus Pereira, você vê muito um samba que estava mais para o samba canção. Já não era mais o Cartola do samba de terreiro, das escolas de samba. Era o Cartola do samba canção. Eu sentia: “Pô, eu vejo as entrevistas, o Cartola falando que era cambono, no terreiro, que era o cara que levava as oferendas para as encruzilhadas, para as matas, para o rio, e não vejo muito isso na obra dele”. Então comecei a me perguntar: “Será que a macumba não está meio escondida?”. Lógico que você vê em vários compositores. Você vê no Wilson Moreira, no Nei Lopes, no Candeia, no Martinho da Vila, você vê a busca por essa herança.

Mas de uma maneira geral, nas rodas, eu achava tudo muito desvinculado da religiosidade de influência africana. Então, eu comecei a ir atrás. Onde eu vou buscar isso? Não vai ser disco, entendeu? Vai ser indo nos terreiros. E, indo nos terreiros eu comecei a identificar muita coisa. Esse ponto aqui parece samba de roda, esse ponto aqui parece um samba conhecido. E comecei a fazer essa relação. Você se aprofundando vai ver que o samba da Bahia, o samba de roda, a chula que muitos dizem que é a matriz do samba que se convencionou fazer no Rio de Janeiro no começo do século XX, esse samba de roda vem de um ritmo chamado cabula, que se toca muito no candomblé Angola, no candomblé de caboclo. É um samba corrido, um samba de roda. Os tambores marcam muito (imita a percussão com a voz). Não dá para desvincular. Dá para falar com a boca cheia que o samba como a gente conhece hoje vem dos terreiros e a própria Tia Ciata sustenta essa hipótese. João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha, Donga, esses caras que foram os precursores, eles eram ligados ao terreiro, a vivência do terreiro. Isso está na obra deles. Então percebendo que isso estava um pouco apagado no meio do samba, eu comecei a me jogar. Foi meu caminho sem volta, porque não dá para entender só a música. Você tem que entender tudo que está em volta. 

Como você vê esse afastamento do samba de sua

origem, do terreiro?

No momento em que o samba se desvincula do terreiro, é um jeito de sobreviver, é um jeito de não ser atacado, de não ser perseguido. Porque o samba sempre foi perseguido, o terreiro sempre foi perseguido e é ainda. É muito perseguido, a gente está numa fase na qual o segmento pentecostal persegue muito as religiões de influência africana. Agora, eu enxergo que talvez o samba, lá no começo da rádio mesmo, no Rio de Janeiro, já começa a alargar um pouco essas características, para entrar na casa da classe média, da classe média branca. Foi um jeito de sobreviver, de ser menos perseguido. Sorte que a gente teve essas figuras que foram cutucando isso de novo na gente. Martinho da Vila. Eu lembro muito de ouvir um disco do Martinho da Vila, aquele disco de capa preta, que tem uma foto dele, que teve participação do Aniceto (Novas Palavras, de 1983, que tem a faixa “Festa de Candomblé”, que reúne pontos). De repente, entra: “Ô, dá-me licença aê”. Entra uma puta macumba. Noutro disco tem “O Sino da Igrejinha” (na faixa “Festa de Umbanda”, do disco Martinho da Vila, de 1974). E tem Candeia, Clementina. Da Clementina, então, nem se fala. Martinho gravou esses discos nos anos 1970. Naquela época houve uma retomada, o próprio Candeia era muito preocupado com isso. De retomar coisas esquecidas nas escolas, quando ele fundou a Quilombo era um pouco chamando para isso.

A história do samba é a história desse diálogo

com o rádio, com o público, com a classe média…

É uma história de diálogo, de cruzamento como

estratégia de sobrevivência. É por isso que o samba

está vivo como está. O jongo, por exemplo, tem que ir atrás pra ouvir, e o samba você liga uma rádio

popular a qualquer hora e ouve.

Você falou do jongo… Nesse período em que eu estava imerso no terreiro, o jongo me ajudou muito. O jongo funcionava como um meio-campo, de uma coisa para outra, do terreiro para o samba e vice-versa. Eu lembro que tem um jongo aqui de São Paulo, que é o de Guaratinguetá. Eles vinham muito para São Paulo e tocavam em vários lugares. Tocavam em algumas festas. Era um jongo muito bonito, muito africano. Foi muito importante para mim nessa época descobrir coisas da cultura tradicional de São Paulo. Porque eu ficava muito naquele mundo da rádio carioca e a história do samba inteira está vinculado ao samba do Rio, porque era a capital do Brasil, era onde estava a Rádio Nacional e tudo mais. E o jongo me ajudou a sair do disco, sabe? Pô, encosta os discos um pouco e vai ver alguma coisa acontecer.

Tudo bem, eu frequentava rodas de samba bastante, conheci muita gente, aprendi um monte de coisa, aprendi a tocar na roda de samba. Tocar direito, harmonia, melodia. Uma coisa que o rock não tinha me dado. Mas eu lembro que quando eu comecei a ir às rodas de jongo e ver aquilo de perto, eu falei: “Opa, aqui está uma coisa, está um meio-campo disso que eu estou procurando”. E eu lembro, também, de assistir ao batuque de umbigada de Tietê, que é o que talvez seja o ritmo mais africano daqui de São Paulo. É uma coisa feita com famílias pretas, mesmo, e muito sincopado, muito polifônico, o ritmo é binário, mas é uma coisa muito quebrada. E o jongo daqui de São Paulo é mais terciado (canta). Vi ali o batuque de umbigada, o jongo, o samba rural que tocava também, que é tocado com um zabumbona, um bumbo enorme, muito quebrado. Vem de uma batida meio maxixe, mas o bumbo começa a quebrar. Isso me ajudou muito: “Tem alguma coisa pulsando aqui que não está nas rodas”. Isso me despertou muita atenção, foi descambar muito no Padê e no Bando Afromacarrônico.Tem esses ritmos nos discos.

E como você levou todas essas informações do terreiro, do jongo, da umbigada, toda essa sua vivência musical pro violão e pra guitarra?

O Bando Afromacarrônico começou a tocar, todas as quartas, no Ó do Borógodó, que é uma casa de samba daqui de São Paulo. Juntava muito músico bom, muito músico de choro. Quando eu comecei a tocar lá, meu violão de samba não era aquele violão de 7 cordas. Eu flertava com o 7 cordas, mas ele não conseguia ser igual aos outros. Não porque eu era original, era por incapacidade mesmo. Falava: “Pô, eu queria tocar violão de 7 cordas assim, mas meu violão é tão… sei lá”. Aí comecei a ficar meio cabreiro. Mas eu gostava muito dos baixos, mais do que as frases do violão de 7 cordas, eu gostava do jeito, do timbre dos baixos do violão. E eu comecei a pensar: “No Bando Afromacarrônico não tem o baixo, tem violão e cavaquinho, são os instrumentos harmônicos. Eu vou fazer os baixos aqui”. Comecei a me preocupar menos com violão e mais com o baixo. Comecei a pensar em baixo. Nesses baixos, eu comecei a evocar um pouco esses ritmos.

No Afromacarrônico você tocava 7 cordas?

