A ideia de entrevistar Luis Fernando Verissimo é um sonho e um desafio: notório tímido, o genial escritor e quadrinista e músico de jazz e tanto mais pouco fala quando indagado. Assim, quando combinamos de fazer a revista, propusemos que, ao invés de uma entrevista inédita, utilizássemos trechos de outros depoimentos do autor, em diferentes veículos e momentos, para criar um olhar panorâmico sobre a sua obra. Foi uma delícia dpula: mergulhar em seu acervo, encontrar entre as inúmeras pérolas quais incluiríamos na Expressa, e ainda ter a chance um jantar especial em sua casa, com a presença nobre de Edgar Vasquez e Santiago. Momentos felizes da vida. Mas, para além disso, também gostamos muito do resultado final da “entrevista”, do qual damos uma amostra a seguir:
CRIAÇÃO
Até começar a trabalhar em jornal, com 30 anos (naquela época ainda não precisava do diploma), eu não sabia que podia escrever nem tinha a menor intenção de ser escritor. Já tinha feito algumas coisas para o jornal da escola (nos Estados Unidos) e algumas traduções para a Editora Globo, inclusive para a velha Mistério Magazine. Lia muito, mas não pensava em ser escritor. Quer dizer, nunca tive nenhum livro, ou soneto, dentro de mim que precisasse botar para fora.
Sou o contrário de um ‘trabalhalcoolista’, pois estou sempre atrás de pretextos para não fazer nada. Mas produzo muito, talvez por não ter nenhum método de trabalho. Se fosse mais organizado, talvez atrapalhasse.
Como o meu pai, tenho a minha toca nos fundos da casa, onde fico isolado a maior parte do dia. Começo a trabalhar normalmente pelas nove e meia ou dez, paro para o almoço e uma rápida cochilada, depois trabalho até a hora do Jornal Nacional. O volume do trabalho depende, quando é dia de mandar matéria para os jornais é mais intenso, nos outros é mais folgado. Quando estou escrevendo um livro, aproveito os fins de semana e as horas vagas.
Livre-pensar, acho eu, é não ser limitado por preconceitos ou compromissos ou medos. O Millôr foi o nosso grande exemplo de um pensador independente e a liberdade que ele representa começa sempre no ceticismo. Livre-pensar é sempre ser cético, é pensar contra.
Eu estou nesse estranho ofício de dar palpite, e dou palpite sobre tudo, mas não pretendo mudar a opinião das pessoas. Minha experiência é que concorda com você quem já estava predisposto a concordar. Mas acho, também, que a gente deve usar este privilégio que poucos tem, de escrever em jornal, de ter o espaço para expor ideias e dar opiniões, com alguma responsabilidade. Não solenidade, ou pretensão, mas a preocupação de não banalizar o privilégio.
Na escrita, aproveita-se de tudo. Uma frase pode sugerir uma cosmogonia inteira. O importante é saber aproveitar a ideia. No meu caso, o problema é lembrar da ideia. Muitas vezes esqueço a frase que tinha guardado, e que tinha certeza que não ia esquecer, na hora de escrever. E o pior é a sensação que as melhores ideias são as que a gente esquece.
Escrevo de uma sentada só. Geralmente o começo é difícil, o meio, depois que a gente decidiu para onde quer ir, é fácil, e o fim, o arremate final, demora. A sensação, lendo o texto publicado, de que não era bem aquilo que a gente queria dizer, é constante. Melhor não ler o texto publicado. Não costumo rir do que eu escrevo, nem escrevendo nem lendo depois. Às vezes, lendo muito depois, me surpreendo com alguma boa sacada, mas o sentimento mais comum é de insuficiência, de “não era bem isso”. Quando não é de vergonha. Como disse um amigo meu, tenho o auto-crítico muito desenvolvido.
Eu não sou modesto. Me acho formidável, como todo mundo se acha. Mas não se deve sucumbir ao auto-deslumbramento, principalmente porque, conhecendo nossos próprios truques, só estaríamos sendo otários conscientes. Tudo, no fim, é vaidade, mas alguns se controlam. Eu não gosto de homenagens ou de ser centro de atenções, tenho horror a falar em público, nunca sei o que dizer quando me elogiam e também não sei reagir à agressividade, e acho que tudo isso é genuino. Portanto, não acho que faça um ‘tipo’. Claro que a auto-ironia também é uma forma de defesa preventiva. Enfim, gente é uma coisa muito complicada.
