Entrevistas realizadas por Alberto Pucheu, Ricardo Lima e Sergio Cohn, no Rio de Janeiro, em 1999, e publicada orginalmente na revista Azougue n.9, em 2003, e por Sergio Cohn, na FLIP, em 2016, e publicada originalmente no Livro Postal – Leonardo Fróes, em 2017.
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Alberto – Leonardo, o seu último livro tem um título relacionado às artes plásticas, Quatorze quadros redondos. Muitos de seus poemas também são essencialmente visuais, e você chegou a cursar a Escola de Belas Artes. Você poderia falar sobre essa relação estreita da sua obra com a pintura?
A pintura é um capítulo especial na minha vida. A arte que eu mais admiro é a pintura. Adoro pintura a óleo. Um dos maiores elogios que eu senti ter recebido na minha vida foi de uma moça que leu um poema meu e comentou: “olha, eu adorei, achei o poema tão bonito, parece um quadro, a gente consegue ver as imagens”. Eu passei os meus anos de aprendizado na Europa como rato de museu, não saía de dentro deles, era o primeiro a chegar, logo que as portas abriam, e o último a sair. Eu sempre gostei muito de pintura, mas nunca quis ser um artista plástico. Só fui fazer porque queria ser historiador da arte. Quer dizer, trabalhar com artes plásticas, mas já tendo como instrumento a palavra. Não chegava a ser um sonho, mas era meu projeto de vida naquele tempo. Na verdade, eu estava querendo encontrar uma profissão, todos os meus amigos já estavam encontrando as suas, iam ser diplomatas, médicos, engenheiros. E eu queria ser poeta, escritor, e sabia que não poderia viver disso. Então pensei que o meio auxiliar para viver que mais me agradava seria me dedicar à História da Arte.
O engraçado era que queria ser poeta, mas naquele tempo andava muito mais com pintores do que com escritores. Na verdade, não consigo me lembrar de nenhum amigo daquela época que fosse escritor. Eu comecei a trabalhar num jornal como crítico de artes plásticas. E tinha uma batelada de amigos artistas plásticos. Vivia dentro de ateliês, vendo eles trabalhando, misturando tintas, fazendo gravuras, e isso foi muito importante para a minha formação. O Luiz Áquila é meu amigo desde aquele tempo. E havia os meus amigos da Escola de Belas Artes, um grupo de pintores figurativos. Dessa turma o pintor mais bem-sucedido é o Júlio Vieira, que é um pintor muito curioso, muito interessante. Eles gostavam de desenhar ao vivo, pintar cenas reais. Teve um tempo em que a onda deles era ir ao mangue, onde ficava a zona de prostituição daquela época, lá na Presidente Vargas, um quarteirão imenso de casas de prostituição, uma ao lado da outra. E eu ia junto, ficávamos lá bebendo cerveja, eles com álbuns de desenhos. Aquela época era o período da pintura neoconcreta, geométrica, e estava chegando a moda das pinturas abstratas livres, e os pintores com quem eu convivia, tirando o Luiz Áquila, que já começou abstrato, estavam na contracorrente e eram chamados de conservadores.
Ricardo – Você concluiu o seu curso de Belas Artes?
Não, porque eu fui chamado para trabalhar em Nova York, e depois viajei para a Europa. Eu iria trabalhar em Nova York junto com o Mário Faustino, criando verbetes para um dicionário inglês-português que estavam fazendo por lá. Mas o Mário morreu durante a viagem de ida, num acidente de avião sobre os Andes. Ele queria ir para lá também como correspondente do Jornal do Brasil, e então ele atrasou a viagem em uma semana, para resolver as coisas. Eu tinha acabado de me estabelecer em Nova York, quando chegou a notícia do acidente, que me deixou apavorado. Eu só o vi uma vez, na casa dele, quando nos encontramos para discutir a viagem. Era mais velho que eu, e já estava muito prestigiado. Era um crítico muito bom, e fazia parte do grupo, junto com o Ferreira Gullar e o Reinaldo Jardim, que editava o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que era o porta-voz do movimento neoconcreto no Rio de Janeiro. O Jornal do Brasil era o jornal mais influente da época e tinha passado por uma reforma gráfica famosa, feita pelo Amílcar de Castro. Inclusive o Suplemento, que era muito bonito, graficamente inovador, com coisas de cabeça para baixo, muito espaço em branco. Mas eu admirava o Suplemento como coisa gráfica, aquilo não influenciou o meu texto de forma alguma. Eu estava muito longe daquela coisa concreta-neoconcreta. Aquela não era a minha via, eles eram muito gráficos nos seus textos, e eu queria fazer poesia com palavras. Então eu não sentia nenhuma afinidade com eles, o que era uma posição muito delicada, porque o que eles estavam fazendo era a moda naquela época, eles ocupavam um espaço de vanguarda, e achavam que escrever em versos era uma coisa passadista. E era escrever em versos que eu estava tentando fazer, tentando aprender. Eu acreditava que a poesia tinha que passar pela tradição, não queria romper com a tradição de forma alguma. Não digo a tradição do soneto e coisas afins, o meu barato era os mestres modernistas, como eu chamo até hoje: Oswald, Mário, Drummond, Murilo Mendes. Eu lia tudo o que aparecia, mas desde essa época, desde garoto, sempre tive uma preferência muito marcada pela literatura do passado. Sou um leitor de clássicos e quase analfabeto em literatura contemporânea.
Sergio – Mas você sempre foi visto como uma espécie de beat brasileiro…
É engraçado, é muito comum ouvir falar da influência deles na minha poesia, mas eu não vejo muito. Eu já lia os beats desde os anos 1960, mas não vejo muita semelhança na minha forma de escrever com a deles. Essa idéia ficou muito marcada pela minha participação naquela antologia que a LP&M lançou nos anos 1980, o Alma beat, onde escrevi um ensaio. O livro foi um sucesso, e muita gente conheceu meu nome por ele. Eu até percebo uma ligação da minha poesia com a poesia de Gary Snyder, com a sua relação com a natureza, mas talvez seja mais essa coisa de vivência. Acho que a maior identificação que tenho com os beats é de visão de vida. Quando voltei da Europa, eu também fui pra estrada, comecei a viajar de carona, fazer aquelas coisas todas. A sua vida toma um outro sabor, a verdade é essa. Você pode ser um escritor, uma pessoa que tem seus momentos de gabinete, de estudo, de reflexão, e ser uma pessoa cheia de experiências na vida. A influência que eu vejo no meu primeiro livro, onde eu estava realmente aprendendo, foi dos poetas modernistas brasileiros. Eles eram os meus professores.
Agora, nos últimos anos, a influência maior é dessa vivência da natureza. São já trinta anos que estou enfiado no mato. Vira e mexe estou na mata. E a mata você não enfrenta impunemente. Ela mexe com a sua cabeça de uma maneira escandalosa, e você nunca mais volta a ser a mesma pessoa. Então aquela pessoa jovem que há trinta anos escreveu seu primeiro livro, que era um rato de museu, um rato de biblioteca, um poeta muito livresco, quando chega na mata vira outra coisa. Ele cai em outra dimensão. Não rejeito a minha experiência literária, até hoje sou um grande leitor, muito dedicado à literatura. Mas hoje convivo com esses dois personagens numa boa.
Sergio – E havia algum projeto estético na sua poesia?