Não, eu nunca toquei 7 cordas, sempre foi violão de 6, mas no Ó do Borógodó pouca gente tocava 6 cordas, eram violonistas nível Alessandro Penezzi. O Alessandro Penezzi tocava toda semana lá. Era uma galera muito boa, muito virtuose, e eu não me encaixava muito naquilo. Eu me considerava um músico muito abaixo, tecnicamente. Mas eu falei: “Vou começar a fazer baixos”. E comecei a pesquisar isso um pouco, de como tocar baixo no meio disso, desse ritmo. Comecei a evocar um pouco essa vivência do candomblé, dos jongos, do samba de outra maneira e daí as cordas agudas… Lógico que eu não fiquei só no baixo. As cordas agudas eu comecei a pontuar, fazendo um contraponto com esses baixos. Daí começou a nascer meu jeitinho de tocar, foi uma necessidade prática, de estar ali tocando toda quarta-feira.

Agora pensando isso nos caminhos da vida, mesmo, é muito louco. Porque no Brasil você é bombardeado com muita informação, não existe o conceito de pureza, de um gênero, da plenitude de um gênero, de um estilo. Isso não faz muito sentido no Brasil. Cresci ouvindo música caipira, do meu pai. Minha mãe tinha disco da Beth Carvalho. Olha só o gosto dela. Da Beth Carvalho, ela pulava para Roberto Carlos. Do Roberto Carlos, ela pulava para o Queen. Do Queen, ela pulava para Edith Veiga. E daí,  televisão. Novela. Na novela, você escutava música da trilha original, trilha internacional, nacional e acho que essas coisas foram bombardeando.

Depois minha irmã começou a chegar com disco de rock em casa. Ouvi Titãs e Paralamas do Sucesso lançando seus discos. O Cabeça Dinossauro a gente foi comprar na loja. O Selvagem, do Paralamas, também. É muito bombardeio de influência. Daí, chega na adolescência, vai para o rock. Com certeza, um cara no terceiro mundo querendo tocar rock pesado não vai ser igual a um gringo. Ele vai ser bombardeado, ele vai ter influência, sei lá, da Gretchen, do Gilliard, do Trio Los Angeles, coisas que ele viu na TV. Então, acho que vai, dentro de você, vai virando quase uma erupção. Quando essa erupção gritar, sair, nada vai ser puro. A própria história do samba é um pouco assim. Tanta influência, tanta coisa vindo de tanto lugar, é tanto ajuste, que isso vai virando meio que um Frankenstein.

Acho que é o nosso jeito mesmo antropofágico de viver. A gente faz Frankenstein com tudo que a gente tem contato. Eu acho que é a soma disso tudo, vindo desde a musiquinha caipira lá do meu pai, até o trash metal e o jongo, isso deságua no violão de um jeito meio inexplicável. Às vezes eu tento organizar: “isso aqui tem mais a ver com rock, isso aqui vem da influência do samba, isso do jongo”. Mas eu acho que é tudo tão confuso, é tudo tão misturado, tão diluído que eu não consigo achar muita explicação racional.

E a guitarra?

Minha primeira guitarra eu ganhei com 12 anos porque eu infernizei minha mãe. Queria uma guitarra. Eu queria ser metaleiro e tinha um violão em casa, todo arrebentado, que já vinha desde a infância. Minha mãe trouxe a guitarra, eu toquei a guitarra e não saiu som nenhum, porque eu não sabia que tinha que ligar no amplificador. Aí fiquei um tempão tocando guitarra sem amplificador, depois fui conhecendo um amigo ou outro que tinha amplificador e fui tocando guitarra. Eu não sabia tocar direito, tanto que eu não aguentei tocar metal por muito tempo, por não tocar direito.

O metal tem um lado meio erudito. Os guitarristas de metal são meio eruditos, tocam rápido, com precisão. Quando eu descobri o punk, era um jeito democrático, qualquer idiota que souber três acordes consegue montar uma banda. E quando você é adolescente é muito envolvente essa filosofia, de que qualquer um vai poder tocar guitarra, basta saber três acordes. E eu fui para isso. Comecei a ir para o punk. E o rock, e o punk principalmente, musicalmente, no ataque, na agressão, no jeito de mostrar a música, me ensinou um negócio, tipo: não toca mais ou menos, ou você sangra tocando ou você não toca. Não vai tocar mastigando chicletinho, encostar o pé na parede e ficar vendo o movimento. Então, a herança da guitarra e do rock, desse começo meu na guitarra, foi isso. Toca para fuder, não vai tocar meia boca, não. Não vai tocar com a mão mole, vai com firmeza. Eu sinto isso às vezes, num músico que não passou pelo rock, às vezes eu sinto uma falta de  firmeza, sabe? Não lembro quem falou, que era bom você passar pelo rock na juventude, mas depois sair, ir pra outro estilo, que você vai tocar aquele estilo com muita firmeza. Mas não fique muito tempo no rock, que isso pode atrasar sua vida.

É muito louco porque durante os anos 1990, na primeira metade dos anos 1990, eu vivi muito intensamente essa coisa do rock. Mas em meados de 1994, mais ou menos, eu comecei a me entediar. Aí eu acho que tinha a ver com a idade passando, lógico que foi uma coisa rápida, não foi uma coisa de anos e anos, mas eu me entedio muito. Eu comecei: “Pô, o que eu vou fazer?”. Aí tinha cena eletrônica, eu também fui atrás de alguma coisa de cena eletrônica, mas não me identifiquei e comecei a revirar os discos da minha mãe, de novo.

Como foi essa tua aproximação com a cena eletrônica? Chegou a ir a festas?

Cheguei! Cheguei! Uma coisa que me balançou muito, na época da música eletrônica, foi o que o pessoal chamava de jungle, que depois se popularizou com o nome de drum’n’bass. Para mim, vendo agora na linha do tempo, eu curtia um punk bem underground, não gostava de Nirvana, da onda grunge. Embora essa onda grunge afetasse a gente de algum jeito, eu senti, basicamente, que com a explosão do grunge, o rock alternativo, quando ele chega no mainstream, ele perde um pouco o sentido. Eu não sabia mais o que era mainstream, o que era alternativo. A coisa foi ficando meio sem sentido.

Quando o Kurt Cobain morreu, aí eu acho que morreu de vez. Nunca mais surgiu nada que alterasse tanto o comportamento das pessoas como foi aquele ciclo do Nirvana. Depois que ele morreu, eu comecei a sacar isso, de algum jeito meio irracional, meio inconsciente, tipo: “Está chato, as bandas estão todas iguais, estão cantando do mesmo jeito”. Nada novo aparecia e paralelo a isso estava explodindo a música eletrônica. Isso, o lado underground da música eletrônica, me despertou um certo interesse. Comecei a ir atrás. Primeiro da cena techno.

Só que a cena techno era um negócio meio classista, era estranho. Era só gente branca e de classe média alta, as pessoas tinham um comportamento meio blasé, meio frio. Eu ia nas festas e ficava sozinho, só num canto, olhando para as pessoas. Não tinha interação nenhuma. Aí eu descobri que na zona leste o pessoal estava ouvindo esse jungle, que era uma música de gueto, inglesa. E a batida era sincopada para cacete, quebrada. Era muito louco aquilo lá. No começo, o pessoal até chamava de hardcore. Era engraçado, hardcore era o estilo de punk mais rápido que eu gostava. E daí, eu falava: “Que porra é essa, hardcore, jungle”. E comecei a ouvir isso. Comecei a ir numas raves na periferia. Aí na periferia era de outro jeito, era a galera… A maioria era negra, o pessoal interagia muito mais, bagunçava muito mais. Lógico que tinha alguns problemas, homofobia… Era engraçado, na cena techno, nos Jardins, não tinha muito espaço para homofobia, porque era muito gritante a cena gay. E na periferia, a maioria era hétero, mas era pobre e preto. Então, lá também tinha esse lance social menos separado, mas tinha esse lance da homofobia.