Infelizmente, uso o computador só como uma máquina de escrever com memória. Ainda não estou ligado ao cyberespaço e mantenho uma certa distância reverencial do mundo da informática. Sei que é para lá que caminhamos mas continuo um gutemberguiano arcaico. Só vou aceitar o livro eletrônico se eles conseguirem reproduzir o cheiro de tinta e papel.
Faço coisas demais. Culpa de uma certa dificuldade em dizer ‘não’ e da perigosa ilusão de que a gente vai encontrar um tempinho para tudo. Não sou muito organizado para trabalhar e isso talvez até ajude, acabo sendo dirigido pelos prazos de entrega e produzindo de qualquer jeito. Minha inspiração é o pânico.
Acho que ninguém deve escrever pensando num leitor ideal. Deve tentar agradar a si mesmo e esperar que o gosto do leitor coincida com o seu. E o maior perigo na relação autor-leitor é o mal-entendido. A gente escrever com ironia nem sempre significa que vai ser lido com ironia.
Sem querer ser muito pretensioso, mas acho que um bom exemplo pra minha atitude tomada diante da vida seria o do Sartre, que foi o filósofo do nada, né? Um homem que escreveu sobre o absurdo, tinha consciência absoluta do absurdo, e mesmo assim viveu como se existisse uma moral, como se existissem valores absolutos. Foi um homem sempre preocupado com o social, com a solidariedade humana, apesar de ser descrente de tudo. Sem querer ser pretensioso, acho que a minha posição também seria esta. Acho que há um absurdo existencial no qual a gente vive. Mas deve-se agir como se existissem valores absolutos, e como se existissem uma moral e uma ética.
PATO MACHO
O Pato Macho foi a tal versão do Pasquim que quisemos fazer em Porto Alegre. Teve uma vida gloriosa e curta. Foi em 1971, imaginem vocês, governo Médici, a época mais brava da ditadura. Mas a reação ao jornal não foi tanto pela parte política. Como não podíamos tocar muito em política, fazíamos uma crítica de costumes, da burguesia local, à qual pertencíamos todos. Não gostaram. O segundo número já teve que passar pela censura. O jornal durou quinze semanas. Da experiência ficaram as lembranças das reuniões de criação, que geralmente eram mais divertidas do que o que saía. E as dívidas, é claro.
LIVROS
O meu primeiro livro foi O popular, publicado pela Editora José Olympio em 1973. A iniciativa foi da própria editora, cujo representante em Porto Alegre era o Maurício Rosenblatt, grande amigo nosso. Gente da editora conhecia meu trabalho, que na época só era publicado em Porto Alegre, e é claro que o Maurício também deu uma mão. A Globo já tinha proposto editar um livro de crônicas mas eu não topei, justamente porque era a editora do meu pai. Achei que pelo menos o primeiro livro não devia ser com eles.
QUADRINHOS
Até uma certa idade, só lia histórias em quadrinhos. Os super-heróis da época: Superhomem, Batman, Princípe Submarino, Tocha Humana, os capitães Marvel e América. Só depois, já adolescente, é que descobri os clássicos, Krazy Kat, Little Nemo, etc. E mais tarde Crumb, Walt Kelly, os europeus. Até hoje gosto muito de quadrinhos. Costumo dizer, por exemplo, que, na falta do grande romancista moderno de São Paulo, quem fez a melhor literatura urbana paulista dos anos 1980 foram os quadrinistas, o Angeli, o Laerte, o Glauco, e depois o Adão.
Sempre gostei muito de cartuns e quadrinhos e quando passei a ter um espaço assinado no jornal aproveitei para, vez por outra, substituir o texto por desenhos. Até porque era possível com os desenhos dizer o que nem sempre podia dizer com o texto. Por alguma razão, talvez pela conotação de coisa infantil, lúdica, desenhos não eram tão controlados quanto palavras na época da ditadura. Não foi por nada que a grande revelação do humor brasileiro durante a ditadura foi o Henfil com seus cartuns.
Tenho um problema curioso, para um desenhista. Não sei desenhar. Isto não me impede de insistir com o desenho, apesar dos conselhos de amigos, das indiretas da família e de telefonemas ameaçadores. Insisto, em primeiro lugar, por conveniência. Não digo que uma imagem valha mil palavras, mas umas 500 — o necessário para encher uma coluna de jornal — vale. Qualquer cronista diário daria a sua mão direita para poder desenhar em vez de escrever, de vez em quando, se fosse canhoto. Em segundo lugar, sempre fui tarado por cartum. Já desenhava antes de escrever. Acho o cartum a forma mais concisa — e mais difícil, ninguém se engane — de humor. Vou morrer tentando descobrir como é que faz.