Não, acredito que não. Eu nunca tive uma reflexão teórica prévia ao poema, a não ser esta que eu mencionei agora há pouco, de acreditar que eu tinha que continuar com a tradição de escrever com palavras, em versos. Porque se tivesse que fazer qualquer outro tipo de manifestação, poemas gráficos ou coisa do tipo, então aprenderia a pintar, que era uma coisa que acreditava que poderia fazer. Então este era o único postulado teórico. Eu sempre escrevi, e até hoje é assim, por impulso, da maneira mais espontânea possível. Até chegar ao excesso, e isso sim vem principalmente dos beats, que, se porventura tivesse a tentação de mexer uma vírgula do poema que estava escrevendo, o jogava fora. Era aquela idéia que vinha do zen de first idea, best idea. Eu escrevia à máquina, sempre escrevi à máquina, desde garoto, e queria que o poema saísse inteiro, sem que tivesse que ser mexido depois. É uma tentação que a gente vai tendo com o tempo, que o momento poético que a gente vive seja tão forte, que se torne mais importante que o resultado, que o objeto recorrente daquele momento. O poema “Precinpicípio”, por exemplo, passou por isto. As palavras vieram fragmentadas, e eu achei legal que fosse assim. Então era esta vontade de querer gravar a velocidade da mente, das suas tentações. Mas acho que nada disso era uma postura teórica muito forte. São coisas que analisando hoje o que aconteceu eu consigo ver, mas nunca tive uma concepção teórica prévia à construção do poema.
Agora, houve uma época de ruptura. Aliás tem um poema, o “Foi queimar livros velhos e achou na mala um beija-flor”, que reflete um pouco essa situação, de dizer “essa literatura não quer dizer porra nenhuma, vou jogar essa porra toda fora, eu só escrevo por vaidade, isso é uma grande bobagem”. Tive esse momento, aí por volta dos meus trinta, trinta e poucos anos. Eu queria romper com a literatura em geral. Depois acordei da crise, e falei, “se jogar a literatura para o alto, o que vai te sobrar?”. Muito pouca coisa, porque na verdade isso é uma âncora que te liga à terra. Uma coisa que enche seus momentos de prazer, satisfação. E hoje, depois de passar por isso, e sendo um pouco mais maduro, eu digo: é o meu ofício, o meu artesanato, aquilo que estou aprendendo a fazer, que acredito talvez um dia conseguir.
Não sou capaz de dizer tudo sobre a minha obra. O leitor vai observar coisas que me escapam. Esse é o momento em que a literatura passa a existir, quando ela significa alguma coisa para alguém de fora que não o autor. Na verdade, a vivência é muito importante pra mim. Vou te dar um exemplo banal, mas que acho significativo: eu não me tornei um pintor de quadros, mas me tornei de paredes. Eu adquiri um certo know-how, faz muito tempo que pinto essa casa. E faço com dedicação de artista. As pessoas acham que qualquer um pinta uma parede de branco. Pintar uma parede a cal requer uma habilidade. Primeiro, não pode borrar o cal em você. Existem tonalidades de branco muito diferentes, existem qualidades, sobreposições, tem a fatura da pintura. O cal é a tinta mais saborosa, tem o preparo da tinta. Então, mesmo que você só pinte de branco, é uma arte. Uma técnica que você tem que dominar. Isso pra mim é vivência. É claro que quando eu termino um dia de pintura – e aqui acho que estou encontrando o que eu queria dizer – daí eu vou abrir o meu Goethe, o meu Schiller, vou ler um poeta alemão cheio de prazer. Eu acho que essas duas coisas são inseparáveis para mim hoje, o prazer literário do prazer da vivência, seja pintando a casa, seja plantando uma árvore, seja subindo uma montanha.
Ricardo – Vamos falar um pouco sobre a sua relação com a natureza. Na sua escrita há um ritmo que parece ser menos monótono, próximo de uma natureza bucólica, do que de uma natureza tropical, selvagem, agressiva.
Gostei foi dessa coisa que você falou, que os meus ritmos nunca são monótonos. Isso eu acho muito importante. Por exemplo, não sei o que é tédio. É um sentimento que não conheço. Sou capaz de demorar o tempo que eu quiser para dar um passo. As pessoas são muito urbanizadas, não agüentam mais de meia hora no trânsito. Tanto que os veranistas que sobem para Petrópolis começam numa vida agitada. Vão para shoppings, vêem tv. Não conseguem se acostumar com essa outra realidade que é conviver com a natureza, permanecem buscando uma vida urbana. Eu não tenho nada disso no sítio, a não ser o ritmo nunca monótono da natureza. E entro numa outra esfera. Sou capaz de passar um dia inteiro vendo passarinho no mato.
Eu não sei mais o que sou eu e o que é a natureza. Acho que eu sou a natureza, ou a natureza me é. A minha imersão é tão grande, e já são tantos anos que eu vivo no meio das árvores, animais, dos rios e das montanhas, que não tenho mais essa noção que sou uma coisa distinta deles. Que a natureza é outra. Acho que eu sou parte disso, sinto isso de uma maneira carnal, corpórea. Muitas vezes, por exemplo, diante de uma árvore, não sei mais quem é árvore, quem é homem. É aquela famosa história do Jung, de Memórias, sonhos, reflexões, um livro primoroso, em que ele fala que quando menino ele costumava sentar em cima de uma pedra. E ficava horas ali meditando. E chegava uma hora que ele não sabia mais se ele era um menino sentado numa pedra meditando, ou se era uma pedra embaixo de um menino pensando.
Talvez o grande problema urbano contemporâneo seja exatamente este: que a pessoa vivendo só a experiência urbana – a cidade é um grande palco – está em cena o tempo todo, numa grande e dolorosa representação, ela começa por achar que a natureza é algo lá fora, aqui sou eu, o drama humano, e lá a natureza. E acha que aquilo é um caos, e não percebe a harmonia, a beleza que te integra àquilo ali. Há um tempo atrás, num rio onde eu costumava tomar banho, eu ficava totalmente largado. Naquele barulho, naquele rumor musical das águas. E um dia veio uma senhora da cidade, obviamente da cidade, com crianças que ficaram extasiadas, criança adora água, e vieram em minha direção, e a mulher ficou gritando pra elas, sai daí, tem cobra, tem cobra. Eu nunca vi uma cobra naquele lugar. Só porque era algo estranho para ela, ela viu aquilo ali infestado de perigos. Eu acho que é muito isso. Você passa a achar que a natureza é hostil. Você não compreende que você é a natureza – você é um produto da natureza como qualquer outro – não pode se separar dela, porque senão não tem saúde mental possível. Se você acha que a sua mãe é uma coisa hostil a você…
Alberto – A natureza é a sua religião?
Ah, sim, como a de Goethe. E a de Spinoza. A natureza, como a poesia, é uma ameaça, ela pode aniquilar algo que é seu para fazer você se transformar em outra coisa. Isso é Goethe, é o seu lema, “morrer, tornar-se”. Ele diz que é sempre isso, uma permanente mudança, a vida é metamorfose. Você tocou num ponto que é interessante, pois ao longo da vida estamos sempre morrendo, a gente não morre de uma vez. Muitos dos meus personagens, por exemplo, vão morrendo. Aquele jovem pretensamente sofisticado que fui, indo ao museu de lupa, com cadernos de anotações e livros de História da Arte, está morto e enterrado. Eu entro de cabeça na natureza como no amor. Não dá pra você amar pela metade. Ou sim ou não. Não pode ficar com panos quentes. Pode durar meia hora, mas tem que ser entrega. Eu sou obsessivo, completamente obsessivo. Quando eu entro na obra de um autor para traduzi-lo, como entrei em Swift, George Elliot, ou em Faulkner, quero saber tudo sobre o autor, ler todos os livros, sua biografia, cada detalhe de sua vida, de seus contemporâneos, suas ligações com o tempo. E eles viram mais um amigo para a minha coleção. Sartre tem uma frase que acho muito bonita, “mudei no interior da minha permanência”. Há um dado básico da sua mônada que continua contigo. Você vai variando de personagens, todas as experiências são muito ricas.
