Entrevista realizada por Sergio Cohn, para o livro Neville d’Almeida – Cadernos de Cinema.
Neville, para começar, pode nos falar um pouco sobre como foi a sua aproximação com o cinema?
Desde que eu fui ao cinema a primeira vez, eu queria fazer cinema. Eu não queria ser artista de cinema, mas eu queria fazer filme. Eu achava que aqueles atores eram tão bonitos, e eu não queria ser artista, mas eu tinha muita vontade de organizar um filme, dirigir. Isso com oito, nove, dez anos. Eu brincava de cinema com os amigos, brincava de faroeste, fazia com um pedaço de pau um cavalo, dividia o grupo em dois: “Vamos filmar! Vamos fazer!” O cinema, para mim, começou muito assim. Mais tarde, eu entrei pro CEC, o Centro de Estudos Cinematográficos, um célebre cineclube de Belo Horizonte, e comecei a ler crítica de cinema no jornal. E os críticos eram os maiores do Brasil: Fritz Teixeira de Sales, Maurício Gomes Leite, Ciro Siqueira, essas pessoas… Então essas leituras me mostraram como o cinema era grande, quantas coisas existiam num filme: tem roteiro, fotografia, cenografia, figurino, direção, maquiagem, efeito, parte técnica, revelação, copião, montagem, direção. Eu tinha acesso a uma cultura cinematográfica incrível, que era a crítica de cinema feita pelos críticos mineiros, e que fazia parte de um acontecimento mundial, de um altíssimo nível da crítica da época. Era o tempo do André Bazin, do Godard, do Truffaut. Tanto é que Glauber Rocha, que era um leitor da Revista de Cinema lá de Belo Horizonte, que era uma publicação que reunia essa turma da crítica mineira, quando fez o primeiro filme, chamou dois críticos mineiros pra serem assistentes de direção dele: Schubert Magalhães e Caio Vieira. Tamanha era a importância da Revista de Cinema e da crítica que estava sendo feita lá.
Então, a gente vivia o cinema intensamente, profundamente. A gente sentia o cinema, amava o cinema, falava do cinema com devoção, tinha uma paixão pelo cinema. Você ia para o cineclube e uma pessoa lá na frente apresentava: “Vamos ver aqui um filme de Roberto Rossellini, neo-realismo italiano”. E falava por dez minutos sobre o filme. E quando acabava o filme começava uma hora e meia de debate. Acabou o debate, a gente ia pra esquina, e ficava lá até uma hora da manhã falando, fazendo o nosso próprio debate. A nossa turminha, que era um pouco mais nova que aqueles críticos. Era uma coisa maravilhosa essa paixão pelo cinema, esse amor pelo cinema, essa busca do conhecimento, do cinema russo, do cinema italiano, do cinema francês, do cinema americano, do cinema mexicano, do cinema brasileiro, do cinema espanhol. A gente buscava intensamente o cinema japonês. A gente assistia a tudo. Tinha o cinema húngaro, o cinema polonês. E no final dos anos 1950, 1960, quase todos os jovens eram cinéfilos…
Foi nessa época que eu entrei pra escola de arte dramática do Teatro Universitário de Minas Gerais, para fazer o curso de interpretação. Isso também foi maravilhoso, porque me ensinou a dirigir um ator.
E você tinha relação com a geração de cineastas que surge em Belo Horizonte nos anos 1960, como o Márcio Borges e o Andrea Tonacci?
Quando eu fiz o meu primeiro curta-metragem para o Festival Nacional de Curta-Metragem JB Mesbla, eu tinha acabado de chegar dos Estados Unidos, em 1966. E conheci neste festival o Márcio Borges, que estava também fazendo um filme e depois virou um dos principais compositores do Clube da Esquina. Talvez o Andrea Tonacci estivesse lá também. O Márcio Borges fez um curta-metragem sensacional e eu fiz o meu também. O Rogério Sganzerla fez o primeiro curta-metragem dele também, que se chamava Documentário. Viramos muito amigos, muito íntimos. Falávamos de cinema o tempo todo, morávamos em quartos, não tínhamos carro. Era uma outra vida, uma outra coisa, mas maravilhoso poder ter alegria no que você faz. Poder sonhar…
Naquele momento, vocês já estavam realizando um cinema diferente do Cinema Novo?