Há uma diferença entre a charge e o cartum. A charge sempre tem a ver com a realidade, enquanto o cartum é mais atemporal. Não sei bem se o que faço é definível como charge, mas também não é atemporal como o cartum. Não sei classificar muito bem. Talvez seja um ‘cartum atual’.
PERSONAGENS
Eu já estava pensando em parar há algum tempo quando deixei de desenhar As Cobras. E aproveitei que estava saindo do Jornal do Brasil, onde elas eram publicadas desde 1976 ou 1977, para acabar com elas. Foi só para trabalhar menos, não há outra razão. E também porque não ficava bem, para um homem então já com 62 anos de idade, ficar desenhando cobrinhas. Até os 61 ainda vai. Agora, elas só saem em antologias. O problema é que, embora a produção tenha sido grande, só no final é que As Cobras tiveram um desenho melhorzinho. Antes eram muito mal feitas. Eu sempre disse que desenhava cobra porque cobra era só pescoço, mas mesmo assim levei tempo para dominar o traço. Foram quase 30 anos. Pescoço também é difícil!
Dois personagens meus nasceram de trocadilhos bobos. Uma vez ouvi a frase “é de morte” e fiquei pensando em como “Ed Morte” podia ser o nome de alguém, que com esse nome só podia ser um bandido. Tirei o ‘e’ e ficou um detetive particular. É uma parodia de um gênero que sempre me agradou, o policial americano, e transpõe todos os clichês do gênero para o Brasil. Outra vez observei, com grande acuidade, que o ‘chez’ do francês se parecia com o ‘tchê’ do gauchez e imaginei um restaurante chamado ‘Tchê Fraçoise’, de um gaúcho grosso casado com uma francesa fina. Um gaúcho grosso deslocado num restaurante granfino. Crie o personagem para o Jô Soares na TV, e depois aproveitei a ideia em crônicas e quadrinhos, mudando a profissão do vivente, mas mantendo a ideia da incongruência entre personagem e meio, e nasceu o Analista de Bagé.
O Analista de Bagé é um fenômeno meio difícil de explicar. Não é diferente das outras coleções de crônicas minhas, mas fez sucesso por causa do personagem. Este sucesso de um personagem marcadamente regional, inclusive falando “gaúcho” e fazendo referências a uma cultura que fora do Rio Grande do Sul poucos conhecem, também é inexplicável. Acho que o negócio é dizer como se dizia antigamente, “não analisa não”, e aproveitar.
Outros personagens reincidentes tiveram origens diferentes. Além do Analista e do Ed Mort, a Velhinha de Taubaté nasceu para dar uma ideia do absoluto descrédito do governo na época, que era o do Figueiredo e do Delfim. Era uma personagem funcional, que existia em função da crítica. E a Família Brasil foi nascendo ao acaso. Eu fazia cartuns sobre problemas de classe média, conflito de gerações, etc., e quando vi os cartuns começaram a ter uma certa sequência, com tipos se repetindo, e eles acabaram ganhando uma personalidade. E um sobrenome.
A classe média brasileira é onde eu vivo. Minha experiência pessoal não é exatamente típica e eu não seria personagem de uma história minha, por absoluta falta de graça, mas a gente aproveita as histórias que ouve e a experiência dos outros. Muita gente me pergunta se o pai de Família Brasil não sou eu, por causa dos óculos, da careca e de uma certa perplexidade diante do mundo moderno. Mas não sou eu, não. Pelo menos não que eu saiba.
HUMOR
Eu não tenho um humor espontâneo, uma reação naturalmente humorística às coisas ou aos acontecimentos. O humor vem depois, ou não, na hora de decidir como abordar o fato. Um exemplo específico não me ocorre, mas acontece muito de você se indignar com alguma coisa e depois tratá-la com ironia. Na transição da indignação para a ironia, perde-se em espontaneidade, mas talvez ganha-se em efeito.
Um dos princípios não declarados, e obviamente utópicos, do humor é que nada é sagrado. Lembro de um humorista americano que costumava terminar suas apresentações perguntando “há alguém aqui que eu ainda não ofendi?” A ofensa não é imprescindível para o humor mas a irreverência é. No Ocidente a irreverência é um direito presumido do humorista, nossa tradição é a do bobo da corte com licença para caçoar do Rei com o único risco do Rei não entender a piada e nos dar um chute.
