A entrevista com LoveLove6 foi realizada durante a pandemia de Covid-19, em 2020. Por isso, foi uma conversa à distância, mas que durou mais de três horas de trocas de ideias férteis e felizes. Abaixo, segue um fragmento da entrevista, onde a autora reflete, sempre com brilhantismo, sobre a sua obra, o contexto político e também sobre a linguagem de quadrinhos.
Como foi que surgiu a Garota Siririca?
Foi um pouco depois. A galera da Samba decidiu fazer a última revista Samba, que era uma antologia de quadrinhos, e precisava de uma assistente para lidar com as questões burocráticas e administrativas do financiamento coletivo que eles fizeram para imprimir a revista. Aí, eu me ofereci e eles me chamaram. Eu organizei todas as planilhas, fiz os envios para os apoiadores, ajudei a empacotar tudo. E trabalhava no ateliê deles, que era um escritório coletivo com várias pessoas que trabalhavam na área criativa. O Gabriel Mesquita e o Lucas Gehre faziam especificamente quadrinhos. Foi uma experiência super rica e divertida. A gente conversava muito sobre quadrinhos e arte. E eles acabaram me convidando para publicar uma série no blog da revista Samba. Eu já estava com a ideia de fazer a Garota Siririca, então comecei a publicar ela lá. Toda sexta-feira eu publicava uma página. Eu cheguei a publicar uma história da Garota Siririca antes, numa zine chamada Falafel, do Elvis Almeida e da Mariana Moyses. Mas virou uma série mesmo quando comecei a publicar na revista Samba.
Você conta que quando decidiu publicar um livro da Garota Siririca, foi um desafio, porque você tinha pensado toda a arte para a internet. Como foi isso?
O que aconteceu é que, quando eu comecei, eu decidi fazer a Garota Siririca muito motivada a explorar o tema dela, é claro, mas também em estudar as estruturas convencionais de quadrinhos. Eu já fazia zines, mas não costumava utilizar essas estruturas dos quadrinhos, era um formato mais livre. E tem um crítico, o Ciro Inácio, que faz o site Raio Laser, que também foi meu professor na faculdade. Ele um dia disse que o que eu fazia era protoquadrinhos. E isso foi uma provocação para mim. Então eu decidi fazer quadrinhos mesmo, com toda a estrutura clássica, para ele ver que eu conseguia.
Mas eu não pensava em imprimir um livro da Garota Siririca. E, já que eu não tinha esse plano de colocar a Garota Siririca no papel, uma das grandes questões em torno da Garota Siririca foi as cores: eu decidi buscar uma paleta de cores que fosse maravilhosa na tela do computador. Tinha aquele verde quase fosforescente, um rosa incrível, um amarelo incrível. E depois de mais um ano publicando na internet, quando eu decidi finalmente imprimir, descobri que era impossível de reproduzir aquelas cores dentro das nossas possibilidades. A gente até tentou comprar um Pantone, ma lá em Brasília não deu certo. Eu cheguei a precisar reimprimir a primeira edição da Garota Siririca, devolvi os primeiros mil livros pra gráfica, por causa das cores.
E também, como eu ainda estava começando a minha experiência em quadrinhos, os originais variavam muito de tamanho e de material. Às vezes eu fazia o original em qualquer lugar. A partir dessa experiência com a Garota Siririca, eu fiquei muito mais atenta a essas questões técnicas, de pensar os suportes, do que seria impresso e do que seria específico para a internet. Eu tenho pensado muito sobre isso atualmente: as redes sociais, especialmente o Instagram, estão determinando o formato em que os quadrinistas produzem. Está todo mundo produzindo em formato quadrado. E isso na hora de imprimir vira uma questão. Fica difícil depois de se pensar um projeto gráfico razoável, porque a gente está produzindo muito para os formatos pré-estabelecidos das redes sociais.
E as redes sociais vão morrendo e sendo substituídas. Para onde vai esse conteúdo todo, no fim das contas? Não serve nem como banco de registro, porque eventualmente são apagados. Alguns sites saem do ar, deixam de guardar os conteúdos. Eu tenho pensado muito a respeito disso e de como resistir a isso. Eu tento não produzir no formato da rede social, mas adaptar depois as coisas que estou fazendo para serem legíveis nela. A Sheiloca, o livro que lancei em dezembro de 2019, eu já fiz pensando no formato especificamente impresso. Os orginais são do tamanho da página do impresso. Mas eu adaptei o formato para uma leitura confortável dentro das redes sociais. E tudo isso eu fui aprendendo a partir dessa experiência com a Garota Siririca, que trouxe uma série de desafios.