Numa cena tinha racismo, na outra tinha homofobia…

É, exatamente. Nos Jardins tinha racismo, mas não tinha homofobia e, na periferia era o contrário. Eu absorvia aquilo. Vi a coisa passar muito meteoricamente. Tipo em um ano esse jungle já ficou popular, sei lá. Propaganda, vinheta da Xuxa já tocava drum’n’bass, sabe? Qualquer canal de TV, propaganda das Casas Bahia, tocava um drum’n’bass, então perdeu um pouco. Foi mais um estilo que foi engolido pelo mainstream e perdeu o sentido.

Nesse período, nessa crise com o rock, foi bem nessa época que eu descobri o Chico Science. Aí foi uma paulada na cabeça, porque o Chico era roqueiro, era do rap, era também da música eletrônica e era totalmente brasileiro. Como assim um roqueiro veste uma camisa florida, um chapéu coco, de palha… Foi um tapa na cara. Tipo, num país de clima quente, andar de preto é ridículo. Vamos fazer do nosso jeito. Então, na minha cabeça foi muito revolucionário o manguebeat, quando eu vi o Chico Science, eu falei: “Caramba, porque eu não pensei nisso? Porque eu estou tocando rock desse jeito?”. Foi uma das minhas crises com rock, foi um pouco culpa do Chico Science. Porque eu falei: “Porra, não dá mais pra tocar rock imitando o gringo, se já tem esse negócio muito elaborado”. E eu nunca tinha ouvido falar em coco, nem em maracatu, nem em ciranda. Aí eu fiquei pensando: “Como eu vou fazer uma coisa dessas em São Paulo? São Paulo não tem nada de cultura popular”. Na época, eu não sabia que existia jongo, congada, folia de reis. “Caramba, como é que vou fazer isso?”. Começou a levantar um questionamento na minha cabeça, tanto que eu cheguei no ensaio de uma das minhas bandas punk, e falei: “A gente não pode cantar inglês mais não, isso é colonização, vamos cantar em português”. Aí cantar em português os caras não gostavam, lembro que me deu tanto desespero de não querer mais fazer aquele rock anglo-saxão, que eu fui à biblioteca e peguei um dicionário de quimbundo. Aí fiz uma letra em quimbundo. Olha só como é que são as coisas. Já é um ensaio do que rolaria depois. Aí eu falei: “Pô, vamos cantar aqui em quimbundo, então”. Eu lembro muito da cara dos caras, olhando um para o outro, tipo: “O mano está louco!”. Eu levava uma música do Jorge Ben, “vamos tocar essa música do Jorge Ben”, e os caras: “Meu, Jorge Ben é um tiozinho que meu pai escutava no carro, a gente não vai tocar isso nem ferrando”. O roqueiro é muito ortodoxo. Quem ouvia metal, só ouvia metal. O cara que ouvia metal, não ouvia Beatles. por exemplo. Então, eu saí.

Estamos falando muito de ritmo e pegada, mas tem uma coisa na sua guitarra e no seu violão no campo melódico e harmônico, um traço que remete a outras tradições, escalas africanas. Como é isso pra você?

 É engraçado, porque o rock é meio pentatônico. Os riffs de rock são um negócio meio pentatônico, é uma escala pentatônica. Quando você vai para o samba, nada é muito pentatônico, tudo é escala menor, maior, as mais convencionais. Quando eu vou para o terreiro do candomblé, eu me deparo de novo com muita coisa em escala pentatônica, muita coisa também menor e maior, mas a escala pentatônica muito presente. E eu comecei a falar: “Porra, mas isso poderia ser um riff de rock, isso poderia ser um riff de blues, um riff do John Coltrane, uma coisa de spiritual americano”. Comecei a perceber essas coisinhas, fazer algumas analogias. Isso me ajudou muito, porque eu já tinha a sabedoria da harmonia do samba, que tem uma herança europeia. Mas tinha também essa coisa pentatônica que vem dos terreiros e de certa maneira existe no rock. Quando as pessoas iam no Ó do Borógodó assistir ao Bando Afromacarrônico, elas falavam: “Pô, isso daí é Black Sabbath, isso que você está fazendo, não é samba”. E eu falava: “Tá, mas isso é uma cantiga de candomblé, está aqui”. Daí eu cantava. No Rastilho, a primeira faixa, o “Exu Odara”, que é uma cantiga de candomblé classicona, ela tem muito disso (canta). É uma escala pentatônica que poderia ser um blues, poderia ser um tema de jazz também, um tema do Coltrane. As coisas vão se encontrando, é muito interessante.

Porque a raiz é a mesma, né? Tudo vem dos negros que foram sequestrados e trazidos à força pras Américas como escravos. Tem até um texto do Mário de Andrade que fala que quando o jazz começa a influenciar o samba a lógica não é a de imperialismo cultural, não é uma nação dominante se impondo sobre uma cultura oprimida. A lógica é de um reencontro de caminhos que partiram de uma raiz comum. É a percepção que você teve quando aproximou Black Sabbath e candomblé.

É engraçado também, que nessa época das descobertas, eu comecei a ouvir música angolana. Bastante coisa de música angolana, até pela proximidade da música nossa. E aí já era um jeito de tratar escalas mais parecido com samba. É interessante como  o samba está ligado à influência banto, muito mais do que à influência nagô e iorubá, dos terreiros de candomblé Jeje. Se você pega a música popular angolana, ela tem muita influência de Portugal também, das escalas de instrumentos, violão. Você pega esses países africanos de língua portuguesa, todos têm um caminho muito parecido com a música brasileira, em termos de harmonia, de estrutura, os intervalos e a própria música de rádio africana, depois que vai  tocar com baixo, bateria e guitarra, ela tem muita influência dessas escolas europeias e depois da música cubana. É muito engraçado como tudo vai mudando e as coisas se encontram. Sei lá… o Nelson Ned fazia show em estádio em Angola. Alguma coisa os angolanos viram ali e se identificaram com a música do Nelson Ned. Então é muito louco os caminhos e como as informações vão se cruzando e se transformando em outras coisas.

Tem uma coisa temática que interessa a você e a seus colegas de cena, temas como a morte, aspectos mais sujos da experiência humana. Por que esses temas, esse olhar sobre eles atrai vocês? Qual é a força poética desse universo?

Esses temas do Passo Torto, do Metá Metá, da minha obra, da Juçara Marçal, do Romulo Fróes, do Rodrigo Campos, eles são muito moldados pelo tempo que a gente está vivendo. Se você pegar o Padê e o Pastiche Nagô, do Bando Afromacarrônico… Lógico, o Afromacarrônico tem João Carranca, tem coisas com temas mais espinhosos, mas eu enxergo que em 2012, talvez, havia um clima de panela de pressão prestes a explodir que influencia isso, de alguma maneira. O Encarnado, da Juçara, que foi lançado em 2013, já é uma panela explodindo. Mas em 2012, a gente tem o Metal Metal, que é muito diferente do primeiro disco do Metá Metá. O Metal Metal não tem temas espinhosos, mas ele tem uma certa violência no jeito de se tocar. E Passo Elétrico é  a obra mais gritante, acho, desse período, de uma certa angústia nos temas, no jeito de se expressar. O Passo Elétrico é um disco muito angustiado, fala de especulação imobiliária de um jeito meio estúpido, que as pessoas vivem no meio urbano. Isso deságua muito forte no Encarnado, o tema da morte, e passa por tudo que a gente fez depois. O MM3 do Metá Metá, o disco da Elza Soares (A

Mulher do Fim do Mundo), até chegar no Besta Fera, do Jards Macalé.

