Com a pandemia e a impossibilidade de uma entrevista presencial, Marcelo D’Salete nos propôs que enviássemos algumas questões, que ele responderia via áudio. Assim foi feito, criando um documento amplo e valoroso sobre a sua trajetória como quadrinista, e publicado no volume em sua homenagem da Expressa, em 2020.
Cumbe, editado em 2014, é uma virada na sua obra, ao trabalhar com temas históricos ao invés do cotidiano urbano atual. Como foi a pesquisa e a elaboração do roteiro? E a utilização de termos em banto? Qual a importância da parceria com Allan da Rosa neste projeto?
Eu comecei as pesquisas para criar Cumbe por volta de 2004. Mas só fui engrenar mesmo a partir de 2006, quando, a partir de um curso que eu estava fazendo, tive contato com uma série de textos sobre momentos importantes da história do Brasil. Um deles falava diretamente sobre o Quilombo de Palmares. Esses textos me chamaram atenção de que existe toda uma história do Brasil que não está nos quadrinhos. E que boa parte da população não tem acesso a essas informações tão importantes para a nossa formação, tanto como país quanto como cidadãos. Quando percebi isso, veio a ideia de elaborar um livro de quadrinhos falando sobre o Brasil a partir da perspectiva negra.
No começo, eu tinha interesse em pesquisar Palmares, especificamente. Mas aos poucos eu fui percebendo que se concentrar na história de Palmares não era suficiente para se entender a época, e fui atrás de outras obras que falavam sobre o século XVII, sobre o Brasil colonial, a escravidão. E especialmente sobre do povo de origem banto. Essas pesquisas levaram àquilo que a gente chama de história social, que é justamente tentar pensar a história a partir não de informações num nível macro, como números e estatísticas, mas de um nível micro, das relações específicas de alguns indivíduos que estavam naquele contexto. E nós temos muito relatos envolvendo escravizados que foram parar em arquivos policiais. Esses relatos acabaram me chamando a atenção e eu pensei que eles seriam muito interessantes para criar um contexto sobre o que foi Palmares e sobre como era a escravidão naquele período. Foram eles que me ajudaram a criar as primeiras histórias que fariam parte do livro.
Cumbe é uma palavra de origem Kimbundo, que significa Sol, Força, Luz, Chama. Considerei que era o termo ideal para falar dessa publicação, que está retratando o Brasil colonial do século XVII, mas olhando esses personagens negros, escravizados, como protagonistas de suas ações. Eu queria mostrar quais eram os seus objetivos, quais eram seus conflitos. Cumbe vem desse interesse de tentar ver as motivações desses personagens negros. Aos poucos, fui vendo que essas histórias tinham algo específico, uma energia própria. E assim fui encontrando a linguagem que forma o livro.
O desenvolvimento das histórias foi lento, porque demandou todas essas pesquisas. A primeira história, “Kalunga”, é um exemplo claro disso: eu fiz a primeira versão, que estava muito próxima do relato inicial que eu tinha lido, e mais de um ano depois, tendo já trabalhado em outras histórias e feito várias pesquisas, eu a li novamente e fui percebendo que era preciso acrescentar algo mais. E a partir disso veio as soluções que eu considero mais poéticas e fantásticas, e que eram essenciais para imaginar as novas possibilidades de leitura sobre aquele período, sobre aquele contexto, através da ficção.
Durante a elaboração das histórias, eu fui percebendo que utilizar termos de origem banto, que foram mais de 70% dos africanos que vieram escravizados para o Brasil nos dois primeiros séculos, seria muito importante para contextualizar e dar identidade para os personagens. E para isso foi fundamental o diálogo com o Allan da Rosa, com quem eu já fiz diversas parcerias. Ele ajudou a criar um glossário e me chamou a atenção para essa questão da linguagem e para diversos termos que eu poderia utilizar, que eram interessantes para aproximar o leitor daquele universo que eu estava trabalhando. O Allan é um pesquisador profundo, um grande conhecedor do universo banto.
Cumbe teve edição em diferentes línguas e países (Portugal, França, Itália, Áustria e EUA) e ganhou importantes prêmios, como o Eisner Awards 2018. Como foi esse processo e que trocas artísticas foram geradas a partir disso?
Foi uma grande surpresa ver o interesse das pessoas em relação ao Cumbe. Quando eu comecei o meu trabalho com quadrinhos, eu pensei que seria algo a longo prazo. Sabia que não seria uma coisa fácil de chegar ao público, porque estava trabalhando com narrativas e temas fora do habitual dos quadrinhos brasileiros. Eu pensava que fosse demorar mais para ter alguma resposta de público.