Sergio – E essa morte é eterna? Quer dizer, por um tempo você viveu um outro Leonardo, um ermitão isolado no meio do mato, e foi de novo voltando para o convívio urbano, agora parece ser uma junção desses dois Leonardos, o intelectual e o naturalista.
Eu saí do Rio de Janeiro porque estava muito opressivo. Estávamos no pior período da ditadura militar, você andava de carro e as ruas estavam cheias de batidas policiais. E eu já havia sido preso pelo Dops duas vezes. Além disso, eu estava mergulhando em outro tipo de experiência, a contracultural, e aquela vida urbana começou a não fazer mais sentido para mim. Então parti para Petrópolis sem avisar ninguém e fui morar numa casa, no meio do mato, sem água nem luz. Só eu e a minha mulher. Alguns anos depois, lancei um livro de poesias que no título brincava com isso de ter sumido sem falar com as pessoas, “Esqueci de avisar que estou vivo”. A casa é uma delícia, fica em Secretário, um bairro distante da cidade que na época era praticamente só mato. Ficamos morando lá alguns anos, até que os meus filhos cresceram, entraram em idade escolar e decidimos voltar a morar na cidade. Hoje eu acho que as duas experiências, a de estar em um museu e a de estar na mata, são importantes pra mim. Quanto mais coisas você vive, melhor. Porque se você ficar só na mata, você vai virar um bicho estranho, talvez quase impossível para o convívio social. Se você ficar só no museu, você vai ser só um chato, um pedante distante da vida.
Lá em Búzios, tempos atrás, eu saí para dar uma volta no quarteirão de casa, só de sunga e sandália, totalmente desprotegido. E o passeio estava tão agradável que fui me afastando demais do meu refúgio. Comecei a entrar em um lugar estranho. Uma hora dei com uma trilha que entrava para o mato, e me senti atraído por aquilo, e segui por ela. De repente, para meu espanto, de um lado e de outro da trilha comecei a ver caveiras de boi, cabeças inteiras, com chifres, costelas, restos de pelo, de pele. Era macabro e ao mesmo tempo muito bonito, porque a vegetação já se confundia com aquele troço que parecia estar encostado ali há muito tempo. Às vezes havia flores dentro das costelas, e fui andando meio horrorizado com aquilo, mas entrando cada vez mais. Quando eu estava bem longe no mato, uma voz qualquer entrou na minha cabeça e disse, “se você continuar, não tem retorno”. E eu obedeci, porque acho que voz que se ouve é para ser ouvida. E disse, “então vou voltar”. Minha curiosidade aqui vai ter um limite. E voltei. Depois, no dia seguinte, descobri o segredo daquela história: era um açougue e nos fundos um abatedouro clandestino, eles matavam escondidos e depois jogavam as ossadas nos caminhos que eu percorri.
Isso para mim quer dizer o seguinte: se você ficar só na mata, não tem retorno, você não vai querer voltar pra sociedade dos homens. Vão embora todos os limites que ela te impõe, que você tem que respeitar. Os limites sociais da comunicação, as preocupações sociais. Você vai virar um outro bicho. Como se você saísse andando, como esses viajantes, que chamam aqui de caminheiros, que vão pelas estradas. Você entra em outra dimensão. Então, se você consegue conciliar duas coisas, o prazer artístico com o prazer da vida, é muito bom, só acrescenta.
Ricardo – E o que é prazer artístico para você agora?
Por muito tempo eu não soube o que era a experiência poética. Hoje tem sido para mim uma via de conhecimento, como qualquer outra. Não é pelo valor do objeto que ela te comunica, mas por aquela espécie de transe que você passa, quando está com a atenção muito concentrada e vai recebendo uma série de informações, que vêm de lá de não sei onde, que mostram o seguinte: que sua personalidade, o que você acha que é, é na realidade sua arma de defesa. Na hora em que você se entrega a uma experiência, ela se fragmenta com a maior facilidade. E se descobre que, na melhor das hipóteses, o que chamamos de personalidade não passa de um lapso de memória. Quando se sobe uma montanha, por exemplo, e se faz um extremo esforço além das possibilidades físicas de resistência, aquele arcabouço mental que achamos que nos constitui, e que na verdade são memórias ou preocupações, ou o conjunto das duas coisas, desaparece. Só se pensa na sobrevivência, em chegar lá com um mínimo de água, pois para não ficar mais pesado não se pode beber muita água. Dá uma sede enorme, uma fome enorme, mas o desejo de chegar ao cume também é enorme, e os limites são testados. E aí acho que a personalidade fica completamente amortecida. Como se milagrosamente ela pudesse ter deixado de existir. Claro que no dia seguinte ela vai amanhecer, todos os macaquinhos do cérebro vão te incomodar novamente, mas já conhecemos essa experiência ameaçadora que faz com que a personalidade vá para o espaço. Acho que o momento poético é exatamente igual a subir uma montanha. É o momento em que se atinge a plenitude do universo.
Sergio – Isso me parece uma coisa muito próxima do satori, da iluminação budista, de uma experiência mística…
A palavra misticismo às vezes me incomoda um pouco porque está carregada, como se fosse uma ofensa. Qualquer poeta sabe que a razão tem um limite. Ela é um instrumento muito bom, te dá coordenadas, ferramentas de trabalho, mas não explica nada. A realidade é muito mais complicada do que a razão apreende. Então isso que freqüentemente se chama de místico, não é nada místico. São outras facetas da realidade que você vai descobrindo pouco a pouco. Como a teoria da cebola, que eu formulei alguns anos atrás, que são camadas. Não sei se vocês já tiveram a curiosidade de abrir delicadamente uma cebola. São camadas superpostas, você tira uma, tira outra, tira outra, e de repente você chega a lugar nenhum. Uma cebola não tem miolo, caroço no centro. A realidade pra mim é isso, uma superposição de fatias, de cascas, de camadas, que a gente tem que ir despindo para não chegar em lugar nenhum. E esse lugar nenhum é maravilhoso. A cebola é uma fábula.
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Paraty, 2 de julho de 2016
Leonardo, a sua saída da cidade grande para um sítio na serra foi muito importante para a sua poesia, tendo alterado ela substancialmente. Como tem sido esse trato com esse pequeno pedaço de mundo, como você já denominou, nos últimos 40 e poucos anos?