A rede social traz outra questão, além dos formatos pré-fixados (que, no fim, é uma característica de qualquer mídia): a resposta imediata. Porque, antes, quando você fazia uma produção e apresentava ao público, havia um feedback, uma resposta crítica favorável ou negativa, mas isso demorava um tempo, e o seu trabalho poderia até incorporar essas respostas, mas de uma forma menos contundente. Hoje, a resposta é tão no calor da hora qe às vezes afeta a produção em si. Como você tem interagido com isso?
Eu experienciei muito isso durante a Garota Siririca. Eu publicava uma página por semana e na verdade eu não tinha roteiro prévio, toda semana resolvia o que ia acontecer. E foi uma grande loucura em termos de processo criativo. As pessoas me respondiam bem prontamente, assim que eu postava já surgia comentários. E, naquela época, eu ainda estava me envolvendo com as questões feministas e com questões técnicas de quarinhos, então foi muito desafiador lidar com esses feedbacks imediatos.
A respeito especificamente da Garota Siririca, nas primeiras semanas eu sofri críticas bem severas de outras feministas a respeito de, por exemplo, parecer ser algo falocêntrico. E sabe como vem o feedback na internet, né? Não é exatamente um formato gentil e construtivo, é bem agressivo e violento mesmo. Mas eu me esforcei bastante para pegar essas críticas, nos formatos que elas vinham, e pensar no conteúdo. É uma preocupação que tenho em geral na minha vida, de ser receptiva a críticas. Por um lado é sofrido ouvir as coisas daquela forma, mas no fim acredito que é um aspecto positivo, de publicar a coisa na rede social e poder ter resposta simultânea. Isso me permitiu tomar decisões que, depois, pensando em retrospectiva, foram importantes para a qualidade da história. Tomei decisões importantes que me atentaram para coisas que naquele momento eu não estava madura o suficiente para conseguir perceber sozinha.
Como eu era uma nova autora, ainda estava me introduzindo em tudo, tanto no rolê dos quadrinhos quanto do feminismo. Eu levava muito em consideração as expectativas e críticas dos leitores da Garota Siririca. A história foi muito desenvolvida a partir dessa experiência de troca com o leitor. Depois, com o passar do anos, na Sheiloca eu aprendi a brincar com essas expectativa e desconfortos dos leitores. Eu já estava mais estudada no feminismo e nas histórias em quadrinhos, mais acostumada com as relações de dinâmicas de públicos na internet. Então, eu já consegui jogar com isso. Já pensava nas expectativa e reações do público e conseguia contradizer isso de propósito em alguns momentos, para gerar outras provocações e interpretações. E para deixar o bicho comer, também.
Eu publiquei as páginas da Sheiloca enquanto produzia, mas algumas vezes deixei de responder ao que o público comentava. Deixava a galera falar. Isso tem a ver com o meu amadurecimento como autora: as expectativas do público não influenciaram o que aconteceu com Sheiloca. Eu já sabia onde queria chegar, gostasse o público ou não. Já estava bastante segura das mensagens que queria passar e da história que queria construir. O próprio processo foi diferente da Garota Siririca, porque eu já tinha o esqueleto do roteiro e sabia onde ia dar. O processo criativo foi muito mais controlado.
Como foi a recepção da Garota Siririca? Porque a questão da masturbação feminina é até hoje um tabu, e era ainda mais na época que você começou a publicar. E tem também a coisa da representação do corpo feminino, que você faz fugindo dos padrões de quadrinhos.
Essa foi uma questão importante. Eu já tinha uma noção um tanto superficial, mas já pensava a respeito de como representar o corpo da mulher. A Garota Siririca eu fiz bem movida por uma provocação íntima e pessoal minha, porque eu demorei muito tempo para descobrir a masturbação e ter prazer sexual, ter um orgasmo. Eu só fui ter um orgasmo quando comecei a me masturbar, e eu já tinha mais de 20 anos! Eu achei simplesmente bizarro isso. Como eu já estava conhecendo o feminismo, tinha uma certa noção do motivo de isso ter acontecido, que não era necessariamente um problema anatômico meu, que era até então o que as pessoas me diziam que era a questão.
Quando fui fazer a Garota Siririca, uma das primeiras coisas que eu pensei foi na diversidade de corpos, que já era uma coisa básica e urgente para se ter em histórias em quadrinhos. Mas também fiz pensando muito em que história em quadrinhos eu gostaria de ver como leitora. Eu gostava muito de quadrinhos eróticos, mas não tinha um quadrinho erótico que eu pudesse me identificar, que discutisse realmente questões que não tivessem só o objetivo de excitar o leitor. E daí, na Garota Siririca, eu vejo muita referência dos quadrinhos norte-americanos dos anos 1980, desse feminismo quase esdrúxulo. E penso muito no Crumb, embora seja uma resposta ao tipo de quadrinhos erótico que o Crumb fazia.