E é muito interessante conversar com os leitores fora do Brasil. Eu tive essa chance em algumas viagens para eventos na Europa e fui percebendo que muitos leitores olhavam a escravidão, olhavam todas essas questões que eu estava tratando, como se fosse algo muito particular da história do Brasil. E eu sempre tentei dizer o contrário, que isso está inscrito em um processo histórico mais amplo, da investida do capitalismo no mundo. E que essa investida acaba conectando o Brasil com a Europa e com a África. Envolve diversos povos.
Isso só mostra o quanto é importante trazer essas histórias, que são pouco conhecidas, para o universo dos quadrinhos, para ajudar a gerar um debate em torno. E viajando pelo mundo, não apenas na Europa, mas também em alguns países da África, pude ver que há um interesse muito grande por esse tipo de narrativa.
Angola Janga é uma história muito extensa, de mais de 400 páginas. Como foi o mergulho na “pequena Angola”? Quanto tempo demandou de pesquisa e elaboração?
“Angola Janga”, ou “Pequena Angola”, é o nome que acreditamos que era utilizado pelos palmaristas para se referir à região de Serra da Barriga, onde ficava Palmares. O livro demandou uma pesquisa bem extensa, que foi realizada em paralelo com a do Cumbe. No total, foram onze anos de pesquisa. É claro que eu tive que parar em diversos momentos para fazer outros trabalhos, até mesmo outros projetos de quadrinhos. Os meus livros Noite Luz e Encruzilhada, por exemplo, são desse período. Mas eu sempre voltava para pensar Palmares e fui realizando a pesquisa aos poucos.
De 2006 até 2009, mais ou menos, eu me concentrei especificamente nas pesquisas históricas e iconográficas, e só então comecei a produzir os primeiros esboços. Em 2011, eu comecei a finalizar algumas páginas de desenhos. Algumas dessas histórias foram separadas do conjunto e geraram o Cumbe. E daí, com as outras histórias que sobraram, eu me dediquei a finalizar o livro. Eu reuni as histórias que tratavam mais diretamente sobre Palmares.
A realização do livro foi lenta e isso gerou muito trabalho extra. Eu tive que rever diversas vezes o material, porque entre desenhar as primeiras histórias que fariam parte do Angola Janga e a finalização do livro passaram cinco, seis anos. O traço já não era o mesmo. Então eu tive que desenhar novamente, fazer outro tratamento, especialmente de luz e sombra, de preto e branco, para que o livro ficasse com um estilo mais uniforme, com a mesma linha gráfica.
O livro tem 11 capítulos, o que é mais ou menos a mesma estrutura que pensei em 2006, quando fiz o primeiro esboço de roteiro. Nele, eu cheguei a colocar quais eram os principais fatos, mas ainda não sabia exatamente quais seriam os personagens. Isso só veio depois. Foi na pesquisa em torno dos personagens que surgiu, por exemplo, a figura do Soares, que é a pessoa que está do lado de Zumbi no final, e que eu vi que tinha algo muito interessante para explorar em termos de densidade, de possibilidades narrativas.
O Angola Janga me obrigou a ser mais rigoroso no modo de criar as histórias, de detalhar os personagens, para entender exatamente quem eles eram e como atuariam em diferentes situações. Eu tive que fazer um roteiro mais detalhado, com esquemas temporais, para saber como essa narrativa maior de Palmares se encaixava em torno de cada personagem. Tudo isso para tentar manter o todo da história. E para isso eu tive que criar alguns métodos durante o processo. Por exemplo, quando eu percebi que tinha a necessidade de enxergar a história de uma forma visual, a partir de esquemas que deixassem claro para mim o que estava contando, para não me perder no meio de tantos personagens e de tantas ações. Esses esquemas visuais foram muito importantes para eu conseguir deixar a história coerente.
Como foi a pesquisa iconográfica para realizar Cumbe e Angola Janga?
A pesquisa iconográfica é tão necessária e difícil quanto a pesquisa histórica. É preciso fazer uma pesquisa profunda para saber retratar não só os objetos de época, mas também os tipos humanos. Para tentar suprir isso, eu comecei indo atrás dos artistas holandeses que no século XVII viajaram para a região de Olinda e Recife e desenharam retratos. Mas os desenhos eram principalmente das cidades, então precisei expandir a pesquisa para outros artistas um pouco posteriores, como é o caso do Debret. E também mergulhei nas pesquisas sobre os grupos étnicos da região de Angola, a partir de textos que descreviam as pessoas, mas também de desenhos e até fotografias. Nesse caso, um pesquisador que foi muito importante para o meu trabalho é o José Redinha. Ele tem diversos livros falando sobre as culturas tradicionais de Angola e, além de ser um escritor, é um excelente desenhista e registrou iconograficamente suas pesquisas, tanto com desenho como fotografia.
