Trecho da entrevista realizada com Laerte, em São Paulo, em 2019, por Sergio Cohn e Ana Paula Simonaci, e publicada oriignalmente no volume dedicada a ela na coleção Expressa, em fevereiro de 2020.
Você viveu a ditadura, e o seu desenho tem sido bastante político nos últimos anos. Como você vê o humor político nesses dois momentos?
Eu não sei responder assim de primeira porque eu teria que fazer uma análise do meu ativismo, uma autoanálise que ainda está em curso. Eu estou fazendo isso, mas é um processo longo. Acho que teve uma fase na minha vida, que eu situo mais ou menos pelos anos 1990, em que eu tive uma grande aversão pela ideia de ativismos em geral. Acho que eu tive um foco em questões mais egoístas, da minha vida, do meu interesse pessoal. Em como ganhar dinheiro, em como viver. E eu olhei com grande desconfiança para minha experiência com ideias socialistas, dentro do Partidão e tudo o mais. Foi apenas uma fase. Eu depois voltei a circular dentro da ideia de socialismo, de brigar contra as opressões que a gente vive, por conta de uma sociedade totalmente desigual e desequilibrada.
A ideia de voltar a pensar essas ideias e participar dessa luta foi gradual, e já dentro deste século, junto com as mudanças que eu fui passando. E tem a ver com gênero, tem a ver com sexualidade. Então, de um modo geral, o meu ativismo hoje tem uma motivação do meu estômago. São questões íntimas que me movimentam, não é só uma ideia de uma sociedade igualitária, uma figuração, uma construção relativamente exterior a mim. É uma coisa interior, a partir do modo como eu sinto as minhas questões e como eu sinto as questões da sociedade. Eu me sinto mais vinculada ao mundo em que vivo, por isso acho que é um ativismo diferente. Não é mais o Partidão, mas eu me situo ainda na grande área da esquerda, vamos dizer assim, mas envolvida com diversas causas, que vão do existencial ao mais geral. E eu acho que eu faço essa luta hoje de uma forma mais visceral, um pouco mais íntima.
A sua história é interessante, porque as suas posições e as suas ideias influenciaram a sua obra, mas a sua obra também influenciou as suas ideias e posições, causando mudanças radicais…
Ah, sim, esse negócio de gênero foi a partir de um personagem meu… Eu sempre fui gay. Mas eu nunca aceitei bem essa parte. Eu era bissexual e a parte da homossexualidade estava bloqueada. Eu não admitia isso, achava que tinha sido uma fase e tinha passado. Não tinha. Mas eu demorei muitos anos para aceitar isso. Foi tudo uma coisa já do século XXI. Quando eu aceitei isso, eu falei “Chega, três casamentos meus já foram pro vinagre, alguma coisa quer dizer isso”. A minha homossexualidade estava virando uma questão destrutiva dentro de mim. E eu resolvi então me aceitar enquanto uma pessoa homossexual. Mas aí já tinha o saldo devedor. Bom, enfim… Essas mudanças todas me levaram para um estado pessoal de ausência de uma série de conflitos internos que me acompanhavam há muito tempo. Eu parei de roer unha, eu roía até o talo, parei de fumar… Aos poucos, diversas coisas, que são sinais de pacificação, se instalaram em mim.
Eu comecei a pensar em gênero por causa de um personagem meu, o Hugo, que se travestia sempre. Toda história ele se travestia. Começou a se travestir de maneira obsessiva, e era sempre com uma desculpa, para fugir da máfia ou coisa do tipo. E começou a ficar uma piada em si, o Hugo se travestir. Evidente que ele estava gostando de se travestir. Não estava mais usando aquilo como forma de escapar de perigos. Um dia eu fiz uma tira em que ele se maquia, coloca uma peruca, um vestido, e saí na rua falando “Ah, às vezes a gente tem que se montar mesmo”. Eu já usava esse termo “se montar”, porque eu tinha um certo conhecimento do que era a vida das crossdresser. Daí eu fui contactada por uma pessoa que era do Brazilian Cross Dresser Club, e ela falou que se eu quisesse ir numa sessão do clube, seria bem vinda. E que era uma coisa ótima. Eu fiquei muito assanhada, muito excitada com a ideia de que aquilo fosse uma possibilidade real. Não era uma coisa só para os meus personagens fazerem. Daí eu comecei, aos poucos e num tempo relativamente longo, a me tornar uma crossdresser. No sentido que eu me montava em ocasiões especiais e tudo. E depois uma pessoa trans mesmo, porque eu parei de achar que era preciso ter uma vida social no masculino. Eu ficava tão chateada de me desmontar, sabe? Eu acho que não vou me desmontar nunca… E foi isso que eu fiz.