E eu não consigo, eu estou meio escravo dessa coisa. Acho que de lá, de 2012 para cá, todas as obras que eu participei, elas estão muito contaminadas por esse clima, por essa densidade do momento atual. Isso só vai ficando mais explícito na minha obra. O Rastilho, talvez, por ser um disco só de violão e voz, e que tem algum lirismo e que evoca uma certa tradição da canção brasileira, da história do violão, coisa e tal, pode parecer que não é assim. Eu não quis fazer um disco violento no Rastilho, nem um disco que tivesse temas espinhosos, mas eles foram aparecendo. Lógico que tem “foi batendo o pé na terra que vovó me ensinou o samba”, não tem nada de espinhoso nisso, mas tem também o próprio Rastilho, tem as músicas instrumentais que tem nome de pessoas que tombaram, nome de guerreiro, de abolicionistas que se revoltaram. Me sinto meio escravo desses temas mais espinhosos. Sempre gostei de Nelson Rodrigues. Sempre gostei de pessoas que falaram da morte de um jeito interessante. Nesse momento, eu não consigo fazer uma música sobre o sol nascendo no mar, sabe? Não é isso que eu vejo da janela. Quando eu abro a janela, eu vejo um cara fumando crack. Então, não consigo me expressar no momento de outro jeito.

Às vezes isso alcança até o humor, por outro lado. Muita coisa do “Cortes Curtos”, ou a música do “Gato Cipó”, é sombrio mas toca numa graça, num sorriso de canto de boca. Em que medida isso torna mais contundente a violência dos versos?

É uma escola. O samba tinha muito isso, de falar de coisas tristes, às vezes, de um outro jeito. Moreira da Silva fala de um cara tomando facada, mas ele fala de um jeito engraçado. Você começa a rir do cara que tomou facada. O samba tinha muito isso, mas eu sempre enxerguei isso nas coisas de São Paulo, desde os Mutantes até passando pelo Arrigo Barnabé, pelo Itamar Assumpção, pelo Tom Zé, eu sentia muito isso. Uma certa ironia, de falar de coisas pesadas com uma certa ironia. Aquela ironia do Nelson Rodrigues, de  mostrar a tragédia, mas mostrar o lado patético do ser humano, também. Eu acho que foi uma escola para mim, esse pessoal que eu citei, de mostrar essas coisas de um jeito mais irreverente. Às vezes causa mais efeito você dar risada.

Eu tenho um exemplo da música “Uma Hora da Manhã”, do Cortes Curtos, que é basicamente uma briga de supermercado, uma mulher é maltratada porque é nordestina e ela revida esse maltrato sendo homofóbica com o cara que maltratou ela, que por acaso era gay. Então, você fala: “Isso é uma música estranha porque tem a briga dos dois, tem o xingamento dos dois”. Para mim é muito estranho cantar essa música, porque tem frases como “seu viado”, “seu frango”, eu fico com medo de cantar essa música. Será que vão me entender errado, vão achar que eu sou homofóbico? Será que não vão entender que é o diálogo dos personagens? E essa música não dá para cantar sem ódio, você tem que evocar algum ódio ali.

Eu escrevi essa música em 2011, numa semana bem estranha. Porque eu tinha visto essa briga no metrô, no metrô não, no supermercado. Já tinha achado estranho. Depois teve uma passeata antinordestino, na Paulista, depois esses mesmos caras que fizeram passeata antinordestino, que eram skinheads, na verdade, neonazistas, eles fizeram uma passeata homenageando um político que eles tinham descoberto que representava eles. E o nome desse político era Jair Bolsonaro. Era um deputado até então meio desconhecido. E foi bizarro, porque eu fui lá olhar. “Vou olhar aqui quem são essas pessoas”. Cheguei lá tinha 30 skinheads, neonazistas. O público do Bolsonaro era esse em São Paulo e tinha, também, do outro lado mais uns 30 anarcopunk querendo pegar os neonazistas na porrada. A polícia no meio, e acho que até os nazistas foram presos porque já estavam sendo procurados pela polícia, eles estavam com a cara encapuzada, a polícia descobriu e prendeu alguns.

Mas eu achei muito estranho, eu escrever essa música em 2011, depois eu lancei em 2017 só. O Bolsonaro já era um monstro, que foi crescendo, descontroladamente, as pessoas foram alimentando e foi crescendo. Depois do golpe, eu acho que é um momento que ele mais explode mesmo em popularidade. Foi muito empurrado por “Superpop” e “CQC”, também, esses programas de TV que mostravam ele o tempo todo na tela. Mas acho que o golpe, aquela fala dele, homenageando o Ustra, no impeachment da Dilma, foi muito emblemática. Foi o nascimento dele mesmo, como um pop star do mal, essa coisa que a gente está vendo hoje. Então, para cantar essa música eu tenho que encarnar esse ódio ali na interpretação, esse ódio do bolsominion. Para mim é muito doloroso, é muito estranho falar. As pessoas acham a música engraçada. porque a música se mostra de um jeito engraçado. Ela é totalmente trágica, mas é um hardcore todo sincopado, meio samba, e o jeito que uma fala vai batendo na outra as pessoas acham engraçado. Ela tem muita influência do Arrigo Barnabé do “Diversões Eletrônicas”, dessa onda aí. Ela provoca riso no jeito que é mostrada, mas também é dolorosa porque apresenta uma verdade escrota pra caramba. Daí as pessoas cantam e se sentem culpadas por estar cantando aquilo. É muito louco. Eu acho legal, acho que não valeria a pena fazer música triste pela tristeza só. Acho que é legal. Gosto de estudar outras formas de se mostrar essa tristeza brasileira.

O Cortes Curtos abre espaço pra essas possibilidades de incompreensão, de ambiguidade, porque você não explica muito, é tudo muito rápido, é o fragmento de um discurso que você lança e o ouvinte tem que se virar com aquilo. O próprio conceito “cortes curtos” aponta para isso…

Sim, é tudo muito resumido. Se você pega uma frase, “São Paulo, terra de um beijo só”, tem muita coisa nessa frase. É uma frase da Anna Zêpa, que eu li, ela escreveu no Facebook, é o começo de um poema dela. Aí eu liguei para Anna e falei: “Anna, deixa eu fazer uma música com essa frase que eu vi no Facebook?”. Ela é de Natal, escreveu isso pra alfinetar São Paulo mesmo. E no poema, ela continua falando da frieza de São Paulo, mas eu falei: “Na música só esse verso basta”. Pensando nessa coisa de uma frase só, que o Cortes Curtos tem, lembro de um episódio.