O Cinema Novo era muito careta, sabe? Eu tinha uma visão mais moderna do cinema, não queria saber desse negócio de realismo socialista. Eu já tinha estudado realismo socialista no cinema italiano todo, lá em Belo Horizonte, no CEC, tinha vivido em Nova York e não ia voltar para o Brasil pra fazer realismo outra vez. Mas em todo mundo era assim, havia uma movimentação em direção a uma linguagem cinematográfica mais livre. E eu senti que existia uma outra coisa, um outro caminho, uma outra linguagem, um outro cinema. Ao mesmo tempo, eu sentia uma admiração profunda pelo Cinema Novo, um grande amor, um respeito imenso. Eles fizeram uma coisa genial, no final dos anos 1950, começo dos anos 1960. Deram personalidade ao cinema brasileiro. Eles realmente deram talento, mostraram que o cinema brasileiro também pensava, buscava uma linguagem própria. Eles tinham um caminho, havia ali uma preocupação política, que todos nós tínhamos, mas ela era comprometida com a linguagem. Eu busquei um outro caminho, fiz o meu filme Jardim de Guerra, com o roteiro de Jorge Mautner, que era fora de circuito. Fizemos um filme totalmente diferente, original.
Conheci esses outros jovens cineastas, o Sganzerla, o Tonacci, e coloquei pra eles as minhas ideias, e sentia que havia algo parecido em todos nós, que estávamos buscando um outro cinema. Uma outra coisa mesmo. O fato de amarmos o Cinema Novo não me tirava a consciência que o nosso caminho era outro. Eu gostava dos diretores do Cinema Novo, e tinha orgulho pelo que eles estavam fazendo, isso é maravilho, mas eu não queria fazer a mesma coisa. O meu caminho era outro. Eu tinha uma consciência total disso. Eu não vim da caretice pro moderno. Eu não fiz esse caminho. Desde o nosso primeiro curta-metragem, O Bem Aventurado, a gente já estava buscando uma outra linguagem, um outro cinema. O Bem Aventurado é o filme de 16 mílimetros que eu fiz para o JB Mesbla. O JB Mesbla foi o grande encontro da nossa geração.
Quais eram as influências do Jardim da Guerra? A sua estada nos EUA influenciou muito?
Olha, morar nos Estados Unidos foi maravilhoso, porque tinha uma revolução acontecendo lá. Foi quando apareceu Bob Dylan, Jimi Hendrix, quando a música negra tomou espaço e expressão. O princípio dos anos 1960 trouxe também os movimentos pacifistas contra a guerra do Vietnã, os movimentos feministas, o Women’s Liberation Front, e também os movimentos de liberação sexual, de inclusão social, os movimentos negros. Não se esqueçam que só em 1965 as últimas leis racistas caíram. No governo de Lyndon Johnson, ainda tinham estados norte-americanos com leis racistas. As últimas leis caíram em 1965, no meio dessa revolução cultural toda, no meio de todas essas coisas maravilhosas que aconteceram na cultura da época.
Então ter vivido de perto essa experiência toda me levou a querer fazer um filme sobre o meu tempo. Eu tinha conhecido o Jorge Mautner lá em Nova York, tinha ajudado ele depois que foi assaltado e ficou sem ter nenhum dinheiro, e decidi chamá-lo para me ajudar a fazer o roteiro. Ele acabou atuando também no filme. No Brasil, ele já era um escritor reconhecido. Tinha escrito o “Deus da Chuva e da Morte”, que é um livro que trata exatamente desta linguagem jovem que me interessava.
Eu chamei o Joel Barcelos, que tinha feito o filme Os Fuzis, do Ruy Guerra, para ser o protagonista, um jovem que precisa de dinheiro e acaba aceitando um trabalho para entregar uma mala num navio. Ele é o fio condutor do filme, um jovem que não é exatamente um militante político, mas apenas alguém que precisa de dinheiro. Só que ele é preso com essa mala, que é uma metralhadora, é tido como um terrorista e entra em todo o esquema da repressão política da época, com prisão e tortura.
Então, é um filme que está bastante envolvido, de forma muito corajosa, com a situação do Brasil naquele tempo. Mas não só com isso. Nós queríamos situar o Brasil dentro de um contexto internacional, falar da URSS, dos Estados Unidos, do surgimento da China no cenário político mundial. O filme passa por isso tudo: Che Guevara, Maio de 68, Mao Tse-Tung. Mas também da liberação sexual, da Gay Liberation Front, do movimento negro, do feminismo, dos movimentos pacifistas, das drogas. O filme traz o que deve ser o primeiro discurso feminista dentro do cinema brasileiro, na voz da Dina Sfat. O Jardim de Guerra é um filme muito radical e antecipador. Ele fala de liberar a maconha em plena ditadura. Fala da Amazônia, do desmatamento, do racismo. Tem uma cena que foi cortada pela censura e que não consegui até hoje recuperar, onde eu filmo um close do Antônio Pitanga e ele faz um depoimento que começa assim: “Pra vocês eu sou macaco. Mas isso vai acabar”.