Pouco depois, teve o episódio de uma entrevista com o Armando Antenore, que me perguntou sobre todas essas coisas e eu falei. Daí ele perguntou se podia mesmo colocar isso na entrevista, porque iria repercutir bastante, as pessoas comentariam. E eu respondi que sim. Daí, eu liguei para minha mãe, expliquei que ia sair uma entrevista e que eu contava tudo, e as pessoas comentariam que eu gosto de me vestir de mulher. E que era verdade. Ela falou: “Nossa, eu tenho umas roupas que eu acho que vão caber em você”. Esse foi o primeiro momento, porque minha mãe ficou preocupada também. Até hoje ela fica preocupada. Mas daí já estava feita a transição.
E é feita num momento em que ela ganha uma importância política muito grande, porque traz visibilidade para uma série de questões do universo trans.
A repressão à população trans no Brasil sempre aconteceu e agora está mais ainda. Mas naquele momento estava havendo uma espécie de primavera trans. O termo é meio exagerado. Mas em 2010, 2011, foi uma época em que se começou a se discutir os direitos trans como algo sério, que precisava ser efetivado. Foi a época em que se tomou consciência de uma lei que existia desde 2002, que é a garantia de acesso às pessoas LGBT, que são nomeadas nessa lei explicitamente. É uma lei estadual. Foi a época que começou a acontecer uma série de leis de garantia de direitos de pessoas LGBT em vários estados. Então foi uma época em que a repressão e a agressividade, que sempre existiram, começaram a encontrar um corpo de resistência. Essa agressividade continuo a se exprimir através de agressões, insultos e assassinatos, os índices no Brasil são muito altos, mas ao mesmo tempo foi a época em que começaram a existir momentos de grande vigor na defesa dos direitos das pessoas LGBT.
Essa é uma situação tipicamente brasileira, dúplice: de um lado, grandes paradas do orgulho LGBT, mas ao mesmo tempo números assustadores de ataques. E não só à população LGBT, mas mulheres também. O feminicídio no Brasil, os estupros, são números escandalosos.
Sobre as tiras, como ficou o seu processo de criação após a ruptura estrutural, quando você tirou todos os personagens? Você pensa uma ideia e depois desenha, ou fica rascunhando no papel até algo aparecer?
Cada dia é uma coisa. Até porque quando fiz essa ruptura, a ideia era exatamente ficar aberta para a surpresa, para a reinvenção. Claro que algumas formulações são parecidas, mas ficou muito mais difícil porque pode ser qualquer coisa, né? A tira pode nascer de qualquer lugar. Pode nascer de uma conversa, de uma palavra, de uma impressão, de um texto que li. Tem até alguns personagens, nesse mundo sem personagens. Tem a Dona Ruth, que é uma senhora que vive situações dentro do apartamento dela, que pode ser uma casa também, ou pode estar no meio da selva. É uma personagem com uma estrutura muito mais aberta. E também algumas séries, como o “Labirinto do minotauro” ou uma série que fiz inspirada na minha gata Celina, que ficou paraplégica após tomar um tiro de chumbinho que acertou a sua medula. Ela e a outra gata, Muriel, foram atingidas na rua, mas a Muriel ficou bem. Mas são exceções, porque normalmente as tiras agora são mais livres e soltas. Então nesse sentido é muito mais difícil, porque eu tenho que construir uma tira inédita todo dia, do zero. Algumas vezes eu construo sequências de tiras, mas normalmente eu preciso inventar algo novo todo dia. E para isso é importante eu ter a consciência que nem sempre será algo realmente bom, que algumas vezes não funciona. É o risco.