Eu fui criado no interior do Rio de Janeiro, em Itaperuna, e saí de lá com nove anos de idade, quando meus pais se mudaram para a capital. Eu acho que um moço aos nove anos já tem as suas características básicas definidas. E embora eu tenha me tornado desde a adolescência uma pessoa mais cosmopolita, mais viajada – eu saí do Brasil com 20 anos, morei em Nova York, Paris e Berlim – acho que eu tinha uma nostalgia de voltar para a terra, de voltar pra uma situação de vida mais calma. Situação essa que eu encontrei novamente em Petrópolis. Eu tinha 30 anos quando me casei com a Regina, que até hoje me acompanha. E quando me casei nós fomos para esse sítio que tenho até hoje. O sítio era um pasto, portanto as árvores não cresciam, porque nos pastos eles roçam as mudas de árvores para que o capim possa crescer. Se tiver sombra de árvore o capim morre. E o meu trabalho foi esse, tem sido esse, não é, de lidar com o terreno. Eu resolvi reflorestar aquele pedaço. É um terreno que tem quase 50 mil metros quadrados. Para mim foi uma coisa meio heroica, porque eu não tinha nenhuma capacitação para aquilo. Eu era um sujeito urbano que nunca tinha pegado na enxada. Não tinha a menor prática, não sabia trabalhar de pedreiro. Hoje eu sei. Não sabia plantar, hoje eu sei. Não sabia pintar paredes, hoje eu sei. Não sabia mexer em carro velho, fazer pequenos consertos, hoje eu sei. Enfim, tudo isso para mim, com o passar do tempo, virou um exercício poético. Ao contrário da maioria das pessoas da cidade, eu não acho que trabalho manual seja ruim. Pelo contrário, como o meu trabalho como escritor é todo mental, trabalhar com as próprias mãos me dá um equilíbrio maior. Mas acho que todas as respostas que eu tenho a dar na verdade eu procurei dar com os meus poemas. E a propósito desta mudança, por exemplo, um poema que eu escrevi naquela época, quando saí do Rio para Petrópolis, e que se intitula “Pastoreando um bruxo urbanizado”, me parece dizer mais sobre essas mudanças que eu vivi na época do que eu posso falar aqui, de memória…
Com esse trato todo que você cultivou, esse cuidado de tentar lidar com esse pequeno pedaço de mundo, você já foi chamado de algumas vezes de naturalista. E chegou a escrever uma coluna semanal, chamada “Natureza”, no Jornal do Brasil, sobre esse tema. Conta um pouquinho sobre isso.
Isso foi uma experiência fantástica, porque quando eu fui para o sítio eu não tinha a menor ideia de como ia sobreviver. Quer dizer, tinha uma vaga ideia de sobreviver como tradutor, mas não tinha nada de muito definido. Eu agi da mesma forma que agi aos 20 anos, quando saí do Rio para Nova York. Eu sempre fui muito impulsivo, muito emocional. A estrutura de um poeta talvez seja composta com ingredientes deste tipo. Eu não pensei nas consequências. Eu estava vivendo um caso de amor lindíssimo que perdura até hoje e achei que até para viver esse amor eu precisava de sossego. E a vida demonstrou que isso era verdade. Mal eu me instalei no sítio, através de um amigo recebi um convite pra escrever uma coluna sobre plantas no Jornal do Brasil. E me pagaram regularmente um salário por mês. Eu não era contratado, não era empregado do jornal, era colaborador, mas recebia um fixo por mês. Era tudo que eu precisava. E pouco tempo depois, um ou dois anos depois, a coluna fez tanto sucesso na época, porque era uma novidade, estava começando a existir no Brasil a preocupação com a ecologia – estou falando do começo dos anos de 1970 – as pessoas estavam começando a ter consciência da importância de lidar com a natureza, que o Jornal da Tarde, de São Paulo, começou a replicá-la, com o nome de “Verde”. Então eu passei a ter dois ganhos mensais fixos, que me permitiram levar a vida que eu queria. Ao mesmo tempo eu estava estudando a vida das plantas, eu vinha muito para a biblioteca do Jardim Botânico do Rio para a parte teórica, e lá na serra, com lavradores da região, eu comecei a aprender, a conhecer as plantas, a saber lidar com elas, a fazer uma horta, plantar as minhas fruteiras. De forma que a vida me demonstrou que quando a gente se decide a seguir por um caminho achando que aquele é o caminho da nossa autenticidade, da nossa vocação, daquilo que vai fazer bem à nossa saúde e à nossa integridade, a vida acaba dando um jeito de ajudar. Se você está com boa vontade, a vida retribui com boa vontade. Então as condições objetivas se criaram. Eu fazia as minhas traduções de livros e eu fazia as minhas duas colunas de jornal. Isso perdurou durante longos anos.
Os elementos da natureza estão sempre presentes na sua poesia, mas você não gosta de ser chamado de um poeta da natureza, no sentido comum do termo. A natureza influi de forma radical na sua poesia, mas de outro jeito…
Eu acho o seguinte: existe uma tradição na poesia ocidental de poesia da natureza, uma poesia descritiva dos aspectos belos da natureza. Eu acho que não é exatamente o caminho que a minha poesia, que o meu trabalho tomou, porque mesmo quando os meus poemas são descritivos há sempre um substrato de pensamento, um substrato filosófico. Eu estou considerando a condição humana também, e a condição de todas as demais espécies vivas. Tem um poema que para mim é muito simbólico sobre isso, que é o “Mulheres de milho”. Eu escrevi ele há mais de 40 anos, e até hoje sei ele de cor. E vou contar porque eu sei esse poema de cor: ele foi escrito dentro da minha primeira roça de milho. Imaginem vocês o moço todo sofisticado na sua primeira roça de milho. Eu morava no Arpoador, tinha morado em Nova York, Paris, Berlim, como falei antes, viajado por toda Europa, e me considerava um moço sofisticado. E a partir da vivência no campo eu descobri que esse moço sofisticado era uma invenção, não tinha nada a ver com a minha verdadeira autenticidade. Eu não era aquela pessoa. Eu estava virando uma pessoa bem-sucedida, tinha um ótimo emprego, ganhava muito bem, gastava melhor ainda, mas não era aquilo que eu queria da vida. Eu entrei na escola da simplicidade. A minha vida foi se simplificando cada vez mais. Imaginem vocês este moço pretensamente sofisticado da cidade pegando na enxada, foi uma das coisas primeiras que eu fiz lá, para plantar uma roça de milho. Aprendi com os lavradores que se abre uma cova para colocar três grãos de milho em cada uma delas, e é preciso de vez em quando capinar o terreno. Os pés de milho são muito frágeis, são caniços muito altos e, para que eles não tombem, de vez em quando a gente tem que ajuntar terra com a enxada na base de cada pé. E eu fiz isso ao longo de três meses. E depois, uma tarde, eu entrei pelo meu milharal e disse “meu Deus, que coisa mágica! Como é capaz uma pessoa de produzir isso?”. O milharal estava todo com espigas, uma coisa linda. Era mais bonito do que um poema. É mais bonito do que palavras. Criei então esta consciência de que a minha poesia não é de natureza. Eu podia estar no mar, em alto mar, ou estar no Ártico. Eu estava numa situação muito diferente. E isso criou para mim essa noção de que é poesia da experiência. Todos os poemas que eu escrevi desde então são baseados numa experiência que eu vivi. Em alguma coisa que eu fiz, ou escalando uma montanha ou fazendo a minha horta. O poema “Contemplação dos seios das beterrabas” diz respeito à horta que eu mesmo fazia. E este poema “Mulheres de milho”, do qual eu falo, é sobre essa tarde quando entrei no milharal pronto, espigado, e o poema bateu inteiro, desceu como se viesse de fora.