Não sei para o que serve o humor. Talvez tenha, na crítica e na comunicação, a mesma função do lubrificante nas máquinas. Não acho que “quanto pior melhor” para o humor. Mas o humor nasce do contraste, do conflito, e quanto mais conflito mais material para o humor. Eu sempre digo que o humor na Escandinávia deve ser um horror.
Eu não me considero exatamente um humorista, mas mesmo se fosse seria mais um emburrado. Dizem que não existe nada mais triste do que uma reunião de humoristas. Fica todo mundo se sentindo na obrigação de dizer coisas engraçadas e lamentando não ter escrito nada antes.
No humor, a gente acaba desenvolvendo uma técnica. Não uma fórmula, mas um jeito de interpretar qualquer coisa pelo lado insólito, ridículo ou apenas curioso, e portanto engraçado. Tudo tem seu lado engraçado.
Pode haver improvisação no humor, na medida em que a gente sabe mais ou menos o que quer dizer, ou a impressão que quer passar, mas vai desenvolvendo o “como dizer” no ato de escrever. Mas acho que o texto de humor é o texto menos espontâneo que existe. Você tem que estar sempre consciente do efeito que quer causar, e isto impõe um certo rigor. Já um texto que não precisa ter outro efeito a não ser interessar o leitor pode ser mais solto.
O humor brasileiro é muito bom. Temos uma tradição de humor que passa por Machado de Assis, pelos cronistas da geração do Rubem Braga e do Fernando Sabino (e do ótimo Antonio Maria, hoje meio esquecido), pelo Sergio Porto, claro, pelo Barão de Itararé, pelos cartuns, pelo teatro e, hoje, pela televisão.
O humor também pode ser usado para se dizer coisas sérias. Pode-se dizer tudo através do humor. O grande exemplo brasileiro é o Millôr Fernandes, que considero a grande inteligência do Brasil. É um pensador, um filósofo, e nunca deixou de fazer humor, sempre disse tudo que queria dizer com humor. Há uma certa tendência de ver o humor como uma coisa menor, como uma categoria de literatura. Mas o humor não é uma categoria, é só um método da gente dizer o que se tem a dizer.
Qualquer coisa pode ser engraçada. Até a tragédia pode ser levada a total ponto de exagero que provoca o riso. O segredo do humor negro é que ele tem um sentido de liberação: você se pega rindo de alguma coisa que sabe que não devia ser divertido, porque é sagrado ou porque é triste ou de mau gosto. É o prazer do proibido. Não faço muito humor negro, mas acho que o humor deve ser livre de qualquer tipo de restrição, inclusive da restrição do bom gosto. E o humor negro é ótimo para denunciar a hipocrisia.
Uma coisa que me preocupa um pouco é como o humor às vezes é reacionário. Muitas vezes o humor, para ser engraçado, para ter repercussão, usa certos preconceitos vigentes. Então, com frequência, a gente tem uma posição com relação a algum assunto, mas assume o preconceito vigente para poder fazer humor, fazer graça.
O humorista é um utopista desencantado. É um cara que tem uma ideia de como as coisas deveriam ser, de como elas não são, e de como gostaria que elas fossem. Então, faz gozação dele mesmo e da sociedade. Nesse sentido, todo humorista é um cara insatisfeito. Ele não está satisfeito com as coisas como elas são. E existe uma tradição do humorista ser realmente uma pessoa triste. Eu sou uma pessoa que normalmente tende mais para a depressão do que para a euforia.
Eu sempre faço uma certa distinção quando as pessoas dizem que sou humorista. Eu resisto a essa definição, porque há uma diferença entre ser humorista e fazer humor. Eu acho que nós todos conhecemos humoristas, pessoas que pensam humoristicamente sobre as coisas, reagem humoristicamente e tem tiradas engraçadas. Mas não conseguem fazer humor. Quer dizer, não conseguem transportar esse humor para o papel, organizar, transmiti-lo. E há aquelas que não são humoristas mas que conseguem fazer humor. Quer dizer, é uma questão de técnica, e eu acho que eu me incluo entre essas. Essa distinção entre o humorista e a pessoa que faz humor, que talvez seja um pouco sutil, é um pouco difícil de explicar. Eu acho que a pessoa pode fazer humor sem ser humorista natural, como eu certamente não sou. Eu, para contar uma anedota, sou um desastre. Não sou uma pessoa engraçada. Mas eu consigo fazer humor, mais por uma questão de técnica do que por vocação.