Em 2021, eu e Adilson Mendes realizamos cerca de 12 horas de conversa com o cineasta moçambicano Ruy Guerra, um dos grandes nomes do Cinema Novo na década de 1960, autor de clássicos como “Os Cafajestes” (1962) e “Os Fuzis” (1963). A entrevista, realizada em alguns encontros em sua casa ao lado da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, se concentrou especialmente no seu período de formação, em Moçambique e Paris, antes de Ruy imigrar para o Brasil, e foi publicada integralmente no livro “Ruy Guerra – Cadernos de Cinema”, naquele mesmo ano. Reproduzimos um trecho da conversa aqui. [Sergio Cohn]
Quando foi que você decidiu que, entre todos os interesses que tinha por arte, o cinema seria a sua linguagem?
Eu sempre gostei muito de cinema. E houve um momento em que comecei a escrever algumas crônicas sobre os filmes que assistia. Uma pseudo-crítica, pequenininha. Em Lourenço Marques havia dois ou três cinemas principais, que eram os melhores. Deles, o Scala era o mais grã-fino. Ficava no centro da cidade, era frequentado pela alta sociedade. E, por acaso, eu fiz uma crítica de um filme que não tinha gostado e ela foi publicada num semanário que existia na cidade. Coincidiu que o dono desse cinema, o Scala, havia tido uma grande discussão com um amigo dele sobre aquele mesmo filme e tinham tomado posições opostas. Havia sido uma discussão muito apaixonada. Esse proprietário da sala de cinema leu a minha crítica e eu defendia exatamente o mesmo ponto que ele. Ele ficou tão satisfeito que foi falar com o meu pai e disse que queria me conhecer. E daí me deu passe livre para não ter que pagar para entrar no cinema. Ele disse: “Ruy, você é um crítico cinematográfico, tem entrada franca para todo o ano, para todas as sessões”. E me deu um cartãozinho amarelo. Me lembro até hoje daquele cartão.
Aquilo me deixou encantado: poder chegar no cinema quando quisesse, como quisesse. Aquele negócio: o meu pai era um funcionário público de segundo escalão, eu nunca tive uma roupa direto minha, era sempre processada pelo meu irmão. A nossa família era de classe média, o dinheiro era curto. Só mais tarde fui perceber o quanto difícil era a vida para o meu pai. Um exemplo disso é que em Moçambique havia uma coisa chamada férias graciosas, que era que todo funcionário tinha direito a um mês de férias por ano, e também a cada seis anos, os que viviam nas colônias tinham direito a um ano sabático, desde que fossem para Portugal. Para manter um vínculo com a mãe pátria. E eu só fui uma vez. Eu morei 18 anos em Moçambique, meu pai devia ter usado esse direito duas ou três vezes, mas ele não teve dinheiro para aproveitar esse direito.
Mesmo assim, com todas as dificuldades financeiras, o meu pai me ensinou uma coisa que me marcou a vida: que eu deveria sempre buscar o que há de melhor. Não necessariamente o que as pessoas consideram o melhor, mas o que eu considero o melhor. O meu pai preferia ter só um sapato de cromo alemão do que ter vários sapatos piores. Ele adorava roupa, só comprava o melhor. E me educou assim: “Abra mão de outras coisas, mas se concentra no que você quer”. Ele me ensinou a visar alto. Até hoje eu sou assim. Eu posso abrir mão de muitas coisas, mas não do que eu acho importante para mim. Isso obriga a uma disciplina, porque você não pode querer as outras coisas. Implica em sacrifícios.
No cinema também é assim. Passei períodos longos, de seis ou sete anos, sem filmar. Não é que não pudesse filmar, mas eu não faria o que não achava bom. É bom ficar seis anos sem filmar? É um horror! Mas se não posso fazer o que eu quero, o que acredito que é bom, melhor não fazer nada. Eu morei muito de favor. Eu dei muita sorte na vida, em muitos aspectos, mas as coisas não caíram do céu. Eu passei 20 anos sem ter onde morar, morei em quartos de empregada de amigos. Não tinha nada. É um dia dormindo aqui, outro dia dormindo ali. Ficar suspenso no cabo da brocha. Mas isso também dá uma disciplina muito grande de saber o que é que você quer. Obriga a saber o que você quer, porque as tentações são muito grandes. Eu recusei coisas que muitos não recusariam e que eu, se não tivesse sido moldado dessa maneira, não conseguiria recusar. Eu recusei trabalhar na televisão, por exemplo, porque vi que não era isso o que queria fazer da minha vida.