Fui convidado para tocar na Cracolândia, perto a um fluxo de crack. Foi um pouco antes de o prefeito João Dória atacar a Cracolândia, em plena Virada Cultural. Estava um clima tenso lá na Cracolândia, chamaram algumas pessoas para participar de bate-papos, para conversar com o pessoal. Me convidaram para ir lá com a guitarra. Aí eu cheguei, liguei a guitarra e pensei: “O que eu vou tocar para os caras?”. Toquei a primeira do Cortes Curtos, que é “No escuro”, que é um poema do Wandi Doratiotto, do Premeditando o Breque. O Wandi me deu o livro e, eu andando na rua, folheando o livro, vi essa frase: “No escuro uma pedra vira um muro”. Fiz a música, mandei para o Wandi, ele gostou, eu gravei no disco. Aí, fui tocar na Cracolândia e cantei sem pensar muito: “no escuro, no escuro uma pedra vira um muro”. Aí, na hora que os caras ouviram isso, os caras começaram a repetir: “uma pedra vira um muro”,  os caras piraram nessa frase. Eu nunca tinha pensado numa pedra nesse sentido do crack, da pedra de crack. E os caras falavam: “uma pedra vira um muro”. Os caras ficaram muito alucinados com a letra e a gente ficou um tempão só cantando essa letra. E o meu show, se resumiu basicamente em cantar essa música e depois eu dei a guitarra para um outro cara e ele tocou uma hora de Legião Urbana. Eu descobri que Legião Urbana é a grande banda da Cracolândia, todo mundo na Cracolândia gosta de Legião Urbana, se você tocar Legião Urbana ali, o bicho pega. Dei a guitarra para o cara e ele ficou tocando Legião Urbana por um tempão, e eu desisti, naquele momento, de tentar brigar com Legião Urbana, não tive nenhuma chance. Mas é interessante como uma frase pode dizer tanta coisa.

Acho que o charme do Cortes Curtos é isso. São frases que já mostram o Brasil pós-golpe, num caminhão meio sem volta, numa insanidade crescente. Ouvindo os discos, você consegue pontuar muito os momentos do Brasil. Eu tenho muito orgulho disso. Não conseguiria fazer um disco solar, de jeito nenhum. Eu gosto muito de pensar nisso, na panela de pressão, no Encarnado e no Passo Elétrico como uma panela de pressão, o golpe e a coisa explodindo mesmo no A Mulher do Fim do Mundo, depois o Cortes Curtos já como um vendaval, um afogamento, a lava do vulcão cobrindo tudo. E o Rastilho, embora aparentemente tenha uma cara mais delicada, já é o disco pós-destruição. É o disco pós-apocalíptico. É o disco que fala: “Olha, deixa queimar tudo. A gente vai ter que passar por esse momento. A gente vai perder muita coisa, vai morrer muita gente, vai queimar. O Brasil vai pegar fogo, mas a gente vai ter que resolver esses fantasmas”. Tudo que a gente está vendo é fantasma da gente mesmo. Os bolsominions não brotaram do chão, não saíram do bueiro de uma hora para outra. Já era aquele tio seu escroto que falava merda no almoço da família, já é o vizinho, já é… Já é um pouco todo mundo, todo mundo tem isso.

É tudo fruto de um procedimento histórico, de um jeito meio conciliador, meio bundão, e bastante cruel que o Brasil tem de lidar com suas questões. Tem um ensaio ótimo de Maria Rita Kehl (“O Ressentimento no Brasil”) que fala dessa postura. A ditadura acabou sem que ninguém fosse punido, com uma anistia que fez parecer que aquilo estava superado. O mesmo se deu no fim da escravidão. Esse processo naturalmente não é uma solução, o problema não se extingue. E se ninguém foi punido a semente do mal não foi queimada, segue viva.

É, exatamente. Essa coisa mal resolvida, mal cicatrizada e aberta. A época da escravidão, do Brasil Colônia, da ditadura, são feridas abertas que nunca ninguém cuidou, nunca ninguém fechou. E acabou voltando e de alguma maneira responsabiliza todo mundo do Brasil pelo bolsonarismo. Não é só o bolsonarista que é um monstro, que talvez seja a personificação dessas feridas, mas todo mundo carrega um pouco, todo mundo tem questões sobre racismo para resolver, questões de classe para resolver e, acho que o bolsonarismo se mostra mesmo como um monstro que saiu de debaixo do tapete, esse bichão, esse monstro que a gente está escondendo há tanto tempo e que saiu agora com a forma do Bolsonaro. Agora a gente vai ter que encarar isso de frente.

O Rastilho é um disco que propõe isso. No momento em que ele fala “vamos explodir”, escrevi isso pensando num homem-bomba mesmo. “Ah, está tudo fudido, então vou fuder também”. Vou mostrar alguma dignidade, já que eu estou sendo programado para morrer, eu vou morrer levando trocentas pessoas juntas. Pensei muito no homem-bomba, pensei nisso de o homem bomba deixar de ser só a presa, de ser presa e predador ao mesmo tempo. E a ameaça do terrorismo é muito assustadora, quando o cara fala: “eu vou explodir, não sei que horas e quando, mas fique sabendo que eu vou explodir”. Me veio muito essa imagem na cabeça quando eu escrevi o Rastilho, de uma reação mesmo, de uma explosão, de algo muito ligado à destruição total. A gente vai ter que lidar com esses fantasmas. Não tem como ignorar, a gente vai ter que encarar isso de frente.

Gostaria que você falasse mais detidamente do encontro com Elza. O que representou pra sua música?

Um elemento bem importante desse encontro com a Elza foi o Guilherme Kastrup, que foi o produtor do disco A Mulher do Fim do Mundo. A  gente tinha participado de um show do Cacá Machado, e no disco do Cacá Machado a gente tocava e a Elza cantava uma música também. Ela cantava essa música no show do Cacá Machado e tocava um cover do “Volta Por Cima”, do Paulo Vanzolini. Nesse cover, a gente fez um riff meio Passo Torto. E a banda do Cacá Machado tinha eu e o Rodrigo nas guitarras, já tinha ali um pedacinho de Passo Torto, então quando a gente tocou com a Elza nesse show do Cacá Machado, o Kastrup falou: “Kiko, você percebeu que rolou uma liga?”. E, eu falei: “Percebi”. Eu falei um negócio que ainda bem que ele não me ouviu: “E se a gente fizesse um disco com a Elza cantando esses clássicos do samba, com essas roupagens mais Passo Torto?”.

Ele ligou para ela, e na conversa ela revelou que não tinha nenhum disco da discografia dela de canções 100% inéditas. Então o Kastrup falou: “Porra, então vamos um disco de inéditas”. Aí eu lembro que na época eu falei: “Putz, inédito não, Kastrup. Vai ficar estranho ela cantando nossas coisas”. Mas a gente foi na do Kastrup. E o Kastrup chamou várias pessoas para compor e a Elza foi escolhendo as músicas. A Elza escolheu.

A Elza não tinha noção nenhuma do que iria acontecer, de quem era a gente, não conhecia o trabalho de ninguém. Ela confia no Kastrup, mas acho que para ela seria um disco a mais. O cachê iria ser pago e tudo bem, não teve uma coisa assim de “nossa, ela pirou no trabalho da gente e propôs fazer um disco juntos”. Não. Foi o Kastrup que enxergou isso, que poderia dar alguma liga. Quando ela escolheu as músicas e tirou os tons, a gente começou a fazer os arranjos, sem ela ouvir. Ela combinou um dia de ouvir, de ir ao estúdio. Então a gente gravou todas as músicas, o instrumental e ela foi no estúdio para ouvir. A gente de cu na mão: “Ela vai achar estranho isso, as músicas todas polifônicas, as guitarras comendo de cabo a rabo, ninguém tocando a mesma frase, cada um repetindo uma frase”.