Os dois poemas que você citou, “Mulheres de milho” e “Contemplação dos seis das beterrabas”, trazem uma outra característica que perpassa a sua poesia, que é um trato sensual com o entorno, com a natureza…
É curioso, porque outro dia uma repórter foi me entrevistar, fomos lá no sítio, ela visitou tudo, conheceu as minhas árvores, e observou isso também. Ela disse que notava um fundo de sensualidade na minha poesia. Eu disse que, bem, não sei se eu sou ainda, às portas da velhice, uma pessoa sensual. Mas isso é de fato uma característica da pessoa que eu fui, sobretudo na juventude. Acho que a sensualidade era uma das características básicas da minha personalidade. E o envolvimento com as plantas, com as montanhas, com os rios, é sensual, porque é sensorial. O que eu sinto ao estar na natureza há um pouco mais de 40 anos é que eu estou plenamente realizado, mental e corporalmente. Eu estou participando de um todo. Cada vez mais esta sensação é forte e verdadeira dentro de mim. Não há uma divisão, eu estou no mundo. O mundo real, o mundo tal como ele se nos oferece à primeira vista. Tem um poema que também é uma poesia da experiência, porque fala de um pé de caqui que eu plantei quando tinha dois palmos, uma muda. Eu esperei não sei se mais de 10 ou 15 anos para ele crescer, cuidando dele, protegendo-o das formigas e outros insetos. E pacientemente esperei ele crescer e florescer e frutificar. E aí então eu subi no ponto mais alto para pegar um caqui e oferecer à mulher, que é a minha mulher, que estava no pé da árvore. É um poema que tem um título que é uma referência ao livro do Sallinger, que foi uma Bíblia da minha juventude, como de todos os jovens da minha geração: “O apanhador no campo de centeio”. Eu cortei o centeio porque no meu sítio não tem centeio. Aqui no Brasil só no sul. O poema se chama apenas “O apanhador no campo”. Eu acho curioso este poema, porque eu não tinha consciência disso quando o escrevi – escrevi num jato, aliás, como todos os meus poemas a partir dos 30 anos. Eu nunca modifiquei um poema depois, todos os meus poemas publicados são poemas do jato, a coisa vem e os deixo como surgiram, alguns têm vírgulas, outros não, alguns têm maiúsculas, outros não têm, uns têm pontos, outros não têm – e, ao escrever e reler depois o poema sobre o caqui, eu não tinha consciência de uma subleitura que podia existir nele. Mas uma moça, namorada de um amigo meu, que gostou muito do poema, me disse: “Eu acho que este poema não descreve só a subida no pé de caqui para pegar a fruta mais doce. Ele descreve também uma relação sexual”. Eu acredito que todo mundo que for ler esse poema com calma percebe que o homem está em cima e a mulher está embaixo. O caqui mais doce pode ser uma oferenda, a oferenda que o homem faz a mulher. E quando ela me falou isso eu passei a ver isso, e até hoje eu leio este poema e sinto esse subtexto, essa descrição embutida. Que diz muito sobre a sensualidade que realmente existe na minha poesia.
Uma coisa interessante: quando você fala da experiência automática da sua poesia, ela remete ao princípio zen tão importante aos Beats, de “primeira ideia, melhor ideia”. Você traduziu o Lawrence Ferlinghetti, escreveu um ensaio importante para o livro “Alma Beat”, e a sua poesia já foi muito comparada aos Beats. Mas você não se sente inteiramente confortável com essa aproximação, não é?
Muita gente já fez essa aproximação. Eu fui pra Nova York em 1962, e morei naturalmente no Greenwich Village, que era o centro da fermentação da geração Beat. E acredito que há talvez uma certa correspondência entre a vida que eu vivo e a vida que muitos poetas dessa época viveram. Nos Estados Unidos, por exemplo, numerosos poetas posteriores à geração Beat vivem no campo. E os Estados Unidos permitem criar situações para a pessoa poder se dedicar à agricultura. Não só o Gary Snyder, que ficou mais famoso, existem vários outros poetas vivendo na natureza, menos conhecidos, mas que são poetas a vida inteira, publicam seus livros, e foram para o campo e moram recolhidos. Mas o paralelo que pode ser feito é mais entre o tipo de vida pelo qual optei, porque por exemplo os poetas Beats ficaram até o fim poetas da dissidência, críticos da sociedade. São poetas o tempo todo combativos, eles não se enquadram na sociedade americana e eles estão o tempo todo fazendo oposição àquele tipo de vida. Eu, no meu recolhimento, esse aspecto para mim se tornou secundário. Eu acho que a minha poesia se tornou uma poesia mais otimista, menos crítica da sociedade, mais otimista dos valores reais que eu encontro na natureza. Meu interesse pelas árvores, pelas plantas, pelos animais silvestres, sobrepuja a minha falta de integração na sociedade tal como ela está organizada. E eu acho que esse recolhimento pelo qual optei foi uma maneira de continuar vivo e contente com a vida. Porque não adianta eu ficar na cidade se eu discordo praticamente de tudo. Se eu for pensar friamente, toda a organização social me parece uma coisa meio maluca. Atualmente no Brasil a gente vê o quê? É um circo de horrores. Não sabemos aliás para que lado vai o Brasil, que rumo o país vai tomar. Tudo me parece muito esquisito, muito estranho. Então eu acho que para me proteger eu me recolho no campo. E ao me recolher no campo eu descobri que a vida é muito maior do que a vida humana. Não nego o drama humano, mas existe o drama de todas as outras espécies, das formigas, dos tamanduás que comem as formigas, das onças que comem os tamanduás. Então existe uma infinidade de espécies que no meu entender são tão inteligentes quanto nós, cada uma tem um tipo de inteligência. Eu não acredito nessa história de que existem seres racionais, que somos nós, e que os animais são irracionais. Um cachorro é irracional? Um gato é irracional? Eu assisti há dias lá no sítio a uma coisa muito curiosa. Tem muito mico lá, aqueles macaquinhos pequenos, né? Têm pouco mais de um palmo. E tem muito jacu. Não sei se conhecem, o jacu é um galináceo entre um galo grande e um peru. Um galináceo grande, preto. Voa, mas cisca também como galinhas na terra. Tem um pedregulho próximo à casa onde colocamos bananas para os micos, e assim fizemos neste dia. Enquanto os micos se aproximavam das bananas, um jacu grande, várias vezes maior que os micos, se aproximou pra avançar nas bananas destinadas aos macaquinhos. E o que fizeram os macaquinhos? Um só deles não poderia combater o jacu. Então juntaram-se cinco ou seis e avançaram, cada qual saindo de um ponto, simultaneamente, contra o jacu, e expulsaram a ave. Ora, os micos vão à guerra. Eles se organizaram como batalhões humanos e conseguiram expulsar o jacu. O jacu foi embora, saiu gritando com medo dos micos. Então, quando a gente presencia fatos como esse, se eu fosse contar todos os fatos que me revelam que cada bicho tem o seu tipo de inteligência que o adapta, senão ele não sobrevivia. Não foram só os humanos que tiveram este privilégio. A mágica da natureza é essa. Se a gente pensa na vida social das abelhas, por exemplo… Há um livro famoso do Maurice Maeterlinck sobre isso. A vida das abelhas, a vida sexual das abelhas, é tudo de um primor, é uma organização social tão perfeita. Inclusive não há abelhas corruptas como entre as sociedades humanas. A coisa funciona, cada abelha colaborando com a outra. Eu acho que existem tipos de inteligência animal que talvez até ultrapassem a nossa.
E como é a sua relação com o montanhismo?