E a questão do que sobrevive e do que ficou no passado? Quer dizer, com essas mudanças todas que o mundo tem passado, como você revê as suas obras anteriores?
Eu sou bem crítica. Falar o que vou falar é injusto e é até uma bobagem, mas eu às vezes tenho vergonha. Tem coisas que eu preferia que ninguém lesse. Mas, o que fazer? É a minha história e está lá. E não é pela temática, não é por ser homofóbico, transfóbico, misógino. É o traço mesmo. É o modo pelo qual foi desenhado. Mesmo o trabalho que acabei de fazer, muitas vezes eu vejo já com um certo dissabor. Só pelo fato de que eu acabei de fazer e está publicado. Essa é a parte chata, porque esse mal estar já está presente enquanto eu estou fazendo. Então é um conflito. Eu sei que vou fazer e está me interessando fazer aquele desenho, mas eu sei que vou me sentir mal depois.
Eu já tentei elaborar esse mal estar em análise, de muitas formas. Eu acho que uma das mais consistentes é a seguinte ideia: o que me movimenta para fazer o trabalho, para fazer uma história, um desenho, é o modelo. Em princípio algo que alguém fez, ou uma ideia que alguém teve. Eu sou muito adepta da concepção de que as ideias vem de outras ideias. As ideias vão se gerando. Vão se transformando. Então, se eu tenho um modelo, é muito fácil eu me frustar no final, porque eu criei outra coisa, diferente do original. Necessariamente eu criei outra coisa que não aquela. Eu acho que uma parte do meu cérebro doentio acredita que o que era melhor era o modelo. Então, para mim é difícil entender a minha expressão como algo autóctone, firme. Uma coisa sólida.
Isso tem a ver com o meu aspecto pessoal também. Quando eu me visto, me maquio e saio, de alguma forma eu estou mencionando um modelo. Não exatamente uma pessoa, mas uma ideia de mulher. Que sempre será muito melhor do que eu. Porque essa mulher não está aqui dentro, ela está visível por mim, ela não é a minha subjetividade. Ela é algo que eu vejo e falo “nossa, era uma mulher assim que eu queria ser”. E também ela não é a minha existência. Então, eu me olho no espelho e fico frustrada.
E como você tem visto os quadrinhos hoje?
Se a gente olha os quadrinhos brasileiros hoje, os espaços que existem, é claro que não é ainda o que a gente gostaria que fosse, mas está crescendo. O que eu tenho percebido é que nos últimos anos tem crescido uma parte que eu acreditava que já estava estagnada, que é a produção underground. Eu tenho visto essa produção crescer, nas feiras de livros artesanais e em outros espaços que se fomentam por aí. Vejo, por exemplo o trabalho do meu filho, Rafael, criando encontros, feiras, edições, e atrai muita gente. E eu acho isso surpreendente porque é muito fácil essas coisas perderem o viço, mas continua forte e se expadindo. O underground que a gente conhecia tinha muito a ver com a repressão. A existência de uma cena underground ainda pujante para mim é uma informação muito boa. Me leva a pensar uma sociedade saudável. A juventude está afim, não está entregando os pontos e está lutando para manter espaços que possibilitem experiências mais livres. É um ótimo sinal. Eu acho que é um jeito brasileiro de progredir. De evoluir, até. Que é diferente, por exemplo, do jeito japonês de produzir novidade, ou do jeito francês. A linguagem brasileira se encora e escora em experiências intermitentes. Me lembra um pouco essas escaladas, onde o ponto de apoio está longe um do outro, e é preciso se esticar todo para conseguir alcançar e subir. A escalada brasileira, nas áreas de cultura, tirando talvez a música, é feita desses esforços intermitentes, que acontecem aqui e ali. Eu acho que os quadrinhos tem um modo de prosperar dentro da cultura brasileira mais parecido com a literatura do que com a música. É um modo que se dá aos saltos, com interrupções, com vazios. São pontos que de repente a gente vê se ligando. E que motivam a gente em seguir em frente.