Eu lembro que o Victor Rice (engenheiro de som que fez a mixagem e masterização do disco) falou para o Kastrup: “Qual o baixo dessa música? Todo mundo está tocando baixo”. Porque estava todo mundo no grave, fazendo frases diferentes. Ele achou um negócio bem louco. Quando a  Elza foi ouvir, ela ficou em silêncio, ficou aquela tensão. Aí ela falou um negócio, mais ou menos assim: “Não estava esperando isso, e isso vai ser um disco de carreira”. Foi aí que eu entendi que ela estava levando a sério. “Isso é um disco para ganhar prêmio”, eu lembro que ela falou isso. “A gente vai ganhar muito prêmio com essa música aqui”. Ela falou também que era uma música diferente de tudo o que ela tinha feito, porque a banda sempre foi um tapete para ela sambar, deitar e rolar em cima e, pela primeira vez, a banda estava, de certa maneira, brigando com ela. Ela falou: “Eu vou para um spa, vou levar as letras a essas gravações, vou ficar ensaiando e vou voltar para gravar, comer essas músicas com farinha”. Ela não se sentiu intimidada, ela falou: “vou estudar e vou comer essas músicas com farinha”. Nesse momento deu para sentir que algo estava rolando ali.

Quando ela voltou para gravar as músicas, as coisas estavam muito encaixadas com a voz dela. Não teve muito choque de geração. Na versão ao vivo ela falava: “sobe a guitarra”. A gente com medo: “Pô, um ícone da música brasileira do século XX, não vou aumentar a guitarra e atrapalhar ela”. E ela: “Aumenta a guitarra, eu gosto de guitarra alta”. Daí eu vi aquela senhora, mano, de roupa de couro, peruca roxa, com dois chifres saindo do ombro. Em nenhum momento ela mostrou um conflito de geração. Lógico que ela é de outra época e tem outro jeito de trabalhar, outras manias. Mas ela comprou muito, aquilo foi muito natural para ela. Foi muito assustador ver isso de perto. Às vezes caía a ficha, é massa, você está com a Elza, você toca junto e está lá. Mas tinha um momento do show, no bis, ela tocava “Pressentimento”, do Elton Medeiros e do Hermínio Bello de Carvalho, aí quando ela começava a cantar o “olá ai ai ai ai ai ai ai” eu lembrava daquela gravação antiga dela, que foi a primeira, se eu não me engano, do “Pressentimento”, a música estava fresquinha, foi uma música fresca, dada para ela. Dava uns estalos, dava uns choques de realidade. Eu pensava, sei lá, no Picasso, no Stravinski, no Charlie Chaplin. Era uma pessoa desse tamanho, um ícone do século XX mesmo. E às vezes eu chorava sim. Ela deitava e rolava no repertório, em nenhum momento ficou uma coisa forçada.

A gente via isso no show acontecendo, ela às vezes ia passar o som, com a voz frágil e eu pensava assim: “Putz, será que esse show vai rolar?”. Rolava uma coisa assim, de treino é treino e jogo é jogo. Ela passava o som, com a voz bem pequenininha, falava bem frágil. Na hora que a cortina abria, que ela entrava: “Coração do Mar” (canta). Eu via o choque da plateia. A plateia inteira de boca aberta, gente lacrimejando. Na hora que começava “A Mulher do Fim do Mundo”, a música do Romulo e da Alice Coutinho, as pessoas chorando, já aos prantos. Era uma coisa muito impactante para gente também. Para ela. Foi uma felicidade, um encontro que rolou ali, uma coisa que deu muito certo, essas coisas são raras. Tem que ser festejada, porque são encontros raros mesmo, foi muito emocionante ver o público dela rejuvenescendo. Muitos jovens no show. Era muita gente jovem mesmo, muita molecada do ensino médio, das universidades e a molecada pirando. Acho que muita gente foi atrás da obra toda dela. A gente viu essa reviravolta.

Mais do que a molecada, né? Porque estavam ali as sapatões, os pretos, a juventude ligada em política, ativismo, com discurso, desejo de falar, que via na Elza, naquela figura de 80 anos, uma figura que os representava nos pleitos mais quentes. Isso é muito raro e muito bonito.

Sim, muito raro. Porque todas essas discussões, essas pautas, a Elza já estava vivendo na pele. A luta antirracismo, o feminismo, o LGBTQ+. Já estava na obra dela, todas essas coisas de alguma maneira já estavam na vida dela. A galera enxergou isso, mesmo de um maneira inconsciente. Acho que isto está marcado na voz dela, no rosto dela, na mão dela. Ela acaba simbolizando mesmo essas lutas.

Que músicas suas você mais gostou de ver na voz dela?

Acho que tem duas músicas minhas no A Mulher do Fim do Mundo e duas no Deus é Mulher. Mas eu destaco “Pra Fuder” e “Exu nas Escolas”, que é outro encontro muito bom que rolou, que foi do Edgar com ela. Uma coisa muito interessante, ver os dois juntos num disco, duas pessoas tão diferentes, vindas de universos tão diferentes. E o “Pra Fuder” eu lembro que fiz para ela, pensando nela, pensando nessa coisa da Elza, essa energia de Iansã, de Oyá, que a Elza sempre passou, da expressão da sexualidade. Eu pensei muito nisso. Ela até tirava sarro comigo no show, antes de tocar essa música, ela sempre falava o mesmo texto: “O Kiko diz que escreveu essa música para mim, não sei por quê”. É muito interessante, uma mulher de mais de 80 anos cantando uma letra daquelas.

Quando eu ouvi o “Pra Fuder”, pensei na gravação dela do “Beija-me”, do disco Bossa Negra. Ela simula um orgasmo, ela vai gemendo enquanto canta “beija-me, beija-me, beija-me”. Isso em 1960! Está ali essa mesma frequência sexual do “Pra Fuder” que você está falando, que independe da idade. Mas prosseguindo: o disco seguinte, Planeta Fome, já foi sem vocês. Como você vê esses dois discos que vocês fizeram juntos? E como vê o fim desse ciclo?

É interessante ela experimentar outros formatos, agora. O fresco mesmo está no A Mulher do Fim do Mundo. O Deus é Mulher, analisando o álbum hoje, não chega tão longe. Ele já parece ali um certo esgotamento da fórmula, da banda. Eu acho que já não funciona tanto. É uma sabedoria dela experimentar outros formatos. Ela é aberta a isso. Eu mesmo, no Deus é Mulher, já não toco guitarra muito, toco mais sintetizador. Ali eu já demonstro uma certa insatisfação com a minha guitarra. Um sentimento de saturação de uma fórmula.

Eu lembro que eu levei o sintetizador e a guitarra para o ensaio, os samplers. E eu testava na guitarra e falava: “Está como no primeiro disco, vai ficar repetitivo, vou tentar outro timbre”. Pegava a mesma frase e tentava o mesmo timbre no sintetizador. Muita gente acha até que é guitarra, esses sintetizadores. Mas são sintetizadores, ligados nuns pedais loucos ali. Mas eu senti isso. Na época, gravando o disco eu já sabia que não seria o mesmo impacto do A Mulher do Fim do Mundo. Mas eu acho que é isso mesmo, o caminho é esse. E a Elza mostra isso na obra dela. Tem esse disco Bossa Negra, tem uma cara anos 1960, que está em outros discos também, mas nos anos 1970 ela vai passando por várias fases, vai mudando. O que rolou no A Mulher do Fim do Mundo rolou no Do Cóccix Até o Pescoço. Eu lembro do impacto que foi esse disco no pessoal. Eu acho que ela está procurando. Ela está vivona e procurando outros formatos. Eu acho bom!