Mas com relação ao cinema americano, uma coisa que eu descobri, quando eu cheguei nos Estados Unidos, era que a gente podia aprender muito mais no Belo Horizonte, no CEC, do que em Nova York, que lá só passava filme americano. Para você ver um filme fora o cinema americano, você tinha que lutar muito, procurar, pesquisar, ir nos lugares certos, essas coisas. Isso é muito importante. As nossas referências cinematográficas, a minha referência cinematográfica é totalmente francesa. É Godard, é Buñel, é Jean Genet, é Jean Cocteau. É um outro caminho, é o caminho da liberdade. E é também Mário Peixoto, Humberto Mauro. O cinema americano tem gênios, como John Ford, como Orson Welles, pessoas que nós admiramos muito. O Hitchcock mesmo morava lá quando eu fiquei nos Estados Unidos. Mas as nossas referências originais, onde a gente procurou, e se encantou, e amou, e se emocionou é muito mais que Jean Genet, que Jean Cocteau, os verdadeiros inventores do cinema, que são os franceses. E aqui, no Brasil, o Mário Peixoto é um cineasta espetacular. Cada vez que você vê O Limite, você fica totalmente emocionado. O filme muda todas as vezes que você assiste, e é sempre bom. Cada vez melhor.
No Jardim de Guerra, o que a gente procurou foi um exercício de linguagem nas câmaras. Nós decidimos, por exemplo, que todos os interrogatórios seriam feitos em um plano só. E a gente então ensaiava com a câmara na mão, com escada, com tudo, de plano geral até plano detalhe, voltar, abrir pro geral novamente, tudo com câmara na mão. Eram planos de três, quatro minutos, e inclusive a gente trocava de câmera dentro do plano. Um câmera, quando vai acabar o chassi, se próxima de outro que continua no mesmo lugar. Isso é um exercício de linguagem, de trabalhar com um plano. Ficou genial.
O filme foi financiado por você mesmo?
Tudo o que eu tinha conseguido na vida, trabalhando nos Estados Unidos, eu investi no filme. E perdi tudo, porque o filme foi proibido e nunca foi exibido. Nunca entrou em circuito comercial. Nós lançamos e dois meses depois foi promulgado o AI-5, que cassou os direitos políticos e individuais. Começou a valer a morte, a tortura. A cultura foi totalmente atingida por esse ato institucional e o filme, que tinha ficado pronto alguns meses antes, foi censurado, cortado, proibido, interditado e jamais exibido. Achei que ia pagar o filme. Achei que ia passar o filme, que ia lançar o filme, mas o filme foi proibido pela censura da ditadura militar. O que criou uma dificuldade pra mim maior ainda: os outros diretores, mais acomodados, não foram censurados. E o meu filme não existiu para essa história do cinema, porque foi proibido. A história, ela é muito superficial, não vê a fundo, só vê o que está na frente. Então, é muito importante uma revisão histórica, repensar o cinema daquela época, e também os projetos que foram censurados, e o quanto isso prejudicou a carreira de diretores.
Foi através do Jardim de Guerra que você conheceu o Hélio Oiticica, não foi?
Sim. O filme foi proibido, então eu não podia exibi-lo publicamente, senão poderia ser preso. Só de mostrar o filme, eu poderia viver todo aquele terror que o próprio filme retratava, a tortura e tudo o mais. Mas o Waly Salomão, que era meu amigo, pediu para ver o filme e decidimos fazer uma sessão no laboratório da Líder, que tinha uma pequena cabine de projeção, onde cabiam apenas umas seis ou sete pessoas. E ele decidiu levar alguns amigos, o Zé Celso Martinez Corrêa, que eu já conhecia desde o tempo que estudava teatro em Minas Gerais e que tinha acabado de dirigir o Rei da Vela, a peça do Oswald de Andrade, e o Hélio Oiticica.
Eu não conhecia muito de artes plásticas, então não tinha visto nenhuma obra do Hélio ainda. Mas gostei da figura dele, com os cabelos nos ombros. Era um louco como eu. Quando o filme acabou, o Hèlio se virou para mim e disse: “Neville, pela primeira vez eu estou vendo poster no cinema. E também um projetor de slide como linguagem. Você fez um filme genial, um filme diferente, que não é essa caretice que está aí. Você está buscando um outro caminho”. Porque no filme eu tinha feito essas experimentações: projeção de slides, de fotos da floresta amazônica, colocar pôsters nas paredes como informação. Eu tinha feito isso tudo sem nem perceber que era uma transgressão da linguagem.