Quando você começou a filmar?
Foi por conta da amizade que eu tinha com quatro irmãos. Todos eles eram chamados por apelidos, menos um, que era o Chico. Os outros eram o Gordo, o Penca, que é uma gíria moçambicana para nariz grande, e o Gala Gala, que é um tipo de calango que tinha cores vermelhas na cabeça. Um dragãozinho que não faz mal a ninguém, que tem muito lá em Moçambique. Sobe nas árvores. Eu era amigo do irmão mais novo, o Penca. E o pai deles era um cara que tinha bastante dinheiro para o nível moçambicano. Ele era apaixonado por corridas de touros. Em Moçambique, montavam uma arena e uma vez por ano tinha corridas de touros, com os matadores portugueses. E ele tinha uma maquinazinha de 8 mm, só para filmar essas corridas.
O Penca então começou a roubar a máquina do pai e chamava o meu grupo para filmar. Eu dirigia os filmes. Depois, filmamos no Cais Gorjão, que é um porto enorme em Lourenço Marques. O primeiro porto de toda a costa oriental, onde Moçambique era rodeado por países de língua inglesa. E era tudo exportação de ouro e outros minerais. São dois portos principais em Moçambique, um em Lourenço Marques, que é esse grande porto, e outro na Beira. Moçambique é um país comprido, cortado por linhas férreas transversais. Não havia uma linha férrea de norte a sul, era só para servir os interesses da exportação dos produtos locais. Era só para isso que Moçambique servia na época. Então Lourenço Marques era o segundo maior porto da África. Só perdia para Alexandria.
A minha primeira ideia foi filmar o porto. Porque é uma baía muito bonita e logo depois tinha o porto propriamente dito, que é incrível. Eu filmei cenas ao meio-dia, dos trabalhadores se metendo debaixo dos vagões para dormir na sombra. Parecia um campo de concentração, eram imagens muito fortes. Eu levei quase dois anos fazendo esse filme, porque tinha que pegar a câmera escondido. A turma se cotizava para ajudar a comprar os filminhos de 8 mm. Os filmes naquela época eram reversíveis. Para ser mais barato, o próprio negativo passava por um processo de 12 ou 14 operações para virar positivo. Eu aprendi a fazer a revelação em casa.
Eu aprendi isso até porque eu mandava os filmes para a África do Sul para revelar, mas chegou um momento em que eles não retornavam, porque eram retidos como subversivos. Havia já uns movimentos de independência africana e o governo considerava que aquelas cenas prejudicavam a imagem da colônia. Então, não tive outro remédio do que comprar os equipamentos e começar a revelar em casa. Um amigo meu mais velho, o Ricardo Rangel, era ajudante de fotógrafo e me ajudou a montar os tambores de vidro, depois de madeira. A parte física que era complicada, fazer aquilo durante a noite, passar o filme todo num quarto escuro. Eram filmes pequenos, de dois ou três minutos, mas para manipular aquela coisa era muito trabalhoso. Claro que no início manchava, a lavagem não era boa. Mas fomos nos aprimorando a técnica e acabamos fazendo uma versão meio capenga do filme, que chegou a ser exibida uma vez, de forma caseira, e depois se perdeu.
O mar brasileiro é muito diferente do mar de Moçambique?