Eu tenho uma coletânea de quadrinhos feministas dos anos 1980 e 1990, chamada Tits and Clits, com uma estética que me interessava. Eu queria pensar a pornografia feminista. Que é outra grande polêmica, um tabu dentro do movimento feminista. Então, eu tomei essa decisão de que a Garota Siririca seria explícita, pornográfica mesmo. E tinha motivos para isso. Um dos prinicipais era revelar mesmo o que era uma buceta, porque ninguém sabia. As próprias minas não tem noção muito bem da própria anatomia. E é uma coisa que a gente não vê anatomicamente desenhada nesse produto cultural que são os quadrinhos.
Então, tomei essa decisão, como se fosse algo didático mesmo. Mas também teve muito a ver com pensar o público, no sentido de que a Garota Siririca foi feita especialmente para leitoras. Embora a questão pornográfica tenha atraído também muito homem. Os homens se sentiam curiosos a respeito da Garota Siririca, porque era um conteúdo pornográfico, mas na hora que eles abriam a Garota Siririca, não era o que eles estavam acostumados, algo que estava sendo feito só para excitar eles, para ser prazeroso visualmente para eles. O que era interessante. Eles tinham esse confronto, esse conflito com a ideologia que estava inserida naquela linguagem pornográfica.
Eu considero que a Garota Siririca é uma pornografia feminista. Tem mulheres que dizem que nem existe isso de pornografia feminista, que é impossível. Mas na verdade é isso que está acontecendo ali.
No Sheiloca, a questão LGBTQIA+ está mais explítica, mas a pornografia é discutida de outra forma, não é?
Na Sheiloca, eu diria que, apesar de ser mais explítica em alguma questões, ela não é realmente pornográfica. Eu relaciono o termo pornográfico com a representação explícita da relações sexuais. Ou eróticas. Sheiloca, na verdade, apesar das personagens estarem nuas o tempo inteiro, em nenhum momento são contextos erotizados. Essa foi uma coisa que trabalhei conscientemente. Os momentos de intimidade sexual das personagens não aparecem. São ocultados, na verdade. Tem um momento em que a Fedora e a Amapô tem um encontro sexual e o que a gente vê são as estrelas. Dentro de uma história em que ela andam nuas o tempo inteiro.
Eu quis fazer essa provocações, essas brincadeiras com o corpo. Com o modo como a gente vê o corpo em si como uma coisa pornográfica, mas na verdade ele não é. Na Sheiloca, a nudez das personagens é completamente naturalizada. As personagens se abrem umas para as outras, falam a respeito de sexo, mas não existe sexo explítico na Sheiloca. Eu fiz a Sheiloca querendo trabalhar com algumas questões feministas que me provocavam pessoalmente, mas também quis experimentar criar uma distopia, fazer esse exercício de imaginar uma sociedade só de mulheres, que é uma grande utopia feminista, que já foi trabalhada por muitas autoras ao longo dos tempos.
Eu fui atrás dessas referências. Tem uma autora cearense que em 1890 criou um livro chamado A Rainha do Ignoto. Ela se chama Emília Freitas, e creio que foi uma das primeiras, dentre as referências que eu descobri, que fez esse exercício no Brasil. Tem a Monique Wittig, que mais recentemente fez As Guerrilheiras. E tem A Terra das Mulheres, da Charlotte Perkins, que é de 1920. Sem contar a Ursula Le Guin, que fez A Mão Esquerda da Escuridão, que não é uma sociedade de mulheres, mas onde ela trabalha essa sociedade de seres que não têm gênero. E isso tem um pouco a ver com a Sheiloca também.
Então, na Sheiloca, o meu interesse era tanto participar dessa tradição histórica de feministas imaginarem essa sociedade só de mulheres, quanto pensar uma sociedade que não fosse utópica, mas sim distópica. Porque o meu interesse era provocar umas questões que não estão sendo resolvidas dentro do feminismo. Como, por exemplo, a questão da transexualidade. Toda essas sociedades antigas só de mulheres determinam que são mulheres com vulva. A partir daí, eu também quis pensar como isso funciona no mundo que estamos, e decidi fazer uma brincadeira dialética dentro da Sheiloca, de que elas não são mulheres, porque não existe mulher no universo da Sheiloca, elas são manas. Tendo ou não uma vulva, os seres ali são manas.