O pôster surgiu no meio dos anos 1960, e, na minha visão, é a democratização da arte. porque não é uma obra de arte que fica encastelada num apartamento de colecionador e só os convidados podem ver. O pôster era algo que todo jovem podia ter em sua parede. E por isso mesmo me interessava muito essa imagem. A partir do quadro que está aqui na parede, você faz um pôster no tamanho natural, em uma tiragem de dez mil, cem mil, para o mundo inteiro. E qualquer um pode colar na parede, modestamente, sem moldura, um Rembrandt, um Gauguin, um Van Gogh, um Picasso. Eu uso uma série de pôsteres para situar a época do filme: pôster do Che Guevara, da Twiggy, do Trotski, do Mao Tsé-Tung, do Jimi Hendrix…
O Hélio percebeu essa força, essa transgressão poética que eu estava buscando, e a partir desse encontro ficamos muito amigos.
E daí, como você realizou os filmes seguintes?
Depois que Jardim de Guerra foi interditado, fiz outro filme, Piranhas do Asfalto. Mandei a cópia para a censura confiante que agora ia dar certo, mas novamente o filme foi proibido. Mas eu continuava com uma vontade muito grande de filmar, e o Hélio Oiticica me levou para conhecer o Mangue. Ele foi meu embaixador, meu guia. Chegando lá, ele me apresentou a todo mundo, aquelas pessoas maravilhosas, e foi uma experiência muito intensa. Eu falei: “Hélio, vamos fazer um filme aqui, cara. Vamos filmar esse lugar. Vamos fazer um negócio aqui”. E ele topou. E rapidamente pensamos no nome Mangue Bangue. Fomos pra casa pensando no filme, e nesse meio tempo saiu a bolsa dele da Fundação Gugenheim e ele foi para Nova York. E ele falou: “Eu vou para os EUA, faz o filme e leva lá”.
Eu só pensava em mostrar aquilo que eu vi no Mangue, do jeito que eu senti, aquela coisa da briga de galo. A briga de galo ia ser a narrativa do filme. Eles são iguais aos galos, um matando ao outro o tempo todo. Acaba um galo quase morto, né? A ideia era filmar uma briga de galo e depois dividir no filme inteiro, ela se tornando a narrativa do filme. Essa luta de um querer exterminar o outro, aquela covardia, aquele absurdo. Então, eu fiquei na briga de galo. Junto com isso, a bolsa de valores estava estourando. Era um grande momento na bolsa. E também o momento da Copa de 1970. O boom da bolsa era uma alegoria, porque tinha muito dinheiro e também muita pobreza rolando. Então eu pus o Paulo Villaça como um grande corretor da bolsa, bonito, elegante, de gravata, moderno. O Paulo era um homem lindo. E coloquei ele fazendo lance na bolsa. Aí, de repente, ele começa a passar mal e vai saindo, passando mal, no corredor, segurando as paredes, e começa a vomitar, e ele vomita nele mesmo, e cai tudo, e sai andando, tropeçando, caindo, rolando. Então, tem uma obra na rua, tinha chovido, estava cheio de lama, tinha uma poça d’água gigante e eu pensei: “Paulo, vai pra poça d’água”. Mas eu não podia falar. E eu só de pensamento, e ele foi direitinho, e caiu na poça, e eu falei: “Porra, Paulo! Rola na poça, enfia a cara”. E ele rolando na lama. Cara! Momentos geniais! É pra isso que vale a vida. Pedrinho de Moraes filmando. Só eu, Pedrinho de Moraes, Paulo Villaça e Marcelo França. Era tudo. Ele ali, rolando na lama, tirou um lenço do bolso, o lenço coberto de lama, passou na cara. Realmente, valeu a pena viver pra ver aquela cena. E, no final, ele fica nu, se transforma em animal, vai até aquela floresta nu, comendo folhas, dá uma mijada, chega no riacho, faz cocô, limpa com a água do riacho, e sai pulando, gritando e dançando. É uma cena incrível.
É uma cena muito corajosa para um filme naquela época.