Qual o seu processo de criação? Elabora argumento, roteiro, rascunho e arte final? Qual a parte mais difícil do trabalho? E a mais prazerosa?
Olha, em primeiro lugar, muito da história surge nas pesquisas, a partir de leituras sobre o tema que estou trabalhando. Eu vou anotando ideias. Elas não aparecem só como texto, mas muitas vezes como imagens também. Então eu faço alguns rascunhos que poderei usar depois nas histórias. Depois, eu escrevo um roteiro, onde coloco qual é o tema principal de cada capítulo, o que vai acontecer ali e quais são os cenários e personagens. A partir desse roteiro, começo a descrever página por página a ação. Eu não chego a descrever quadro por quadro, mas preciso saber quais são as principais ações e informações daquela página.
O passo seguinte é fazer os esboços dos personagens e das páginas, já com a divisão de quadros. Para isso, eu utilizo primeiro uma folha A4, onde faço um desenho pequeno para ter uma ideia de como será o ângulo de cada um dos quadros. E incluo informações sobre os personagens, os cenários, os objetos importantes que estarão em cena. E daí eu começo a fazer um rascunho maior, em folha A3, já com os quadros mais definidos. Em seguida, utilizo uma mesa de luz e uma folha Canson A3 para fazer o desenho definitivo.
Eu gosto muito de todas as partes, então não sei dizer qual é a mais difícil. Mas talvez seja o momento de fazer o esboço maior, mais detalhado da história, porque isso requer você ir atrás de mais informações, de referências iconográficas, e conseguir fazer com que todas essas informações caibam no quadro. Essa talvez seja a parte mais complicada e trabalhosa. E a parte que eu gosto mais de trabalhar é a finalização com tinta nanquim. É um dos momentos do processo que mais me dão prazer. Assim como o momento de fazer o primeiro esboço, que é o momento de criação mais intensa.
Os seus livros são fortemente marcados pelas questões políticas, pela consciência negra e pela luta pela igualdade. Como tem visto essas questões nestes quase 20 anos de atuação? Qual a diferença de lidar com um contexto de expansão dos direitos, como ocorreu no Brasil na primeira década deste século, e num contexto de embate e retração dos direitos, como agora? Isso influencia sua obra?
Realmente, é muito diferente pensar o Brasil das três últimas décadas e o momento atual. O Brasil da expansão dos direitos e agora o da retração dos direitos. Mas é importante a gente compreender que, em todos os momentos, quando a gente fala de direitos de determinados grupos, como a população negra, esses direitos nunca foram algo tranquilo, consolidado. Sempre foi algo em disputa, uma luta política e simbólica. E isso acontecia algumas décadas atrás e continua acontecendo hoje. A diferença é que hoje, mais do que nunca, os argumentos de quem é contrário a esse tipo de proposta de ampliação dos direitos da população negra, dos índios, dos LGBTQ+, estão mais evidentes. Muitas vezes não são nem mesmo argumentos, mas convicções pautadas em algo extremamente discriminatório e racista. Então, essa luta sempre existiu e continuará existindo por muito tempo. E por isso é sempre importante a gente saber que é preciso divulgar as lutas que estão sendo feitas contra a retirada de direitos, contra a marginalização, contra a desigualdade social. E essas lutas são também simbólicas. A arte é um modo de combater o racismo e a desigualdade. Então é claro que a minha obra está sempre em diálogo com essas pautas.
Você realizou algumas exposições internacionais. Como tem sido essa experiência com o processo expositivo e como você vê essa relação entre quadrinhos e artes visuais?
A minha formação é em artes visuais, então tenho uma relação bem forte com esse meio. Aprecio pintura, gosto muito desse tipo de criação. E trabalhei durante um tempo em museus. A minha pesquisa de mestrado também foi dentro dessa área, sobre curadoria de arte negra, focado no caso do Emanoel Araújo, que é um grande artista. Então foi interessante voltar a esse meio com exposições de meus desenhos. Mas eu considero que os quadrinhos possuem outro espaço de circulação que é muito mais amplo, e é o meio que mais me interessa trabalhar. Expor é uma soma, mas não é a finalidade principal da minha criação.
As exposições que eu realizei foram a partir de convites, de iniciativas de outras pessoas interessadas no meu trabalho e em exibir originais de desenhistas de quadrinhos. Algumas vezes, foram exposições individuais, como a que aconteceu no Museu Afro Brasil, algumas vezes coletivas. E aconteceram algumas exposições internacionais, em Maputo, Moçambique, em Luanda, Angola, e em Lisboa, Portugal.