Você tem uma coisa punk na sua relação com o mainstream, de se desinteressar pelo drum’n’bass no momento em que ele começa a tocar na Xuxa, por exemplo. Como você equaciona na sua cabeça a adoração pela canção popular e essa desconfiança com o mainstream? Porque ao mesmo tempo você teve a oportunidade de ver públicos enormes à sua frente cantando suas músicas, sobretudo com Elza. Como é sua relação com o sucesso? Como conversam em você o desejo de ser ouvido e o pé atrás com o mainstream?

A desconfiança com o mainstream não é só por ser mainstream, nunca foi. “Ah, na época do primeiro disco era legal, só por ser o primeiro disco”. Talvez, no primeiro disco a pessoa tinha um frescor, uma novidade que não estava tão contaminada por outras coisas. Ultimamente, eu estou exercitando mais outro pensamento, percebendo as estranhezas do mainstream. Por exemplo, o funk. O funk é uma música periférica, underground, mas que é mainstream também, que explodiu. Já foi underground, mas hoje está em todos os lugares. O mesmo esquema, tem na propaganda de TV também, tem em todos os lugares. Só que na propaganda de TV ela não vai ter esse frescor, ela vai ficar um pouco banalizada. Agora, se eu pegar um sucesso bem mainstream da Anitta, por exemplo, eu consigo enxergar coisas ali interessantes. Eu consigo enxergar outras coisas no mainstream americano. O mainstream americano tem uma visão mais madura desse frescor, da investigação, da novidade. Se você pegar o “Lemonade”, da Beyoncé, você vai ver um monte de coisa experimental. Se você pegar o disco do Jay-Z, vai ter um monte de coisa experimental ali no meio, uma coisa que o cara quer lançar, ele não está fazendo igual todo mundo. Aí, você pega outros artistas, o Tyler, The Creator, o cara dialoga com coisas supernovas, esquisitices, com um soul music dos anos 1960, com o Rythm & Blues de uma maneira muito instigante. É uma música totalmente nova, que domina o mundo, enche estádios, festivais com 50 ou 100 mil pessoas, e o cara está fazendo um bagulho estranho. Quando eu digo estranho, não é o estranho pelo estranho, não é a dissonância. Não estou falando só da dissonância, eu estou falando da novidade, da surpresa, do frescor.

O rap se tornou o grande espaço de experimentação da vanguarda do pop, né?

Eu acho. Mas o rap do Brasil sempre fica atrás. Porque tem medo, quer seguir alguns padrões fechados. Então nunca chega no mesmo nível lá de fora. Porque lá fora você pega um disco do Kendrick Lamar, tem coisas ali assustadoras. Tem coisas que eu não gosto, tem coisas que eu adoro. Como é que um cara que vende tantos discos pode lançar uma música tão esquisita, tão estranha, tão nova? Eu acho que o mainstream do Brasil também tem isso, mas menos. As coisas, quando se tornam conhecidas, elas tendem a ficar mais mansas, mais conformadas. Mas a gente tem um pouco isso. A própria história do samba é um pouco assim.

Porque o Brasil é assim, na sua visão?

É a  indústria. No momento que o samba, no começo do século XX, teve que ser tocado com orquestra e botar um cara branco cantando, com voz de cantor de ópera, para entrar na rádio, é um jeito de estragar um pouco. Imagina você ver o Bide e o Marçal tocando, na rua ou em algum lugar, mas com um certo frescor de invenção. Porque esses caras eram inventores, a gente está falando de inventores. “Agora é Cinza”, imagina como é que era os caras tocando isso. E como que foi depois com orquestra e o Francisco Alves. A indústria sempre vai moldando as coisas para entrar dentro da casa das pessoas. A indústria aqui no Brasil subestima muita a inteligência do público. “Isso daqui não vai vender, isso daqui é muito estranho, isso daqui é difícil”. Certas barreiras foram quebradas. Eu enxergo muito isso na geração do Cacique de Ramos. Os caras estavam inventando um jeito novo de fazer samba, que nunca foi superado. Eles inventaram um jeito de tocar samba, esse jeito não foi contaminado pela popularização, eles fizeram praticamente a mesma música que estava sendo feita ali no quintal do Cacique.

O funk também se impôs desse jeito, o rap se impôs desse jeito. Foram músicas que explodiram, mas com certo frescor. Se você ouvir uma música da Ludmilla, sei lá, de algum mainstream de hoje em dia, você vai enxergar um certo frescor. Está mudando aos pouquinhos. Eu estou mais atento a isso, até em sertanejo eu fico… Às vezes, eu acho coisas estranhas no mundo sertanejo, o tom que os caras cantam, o jeito que forçam a voz. Eu estou começando a exercitar, deixar um pouco o preconceito de lado: “Ah, porque é famoso…” E não é assim! A nossa história não é assim! O João Gilberto foi famoso tocando do jeito dele, o Jorge Ben foi famoso tocando do jeito dele. Mas a gente vê sempre as coisas sendo moldadas. Se você pegar a gravação do Manezinho Araújo, quando ele começou a cantar as emboladas na rádio, não sei qual era regional que acompanhava ele nas gravações, 78 rpm, mas era um grupo de choro. Praticamente um grupo de choro. Então o cara está tocando embolada, “meu carreté comprou um carro forte”, e a galera está tocando o choro. Tiveram que fazer isso, tiveram que moldar. Você pega o Caymmi, também tocando na rádio. Não é o violão do Caymmi. Uma coisa é você ver o Caymmi tocando violão e cantando. Outra é você pegar a gravação do “Maracangalha”, parece uma abertura do filme do Walt Disney. Isso aconteceu com Luiz Gonzaga também, sendo obrigado a tocar choro para ser notado. Isso está mudando. Eu não enxergava muito isso nos anos 1990, com a Britney Spears. Eu achava que a música pop americana era muito mais rica nos anos 1980 do que nos 1990, mas agora, com essa geração que faz sucesso na música americana, eu estou notando isso. Pode ser interessante a experimentação no mainstream.

Como essa reflexão se aplica na maneira como você faz ou divulga a sua música? Você acha que sua música está tragicamente apartada dos grandes públicos, porque é uma música de experimentação? Ou você acha que há estratégias pra que ela alcance mais gente? Você faz música pensando nisso, no público?

Quando eu faço música, primeiro eu tenho que ficar feliz. Em primeiro lugar eu componho para mim. Aí, em segundo plano, eu fico imaginando se meus amigos vão ficar felizes com essa música. Rola essa preocupação, é o mesmo sentimento que eu tinha quando tinha 14 anos e ia tocar com minha banda punk. Eu pensava: “Será que o pessoal vai gostar, será que é isso mesmo?”. E, depois o que vai acontecer, só Deus sabe. Às vezes, você acha que está fazendo uma coisa super popular e faz um negócio estranho, às vezes faz negócio estranho e vira uma coisa popular. O disco da Elza, A Mulher do Fim do Mundo, é um disco estranho. É um disco bem esquisito, ruidoso, que só fala de morte e temas espinhosos e arranjos tortos, dissonantes. E teve o público que teve. Não dá para calcular nunca. Nunca consigo calcular.