Sem dúvida, sem dúvida. Mas eu tenho que agradecer a Deus, sabe? Eu agradeço a Deus pela liberdade que ele me deu. Eu agradeço a Deus pela coragem de fazer. Se você não sabe, como é que você teve a coragem? Mas eu fiquei com tanta vergonha que eu passei um ano com a lata fechada, sem mandar pro laboratório. Nas primeiras semanas, eu queria jogar fora. Eu levei pra Londres, dentro da mala, já que eu não pude revelar aqui, porque causaria problemas. E eu ia jogar no Rio Tamisa. Mas segurei. Passa um ano, revelei, e eles queriam chamar a polícia no laboratório. Eu falei: “Mas na Inglaterra não tem liberdade?”, “Liberdade nada. Sai daqui com essa porcaria”. Depois, dois anos se passaram, e o Geraldo Veloso montou o filme em Londres. Ficou genial. O filme passou muito tempo perdido, mas agora um pesquisador, o Frederico Coelho, reencontrou ele no MoMA, em Nova York. Estamos lutando agora para conseguir uma cópia.
Você tem um diálogo muito íntimo com os atores de seus filmes, não?
Sem dúvida, todos… O Guará Rodrigues veio de Minas comigo. A gente era colega de cineclube, e ele era o mais inteligente, o que sabia mais. Eu aprendi muito com ele, ele me ajudou a vida inteira, desde o meu primeiro filme, desde do curta, desde tudo. Ele foi o meu assistente, foi meu amigo, realmente participava de tudo. E era um cineasta maravilhoso. Eu que apresentei o Guará pro Rogério Sganzerla e o Julio Bressane. O Paulo Villaça é meu companheiro principal de arte dramática. Eu fazia escola de arte dramática em Belo Horizonte, na Haydée Bittencourt, e ele fazia escola de arte dramática em São Paulo, no Alfredo Mesquita. A gente trocava visitas e nos tornamos grandes amigos. O Paulo é o maior ator que eu conheci, realmente, e foi um cara maravilhoso. E o Joel Barcelos, que era esnobado pelo cinema novo, que estava na geladeira. Ele tinha feito Os Fuzis do Ruy Guerra, e era um ator espetacular. Ele é genial, a personalidade, a força do que é o Joel Barcelos. Eram atores com muita cultura, o que ajuda muito. É a coisa de diamante bruto, cercado de lama e de terra por todos os lados: se você pega esse diamante, dá uma ducha forte, tira essa lama toda, esse barro todo, essa porcariada toda, já melhora. Se você dilapida, melhora mais. Quando você vai fazer uma cena, se o ator conhece Buñuel e souber citá-la, ou se inspirar nela, isso pode enriquecer muito o filme. As pessoas estão sempre buscando inspiração em algo externo. Se for algo que preste, muito melhor. Então, tão importante quanto você ter uma boa ideia e um bom texto, é você se cercar, dialogar com pessoas interessantes, que irão entender e contribuir para o filme. É isso o que permite toda a liberdade que buscávamos naquele momento. E que continuo buscando.
Depois do Mangue Bangue, você fez ainda mais um filme com essa linguagem experimental, Surucucu Catiripapo, que também não pode ser exibido…
Sim. E tudo isso é muito difícil, porque a história é contada pelos vencedores, ignorando o que fica à margem. É uma história contada pelo ponto de vista medíocre de uma critica conservadora. E os meus filmes foram proibidos pela ditadura, então as pessoas não puderam conhecê-los. Os filmes chapa-branca, da turma que agradou a ditadura, são celebrados. Então, é preciso lutar muito para não ser eliminado, não ser esquecido da história. Mesmo dentro dessa história de cinema marginal. Eu inventei o cinema marginal! Eu fui um dos primeiros a fazer cinema experimental desta forma que ficou chamada de marginal, mas não sou reconhecido como tal. Falam sempre dos mesmos dois ou três diretores, como se fosse preciso reduzir tudo a isso. Não se pode contar a história do cinema brasileiro pela metade, a partir desse cabresto ideológico de críticos medíocres que escolhem seus diretores preferidos e esquecem o resto! É preciso recontar essa história, fazer justiça. Porque eu tenho consciência e sempre repito que os meus filmes foram esquecidos não porque eram piores do que os outros. Pelo contrário. Eles foram proibidos porque eram fortes, eram talentosos, eram avançados no tempo e no espaço. Filosófica, social e politicamente!
As pessoas acreditam erroneamente que fazer sucesso é produzir algo comercial. Mas há dois caminhos para o sucesso: um é copiar o que já obteve êxito antes, que são os filmes de cabresto. O outro é fazer o que nunca foi mostrado antes, com estilo próprio e liberdade. A ferramenta mais importante para um artista é a liberdade. Esse segundo caminho é muito mais difícil e excludente, mas foi o que quis para o meu cinema. E isso acabou sendo muito bom. O que parecia uma tragédia, para mim virou uma bênção. Acabei ocupando um espaço que ninguém ocupou.