Estar na natureza, e estar na natureza em Petrópolis, é estar nas montanhas. Petrópolis é cercada de montanhas. E eu já fiz algumas vezes a travessia pela cumeada da serra, a pé, entre Petrópolis e Teresópolis. E é uma das coisas mais bonitas que já tive o privilégio de fazer na vida. A última vez foi quando eu completei 70 anos e pedi aos meus dois filhos, que são guias: “Quero de presente de aniversário que vocês me guiem na travessia de Petrópolis à Teresópolis”. E assim foi feito. Foi o presente que eles me deram, e foi uma coisa maravilhosa porque eles hoje já estão por volta dos 40 anos. Mas eles começaram a subir montanhas comigo quando tinham de 11 para 12 anos. É claro que os filhos costumam ir bem mais longe que os pais. Hoje eles devem já ter escalado todos os principais cumes da América, dos Estados Unidos até a Patagônia. Não foram ainda, graças a Deus, ao Everest. Mas são especialistas e são guias de montanha diplomados, embora sejam engenheiros de profissão. Uniram o amor pela natureza à tecnologia da qual eles vivem e de que eles gostam também. Subir montanhas… Uma das vezes que eu subi, havia lá outro grupo e alguém perguntou a um cidadão que estava em cima de uma pedra, em destaque, vestido de uma maneira muito curiosa, adornada, “por que você gosta de subir montanha? Por que é que você vem aqui?” E ele respondeu, “porque eu fico mais perto de Deus”. Eu achei tão bonita a resposta dele. Ele estava no alto. Não é o meu caso. Eu escrevi um poema, que diz respeito a isso, a essa experiência que eu mantenho até hoje de subir morro. A gente pensa que é gratuito, mas não é não. É um prazer extraordinário. Dormir no alto das montanhas, onde cessa todo rumor. A partir de 1.500 metros você não ouve nem mais passarinhos piando. Os pássaros não voam tão alto, não chegam até lá. Já não há quase vida animal, a vegetação é rasteira, não há mais árvores grandes que façam rumor ao sabor do vento. Só o capim que se alastra pelos picos mais elevados. Então é um silêncio total, absoluto. E você deitar numa noite estrelada e sentir o universo como se você estivesse penetrando no universo é uma experiência fora do comum, que apazigua qualquer mente, ainda que doentia. Não é o meu caso. Pelo menos se eu me comparar, porque acho que há mentes bem mais doentes que a minha. O poema de que queria falar se intitula naturalmente “Introdução a arte das montanhas”.
Esse poema vem de uma experiência muito concreta também, não é? Seria interessante se você contasse sobre isso, para ilustrar como é que a experiência se transmuta em poema…
Este poema eu acho que também permite ser interpretado, pode ser a descida da vida, chegar à velhice. Mas na verdade ele está descrevendo uma situação concreta que eu vivi, ao escalar o pico da Maria Comprida, que é um cone de granito de 1.900 metros. Eu estava num grupo, meus filhos juntos, e lá é muito árido, só tem vegetação na base. A gente sobe sem parar, era um dia muito quente e eu comecei a morrer de sede na subida. A gente leva cada um o seu cantil com água. E distraidamente eu bebi toda a minha água na subida. Na descida naturalmente eu também senti sede. E só não morri de sede graças à caridade alheia, porque cada um dos membros do grupo me dava uma golada. Então eu não tinha aprendido a descer ainda. Eles já eram mais experientes do que eu e mais previdentes, cada qual conservou uma parte da sua água para a descida. E com isso eu aprendi alguma coisa: não basta subir, é preciso aprender a descer. E a vida é tão cheia de altos e baixos, é tão sinuosa, que é preciso a gente saber também estar por baixo. Isso me recorda um tema que me é muito caro: como poeta eu sou muito curioso das inscrições que as pessoas costumam, sobretudo os mais jovens, usar nas camisetas. Costumo ler e tentar compreender que mensagem aquela pessoa que usa uma inscrição na camiseta quer passar. E há poucos dias em Petrópolis, andando pela rua no centro da cidade, passou uma moça por mim que tinha uma inscrição de uma simplicidade total. Dizia apenas “viver bem”. Aquilo bateu fundo para mim. É isso que eu tenho querido ao longo da vida. Eu não vou falar de felicidade, porque felicidade é uma palavra muito comprometida, muito pervertida pela propaganda, que diz que a felicidade é você comprar um carro novo, é você comprar um apartamento maravilhoso, é você comprar um iate, um helicóptero. É comprar, comprar, comprar, para ser feliz. E para mim não. Para mim é uma sensação interior. É eu me sentir bem, sentir que eu estou vivendo bem de acordo com as minhas necessidades. E é claro, como as pessoas são totalmente diferentes umas das outras, que viver bem para cada um significa alguma coisa diferente. Pode ser que para alguma pessoa seja o acúmulo, a sociedade na sua forma mais comum hoje, que é voltada para a aquisição. E essa pessoa só consegue viver bem dessa maneira. Não é o meu caso. Então eu troquei esta palavra felicidade pela palavra contentamento. Eu acho que o importante é que cada um de nós viva contente. Respondendo à inscrição que a moça conduzia no peito, eu tenho que me sentir contente com aquilo que me é dado. Aquilo que a vida me deu, não considero que seja um ganho do meu esforço, é um presente que a vida dá a cada um de nós. Esta consciência eu acho que muitas vezes se perde e eu a tenho cada vez mais vívida, uma gratidão infinita por tudo aquilo que eu tenho recebido. A começar por uma quantidade enorme hoje de amigos, todos mais jovens que eu e todos maravilhosos.
Leonardo, no seu sítio tem uma grande figueira, que você já chamou de “árvore galinácea” num poema, que é bastante imponente, abraçando uma pedra. Ela me parece muito importante para você. Por que?
É uma figueira monumental, uma das poucas árvores que nós encontramos quando compramos o sítio. Quando eu conheci a minha mulher, Regina, ela era uma moça muito elegante da cidade, vivendo em um apartamento muito confortável. Não era burguesa, nunca foi. Mas, enfim, uma moça de alto luxo. E quando eu fiz a proposta de ir viver no sítio, ela me acompanhou, vivíamos um caso de amor. Ela deve ter achado que era uma proposta meio louca, mas talvez o amor também fosse louco. E lá fomos juntos. E a primeira vez que chegamos ao local, nós tínhamos um jipe na ocasião, o jipe foi quebrando pelo caminho, era para chegar no começo da tarde, chegamos umas nove da noite. Era uma lua cheia. Tem uma pedreira no fundo do sítio e a lua estava despontando por cima da pedreira. Bateu um negócio. Eu disse “é aqui”. Eu estava há um ano procurando terreno. E eu disse “é aqui. Esta lua eu compro, eu quero ficar aqui, achei o meu lugar na terra”. E parece que era verdade. Mas aí voltamos dias depois com dia claro para poder andar um pouco, era um matagal danado, o capinzal crescendo porque os bois já estavam se afastando de lá, e a Regina passeava na beira do rio quando esbarrou num galho e foi mordida por micuim. O micuim é o menor dos carrapatos, ele é muito pequenininho, é uma coisa minúscula. E ela saiu de lá, às vezes a gente não percebe na hora, com as coxas todas tomadas de micuins e ficou horrorizada. Ela me disse “não vou morar lá de jeito nenhum”. Aí eu tive que fazer todo o trabalho posterior de convencimento e depois ela se curou do micuim e acabou concordando e fomos muito felizes, somos muito felizes até hoje lá. E havia apenas duas grandes árvores em pé. Um pé de jacaré, que é a árvore mais típica da região, já bem antiga. Esta deu milhares de sementes ao longo dos mais de 40 anos que nós estamos lá, e então hoje existem dezenas de pés de jacaré que são filhos desta grande árvore. E a outra é a figueira que é monumental. Eu imagino que aquela árvore tenha mais de 400, 500 anos, porque ela é muito grande. E ela se amarrou numa pedra, um pedregulho. Ela nasceu ao lado do pedregulho e a cada ano que passa as raízes estão fazendo algo como uma paliçada, envolvendo dia a dia mais a pedra. Ou seja, ela é tão inteligente que ela pôs uma âncora de granito na base pra não ser açoitada e derrubada pelos vendavais. Quando venta, ela está na beira do rio, ela sofreria sempre esse perigo de ser derrubada pelo vento se ela não estivesse tão firmemente ancorada no pedregulho. É lindo o fenômeno. E era lá, perto dessa figueira, que eu fazia a minha horta. Já não faço mais porque a família hoje se resume apenas a nós dois, e uma horta é muito trabalhosa para duas pessoas. É um luxo que não se justifica. Mas quando tínhamos a família maior, os filhos em casa, meus pais vivos, os pais dela vivos, a gente plantava para as duas famílias. E eu até fiz um poema, que também é poesia da experiência, que surgiu de um dia em que eu estava cuidando da minha horta que era próxima a essa figueira, e ela vai aparecer no poema mencionada como uma árvore galinácea, como se ela tivesse posto um ovo de pedra. O poema se chama “Contemplação dos seios das beterrabas”. E aí há algo também talvez de sensualidade, né? Porque as beterrabas são seios…
A sua poesia é muito marcada também pelo humor, um humor muito peculiar. Que está no seu trato no mundo, não é?