É neste lugar que entra a Amapô, que é uma personagem que, a partir de nossos conceitos atuais, é trans. Mas, dentro da sociedade da Sheiloca, do universo da Sheiloca, ela é uma mana como todas as outras, mas com uma configuração anatômica diferente. Isso não impede que, no universo dessas manas, ela sofra algum tipo de discriminação. Ela acaba isolada do grupo de manas, mas em nenhum momento é colocada como uma pessoa trans ou uma pessoa de natureza masculina.
Eu fiz questão de tratar com muita atenção o corpo da Amapô em toda a história, pensar o que mostrar e o que não mostrar do corpo dela. Para o leitor, tudo se resolveria se eu mostrasse um nude da Amapô, se fosse possível ver o que é o órgão sexual dessa personagem. Essa é uma das grandes questão que pessoas cisgêneras têm em relação a pessoas trans, de saber o que ela têm entre as pernas. Como se ali estivesse a identidade de gênero delas. E a Amapô não mostra em nenhum momento. Eu dou várias dicas, das mais gritantes, as piadas sobre inveja do pênis em algum momento, mas sem ver o órgão da Amapô teve muito leitor e leitora que não conseguiu se satisfazer, sabe? Com a curiosidade. Ficam até pertubadas. Eu decidi não mostrar o órgão sexual da Amapô, como se não fosse relevante mesmo, apesar de que na história as coisas se desenvolvem a partir desse encontro das anatomias diferentes delas.
Outra coisa da sociedade da Sheiloca é que elas estão lá, todas nuas, são todas manas, e aparentemente ela têm esses rituais para legitimar os laços entre elas e tal e parece que está tudo bem, mas na verdade a distopia aparece a partir do momento em que elas estão todas nuas, mas elas não estão nuas exatamente porque vivem numa harmonia de sororidade completa entre elas. Elas estão nuas ali o tempo inteiro para se vigiar umas às outras. É por isso que a Amapô sofre o bullying que sofre, por ser diferente.
Então, essa super-vigilância que elas têm, essa nóia que elas têm com essa questão da vulva, da menstruação e tudo mais, acaba gerando esses ruídos na suposta harmonia que a gente imagina numa sociedade de mulheres. Elas não vivem numa harmonia porque são manas, e portanto são naturalmente boas, íntegras e éticas. Na verdade, todas as nossas questões de relacionamento, como ambição, egoísmo, arrogância, crueldade mesmo, estão postas ali. Não foi a exclusão de homens que solucionou essas questões. Inclusive, a relação delas o tempo inteiro é cheia de conflitos. Em nenhum momento elas estão completamente harmonizadas umas com as outras. Existe bastante competitividade e tudo o mais. Muitas leitoras minhas se incomodoram com isso. Ela ficaram incomodadas de eu representar tanta competitividade e briga entre mulheres. Porque não deveria ser assim. Mas na verdade é assim.
Existe uma outra questão em torno do LGBTQIA+ que é importante em Sheiloca, porque no começo da história é apresentado o relacionamento entre as manas, mas depois se descobre que aquela sociedade está prestes a ser extinta, porque elas não tem mais como se reproduzir. Elas tinham um tipo de reprodução artificial, mas que não possuem mais recursos para manter. E daí que a Amapô, como é uma personagem trans e supostamente tem um pênis, vira uma personagem importante. Fica a ideia, dentro da história, de que se a Amapô fosse saudavelmente integrada à sociedade das manas, elas poderiam resolver essa questão da reprodução. Mas a Amapô nunca é integrada.
Outro elemento distópico é que dentro daquela sociedade existe uma hierarquia também, que são as manas na base, e daí as Doulas, que são um tipo de autoridade entre as manas, e depois as Divas, que são as manas anciãs. As Divas não estão preocupadas com a continuidade da espécie. Então, tem um momento em que essa personagem, a Belly, que é uma Doula, entra em conflito com as Divas, porque fica muito preocupada em dar continuidade à espécie. E as Divas chegam a dizer que preferem que as manas vivam com dignidade do que se submetam a algum tipo de reprodução sexuada. Isso tem muito a ver com a realidade LGBTQIA+, porque essas pessoa também não estão pensando na continuidade espécie. Elas não têm meios para dar continuidade à espécie. São outras prioridades e outra mentalidade de vida que norteiam a experiência dessas pessoas.
Então, a Sheiloca brinca com essa questão, de que existe uma ameaça à continuidade daquela espécie, mas que não precisa necessariamente ser uma ameaça. É um lance da heteronormatividade querer a todo custo dar continuidade à espécie.