É lógico que eu tenho ansiedade, que eu tenho projeção. Eu não quero que meia dúzia de pessoas escutem, eu acho que ninguém quer. Só um louco que faz um disco para meia dúzia escutar. Um lado meu fala assim: “Se isso aqui explodir, iria ser ótimo”. Mas o outro lado meu fala assim: “Não vai explodir porque tem toda uma máquina, uma indústria que não vai fazer isso chegar na massa”. Se eu for para Taboão da Serra, no mercadinho do bairro, ninguém vai saber quem é o Kiko. Aqui na Santa Cecília, algumas pessoas já me reconhecem. Mas acho que a gente tem que ter essa projeção, de que a música fique famosa de algum jeito, mas também não dá para tirar o pé do chão. Não dá, também, para eu me focar só na projeção e achar que vai ser uma música que vai dominar o mundo e depois não ser e eu ficar frustrado.

Eu lembro que quando eu fiz o Cortes Curtos, era um trabalho diferente de tudo que eu já tinha feito, embora trouxesse elementos do Passo Torto e do Metá Metá. Mas era um disco muito pessoal, muito conceitual. Eu fiz um show no SESC Pompeia, na Choperia, 800 lugares e lotou, ficou gente pra fora. Daí eu falei: “Vai pegar, esse disco vai pegar”. Aí depois eu fiz um outro show pra 30 pessoas, de 800 o público saltou para 30, depois em um outro show, num outro  mês, eu fiz show para cinco pessoas, que foi um dia de um temporal horrível. Lógico que o temporal atrapalhou, mas eu fiquei pensando: “como é que você toca num dia para 800 pessoas e no outro dia para cinco?”. Eu fiquei muito frustrado, falei: “Caramba, a gente gasta dinheiro para fazer um disco…”. Gastei dinheiro para caramba, gastei tempo, gastei tudo e o retorno é tão pouco.

Depois, como o passar do tempo, de uns anos para cá, eu noto que no Twitter, às vezes, alguém me marca e está ouvindo esse disco, e são pessoas muitos jovens. Aí eu descobri que quem gosta mesmo do Cortes Curtos é uma molecada, menor de idade.

Eu lancei para ser um rock de adulto, um rock sem muita ingenuidade, embora tenha esse espírito da quinta série de ligar o foda-se e tocar alto para caramba. Mas eu devia ter sacado isso antes. É um disco mais jovem. E eu fiquei marcando o show tarde da noite, nenhuma criança iria poder ir. Esses são cálculos que não dá fazer muito no meio do processo.

O Rastilho mesmo, eu fiz sem imaginar que iria ter a repercussão que teve. Foi meu trabalho que teve mais repercussão. Trabalho solo. Está sendo muito aceito, está começando a ter uma circulação fora do país, na imprensa e tal. E eu não imaginei. Era só um  disco que eu fiz porque eu fiquei internado no hospital e fiquei imaginando um jeito de passar tempo. A gente não consegue calcular essas coisas de público, de dimensão. Eu não sei a dimensão do meu público, eu acho que é sempre menos do que eu imagino, mas às vezes eu vou tocar no interior e tem, sei lá, 200 pessoas que gostam muito. Então, a gente não sabe o que a sua música pode alcançar. Eu acho que alcança muito mais do que a gente imagina. Mas também a gente não pode pirar o cabeção, achando que é famoso para caramba, porque não é.

Muitos defendem que o que impede artistas como você de se tornarem um sucesso de massa é o jabá. Você

concorda com isso?

Não acredito que o jabá sozinho segure um sucesso. O público não é besta de aceitar qualquer coisa. Eu acho que as pessoas subestimam muito. Eu já vi pessoalmente, não vou citar nomes, mas eu já vi pessoas injetarem dinheiro em rádio e televisão e não dar certo. Já vi gente gastar rios de dinheiro e o negócio não vingar. Isso aí já aconteceu com um monte de gente. Lógico que tem o jabá, tem toda uma máquina dessa indústria de rádio e TV, que a gente não consegue nem chegar perto, e lógico que tem isso, mas eu acho que só o jabá não se sustenta. Acho que essas músicas têm alguma coisa que toca as pessoas, entendeu?

A gente tem uma visão muito preconceituosa mesmo, dessa música mainstream, do sertanejo principalmente. As pessoas têm nojo do sertanejo e de tudo que eles movimentam, da estética, do jeito de cantar e tocar. Eu acho que pode ter coisas muito interessantes e que se essa música estoura, de alguma maneira ela tocou o público. Então, eu acho que quando minha música não entra, tem essa coisa da indústria que dificulta a entrada dela, mas tem várias outras questões.

Hoje em dia fazer canção desse jeito que a gente faz é uma coisa muito focada na tradição ainda. Também é difícil dizer que uma canção morreu, porque sertanejo é uma canção também. Pagode também é canção. Então, esses caras estão ganhando muito público com canção. Talvez a canção não exista da mesma maneira, talvez a questão seja essa. Aquela canção que o Chico Buarque fazia já não faz tanto sentido hoje. É a mesma que eu faço. Mas eu, particularmente, não penso só na canção. A canção é um elemento importante, mas eu estou pensando na sonoridade. A geração do Chico acho que não pensou muito isso. No som que o disco iria ter, na equalização que o disco iria ter, na mixagem que o disco iria ter. Eles pensavam em arranjo e composição, isso aí é ótimo.

Eu acho que essa geração agora não pensa mais na canção. Um moleque que faz um bregafunk lá em Recife, que faz uma música, sei lá, sampleia um som da panela, um som de balde e cria uma batida. Sampleia um outro negócio e põe uma voz e faz tudo em casa, no computador, num PC velho, cheio de vírus, e essa música acaba se espalhando nas ruas. Não chega na rádio ou chega na rádio de um jeito meio marginal. É muito louco equacionar tudo isso. O meu exercício, hoje em dia, é tentar achar algum frescor nessas músicas de sucesso, que alguma coisa tem, alguma sabedoria tem nisso aí.

Falamos muito de sua música e de todo o universo que a circunda, mas não queria encerrar esta conversa sem que você falasse um pouco do teu trabalho como artista visual. Ele tem andado?

Bom, já me dediquei mais à arte visual. Ultimamente, ela está mais limitada à divulgação de show. Eu faço muito flyer. Agora, como acabou o show no mundo, meus desenhos estão meio parados. Mas eu nunca tive nenhuma ambição de entrar para o circuito de arte, de galeria, de salão. Nunca tive. Eu acho que eu sou mais um ilustrador, um artista gráfico. Estou bolando um livro com a Anelis Assumpção. Com os poemas dela, que na época que eu estava publicando os desenhos eróticos, a Anelis estava fazendo uns poemas eróticos. É um projeto aí, para frente, que a gente vai fazer. Eu tenho um projeto de fazer quadrinho também. Eu tenho um monte de revista em quadrinho que eu comecei a fazer e parei no meio. Eu pretendo, em algum período da minha vida, me dedicar mais a isso. É que a música está tomando muito. De um tempo para cá, a música foi tomando tanto tempo e eu virei produtor, também. Então, quando eu não estou fazendo meus discos, eu estou fazendo disco de outras pessoas. Isso toma meu tempo demais, mas eu queria retomar a coisa das histórias em quadrinho. Eu tenho uma história em quadrinhos sobre Exu, que chama “A Saga de Exu no Novo Mundo”. Eu queria retomar esse quadrinho.

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