Eu acho que você disse uma coisa muito certa. Muito moço, um grande amigo meu me disse: “Eu gosto de você porque você não se leva a sério”. Eu realmente não me levo a sério. Eu acho que talvez seja um dos maiores problemas dos seres humanos, sobretudo esses muito engravatados, os políticos, você sabe o que eu estou falando: as pessoas parece que se confundem com a sua imagem e acham que são sempre pessoas extraordinárias, belas, belas, belas. Eu sinceramente não me sinto assim. Eu me sinto cheio de defeitos e imperfeições como qualquer pessoa. E o trabalho de poesia para mim não é só escrever. Poesia é um trabalho interior. Eu quero me transformar em gente, eu quero ser uma boa pessoa, eu quero ser uma pessoa correta, eu quero ser uma pessoa que tenha prazer em se encontrar na solidão e não tenha queixa, só seu próprio respeito. Isso é um trabalho que leva a vida inteira. A poesia para mim é um instrumento pra chegar a isso. Não é um enfeite na minha vida, é o meu trabalho pessoal, como eu disse no início, para me transformar em pessoa. Isso é uma coisa muito séria, é um trabalho que eu acho que cada um de nós está executando o tempo todo, quando a gente se vê com boa vontade. Mas claro que não me levo a sério, porque eu sei que a minha própria consciência pode me trair muitas vezes, a minha própria consciência pode me enganar. É preciso ouvir a voz da espécie. É preciso ouvir uma consciência superior à minha para que eu me toque de eventuais imperfeições. E não se levar a sério redunda nisso: a minha poesia tem frequentemente, se não o tempo todo, um lado irônico muito acentuado. Eu brinco muito com as palavras. Muitas vezes eu afirmo uma coisa que na linha seguinte é desafirmada. É sempre no reino do pode ser, do talvez, nunca são afirmações peremptórias, porque eu nunca creio que se possa fazer afirmações assim, a vida é mudança. A cada atitude que a gente toma corresponde uma mudança, e a gente tem que ser muito flexível.
Para além de poeta, você é um tradutor reconhecido, um dos mais conceituados em atividade. Você parece seguir, na tradução, uma linha mais fiel aos originais, ao contrário de escolas como a da “transcriação”, dos poetas concretos…
A tradução a princípio foi apenas um meio de ganhar minha vida. Durante muitos anos eu traduzi enciclopédias. Tradução de enciclopédia é uma coisa em que você não pode mudar nada, tem que ter uma fidelidade absoluta. Você passa apenas as informações de uma língua para a outra. Mas a enciclopédia tinha grandes vantagens pra mim. Primeiro que pagava muito melhor do que a tradução de livros. E segundo que era um trabalho constante. Uma enciclopédia levava às vezes dois ou três anos em produção, e portanto eu tinha trabalho garantido por aquele período todo. E foi uma ótima escola, porque ao contrário dos irmãos Campos, não há crítica nenhuma nisso, eu acho que há vários caminhos na tradução, mas a minha escola, o que está muito baseado nessa experiência como tradutor de enciclopédias, é a da fidelidade. Eu procurei sempre, ou quase sempre, seguir tanto quanto possível o original. Sempre me sentir inferior ao original. Não quis nunca me sobrepor a ele. Há uma escola de tradução em que os tradutores tentam se sobrepor ao texto original. A minha posição foi sempre muito mais modesta, como se eu fosse um instrumentista que tem que seguir uma partitura. Eu sou apenas o executante da obra, mas eu tenho uma partitura, que é o original na língua da qual eu traduzo, e tenho que tentar fazer o mais próximo do que o autor quis, o compositor quis. Não vou fazer brilhos extra-originais. Mas, como dizia, para mim foi só um meio de vida. Eu nunca me preparei profissionalmente para ser tradutor. Mas depois de ter vivido seis anos no exterior, depois de ter estudado línguas desde os 11 anos de idade, no meu colégio nós estudávamos seis línguas estrangeiras, a começar pelo latim, que abre as portas para as línguas neolatinas, quando voltei pro Brasil eu vi que eu tinha condição de me tornar um tradutor. E era o trabalho que eu queria quando resolvi deixar de ser editor para poder viver fora do Rio. Um tradutor pode viver em qualquer lugar, ele faz trabalho em casa. E aí passei a traduzir muitos livros. Mas a maioria, a quase totalidade dos livros que eu traduzi me foram encomendados pelos editores. Não eram sugestões minhas. Por sorte minha, eu era considerado um bom tradutor, e sempre me encomendaram bons autores para traduzir. Faulkner, Swift, Virginia Wolf. Enfim, autores que mereceram o meu esforço. Com os quais eu aprendi muito. Porque a cada autor desses que eu traduzi, eu não me limitei a botar um livro que era traduzido ao lado e recriá-lo em português. Eu estudei cada um desses autores. Eu li quase tudo que eu pude deles e muito sobre eles. Por exemplo, Swift. Os textos mais antigos do Swift que eu traduzi datam do século 17. Eu não podia traduzir impunemente. Até pra quem é da língua inglesa é difícil traduzir Swift. Eu tive que estudar o assunto para poder fazer as traduções. Eu traduzi quase cem livros, mas há um pequeno grupo de livros a que sou muito apegado, que foram iniciativas minhas. São livros como os Sonetos da portuguesa, de Elizabeth Barrett Browning, e o de Contos orientais. Ao todo são sete ou oito livros, quase todos de tradução de poesia. São livros de autores e temas que me fascinaram, e eu levei os livros já prontos para as editoras. Algumas vezes fiz tudo, até a quarta capa, a orelha, porque eu tenho prática disso, por ter sido editor. Eu tenho um carinho muito especial por esses livros, porque os considero parte da minha obra. Por exemplo, no caso dos Sonetos, eu quase não escrevi em versos rimados e metrificados na minha própria obra, e no entanto eu aprendi metrificação quando jovem, era parte do meu currículo de português. E o conhecimento que eu tinha de metrificação eu pude utilizar na tradução desses poetas antigos, Goethe, Shelley e Browning. O livro da Elizabeth Browning tem 44 sonetos. Eu nunca escrevi um soneto, mas eu consegui traduzir em forma de soneto. Então são os meus sonetos em português, os únicos que consegui fazer. Mas foi um trabalho muito curioso, porque é uma mulher se dirigindo a um homem. É uma história extraordinária de amor entre dois poetas, Robert Browning e Elizabeth Barrett Browning. Nesses sonetos ela está escrevendo para o amado. É evidente que eu tive que me colocar na posição da mulher. Eu tive que me considerar na voz feminina, para conseguir fazer com alguma eficiência a tradução dos 44 sonetos. É um trabalho pelo qual eu tenho uma consideração muito grande. Outro livro por que tenho muito apreço é o de contos orientais. São contos muito antigos da Índia, da China, do Japão e da Coreia. Não se assustem, eu não conheço essas línguas. Eu conheço todo esse material em versões para quatro línguas ocidentais nas quais eu leio: inglês, francês, espanhol e alemão. Os materiais são muito antigos. Os mais antigos datam dos primeiros anos da era Cristã, e muito frequentemente ou quase sempre ou talvez sempre não há só uma recensão, não é só uma versão do conto original. São contos que vêm da tradição oral. São contos populares, em última análise. Só uns três ou quatro têm autores identificados. Aí é material que já chega pelos séculos 17 e 18 da nossa era. Mas a grande maioria são textos muito antigos e que às vezes eu conheci em diferentes traduções. Às vezes, eu tinha o mesmo material traduzido para o francês, inglês, espanhol ou alemão. Então não havia um original único. E neste caso foi a grande libertação do tradutor fiel. Eu fiz adaptações. Eu juntava às vezes duas ou três traduções e fazia a minha versão em português contemporâneo. Sendo um material tão antigo e sem autoria identificada eu acho que foi um procedimento válido. Eu adoro as histórias. Eu li mais de 2 mil contos orientais pra fazer um livro que tem, não sei, menos de 100 textos. São contos muito curtinhos. Esses materiais são tão trabalháveis hoje que um dos contos de que eu gosto muito, que se chama “Cabeças cortadas” e é da antiga Índia, o Thomas Mann adaptou também para o alemão. E aí pode-se ver a diferença entre um poeta e um romancista. A minha versão em português ocupa duas páginas ou duas páginas e meia. A versão de Thomas Mann se estende por 126 páginas. É a diferença entre um romancista e um poeta…
Como você tem visto a questão ecológica hoje? Você sempre esteve muito vinculado a esse florescimento do pensamento ecológico no Brasil. Como você vê, por exemplo, o crime ambiental que aconteceu em Mariana, no Rio Doce, ano passado, causado por empresas de mineração como a Samarco e a Vale do Rio Doce?
Olha, eu, como todo brasileiro de bom senso, acho que foi um absurdo completo. Aliás, pelas informações que obtive pela leitura dos jornais, a empresa já sabia que havia uma fissura na barragem, que havia a ameaça de rompimento da barragem, e não tomou providência nenhuma. Eu vivi esse problema em escala muitíssimo menor em Secretário, onde eu tenho meu sítio, porque um proprietário de terras da região, um homem rico, por mero deleite resolveu fazer uma represa. Uma represa de terra. Muitas represas são só de terra, né? Não têm muralhas de pedra, a terra compactada e com uma boa extensão, bem larga, é capaz de conter uma grande superfície de água. E este homem fez isso sem uma finalidade clara, uma grande represa exatamente na estradinha que conduz ao meu sítio. E ali não criava peixe nem nada. Eu não sei o que ele queria fazer com a represa. Ficou apenas uma água represada do rio que passa abaixo do meu sítio. E a represa, numa noite de temporal muito violento, se rompeu. A vila de Secretário se estende às margens do rio, fica a cerca de um quilômetro do local onde foi feita a barragem, numa situação idêntica à de Mariana. Só que eu vivi isso lá em microcosmo. E uma bela noite de tempestade a represa de barro se rompeu a as casas da cidadezinha foram todas inundadas. Felizmente ninguém morreu. Mas bicicletas, fogões, objetos das pessoas foram arrastados pelas águas. Animais domésticos, cachorros, porcos. Enfim, foi uma tristeza na cidadezinha. E nunca mais essa represa foi restaurada, graças a Deus. Agora, o que eu penso é o seguinte: o Brasil inteiro está sendo escavado. A mineração no Brasil é uma coisa chocante. Não sei se vocês já tiveram oportunidade de ver campos de mineração, áreas de mineração. São uma coisa dolorosa. Porque a noção que eu tenho de lidar há tantos anos com a terra é que a terra é um organismo vivo. Ela mesma, o planeta, para mim, e a sua superfície. E isso a gente sente de uma forma muito forte quando a gente tem que lidar para plantar. São coisas que a gente tem que fazer. Se você quer sobreviver, você tem que plantar a sua comida. Mas, quando você dá uma enxadada na terra, você tem a nítida sensação de que você cortou, como se cortasse um corpo vivo. Você cortou, você provocou ali um ferimento na terra. Essa sensação para mim é muito forte e muito verdadeira. É preciso viver, mas eu acho que qualquer pessoa que viva essas experiências que eu tenho vivido vai chegar a essa mesma conclusão. Então, quando eu passo ao longo de uma estrada, por exemplo, eu vejo que os morros, não preciso chegar nem ao drama da mineração, a gente vê que os morros foram fatiados. Os morros são arredondados, os morros têm forma de seios e de bundas. E eles são fatiados, para que as estradas possam passar, naquelas escadinhas. A engenharia faz isso com muita perfeição, mas é uma deformação. É como se você cortasse seios ou bundas de um organismo humano, fizesse-os geométricos. Então é o problema eterno, que eu acho que a tecnologia enfrenta ao lidar com a natureza. Eu não sei como resolver isso. Eu não entendo nada de economia. Não sei como. Eu acho que uma das soluções seria a humanidade consumir menos. Usar mais. Os carros, por exemplo, são feitos para durar três ou quatro anos. Todo mundo troca de carro a todo ano. Meu carro tem quase 10 anos de uso. Eu sempre usei o carro como escova de dente, até acabar. Nunca troquei de carro todo ano, para mim aquilo é um objeto de uso. Eu uso ao máximo, enquanto ele estiver andando eu vou usando o mesmo carro. Agora há um hábito, eu acho que é um hábito de consumismo, que você tem que estar sempre com um carro novo, cada dia um carro melhor. O meu é um carro popular, dos mais baratos que existem. Eu me dou por muito contente por poder ter um carrinho popular, não preciso mais do que isso. Então eu acho que talvez isso entre em questão. As pessoas precisam trocar de geladeira todo ano, trocar de televisão, porque vem mais um modelo mais avançado de televisão. E aí então eu acho que a mineração vai ter que continuar. Porque estão exportando minério para a China, tão fazendo não sei mais o quê. Mas eu acho um crime o que aconteceu em Mariana. Um crime não só contra os habitantes da cidadezinha que estava lá, os que foram soterrados pelo lamaçal, como também contra um rio, o rio Doce, contra todos os animais que viviam na região e as plantas que vivem na região.