O mar? É. É diferente. Primeiro que o mar de Moçambique é cheio de tubarão. Você só toma banho em cercado. São águas muito quentes e tem muito tubarão. Inclusive tem um cercado que era em Lourenço Marques, uma época que a rede estava muito velha, entrou um tubarão lá dentro e ninguém podia tomar banho mais lá. Era um cercado relativamente grande com uma prancha de saltos no meio. A maré lá é inteiramente diferente também, porque baixa muito, então forma aquelas poças d’água e você pode ir nadar. Mas quando é maré cheia, é um mar bravio. Principalmente ali, que é Cabo Bojador, aquele que é representado como um monte de pedras soprando. É o chamado Cabo das Tormentas. E é curioso que é um mar muito verde em Moçambique. Há lugares em que a água vai para o azul. Mas lá é sempre um verde que parece esmeralda, muito bonito. E tem uma profusão fantástica de animais e de conchas. Eu sempre tive muita atração por conchas.
Você tinha contato com a cultura negra local?
A cultura era muito dividida. De um lado, os brancos portugueses, de outro, os negros nativos. Não tínhamos muito contato com a cultura negra, a não ser por nossas babás. Eu tinha uma babá negra, a Rosa, que faleceu faz pouco tempo. Ela trabalhou a vida inteira na casa da minha irmã, ficou sempre na família. E aquilo me marcou muito, inclusive politicamente. Foi quando comecei a ter alguma consciência da questão racial, por exemplo. De todo preconceito. Como eu poderia aceitar a discriminação racial se tive uma mãe negra, que me dava banho e me ensinou a falar? Um dia, ainda adolescente, escrevi um conto, “Negra Rosa”, onde a retratava com muito afeto. Provocou um escândalo na cidade. Imagina, como considerar uma negra como sua mãe em uma sociedade racial? Foi por causa dessa questão racial que eu comecei a tomar mais consciência política, entender a ditadura que existia em Moçambique na época. Isso foi muito importante na minha formação. Com 15, 16 anos de idade eu já era figurinha conhecida como subversivo, porque era uma sociedade pequena e havia muita repressão de todos nossos atos.
Essa convivência com os negros era mais até os quatro, cinco anos de idade, e sempre com babás e empregados, no cotidiano da casa. Depois, quando começávamos a ir para a escola, não havia mais vida conjunta. Era um mundo inteiramente apartado. A não ser para quem tinha, como era o caso do meu pai, uma casa de campo. Eu conservei uma forte ligação com os trabalhadores rurais, o pessoal que cuidava dos jardins, os caseiros. Como eu passava férias longas nessa casa de campo, eu tinha contato com o pessoal de lá, que não falava português. A gente era obrigado a encontrar um jeito de se entender. Eu tinha um amigo local que me ensinava muitas coisas práticas, como fazer uma palhota, como ajudar a puxar o burro. Aquelas coisas que as crianças gostam da vida no campo. A gente só conseguia se comunicar por mímica, mas eu adorava ele. Tudo que ele se ocupava eu ia com ele, então isso para mim era muito enriquecedor. Era enriquecedor para qualquer criança, era uma experiência muito rica essa coisa do cotidiano, que é viver uma outra vida a qual você de certa forma não está preparado pela escola ou pela experiência urbana.
A parte cultural negra só começou a aparecer mesmo depois da independência, porque era tudo muito apartado. Não era permitido ir para os bairros negros, era policial para todo lado. E mesmo assim era muito difícil o contato, porque Moçambique tem trinta e seis idiomas diferenciados. Alguns se comunicam entre si, mas outros não. Os países africanos foram divididos na régua, sem nenhuma centralidade lógica de fronteira. Uma linha reta, misturando diferentes povos, separando povos ao meio. Não há uma cultura unificada e nem uma língua.
Em que instante foi que se deu assim a escolha de ser diretor de cinema?
Olha, é engraçado, porque quando cheguei ao último ano do Liceu, que é a época preparatória para a universidade, tinha uma festa de finalização de curso. Os estudantes todos saíam do país, porque Moçambique não tinha universidade. Uma pequena parcela ia para a África do Sul e a maioria para Portugal. No baile de formatura, havia uma tradição de que os formandos usavam uma fitinha com as cores da profissão que iam seguir. Cada profissão tinha uma cor: advogado, médico. E eu, que não tinha profissão nenhuma, só queria ser escritor ou cineastas, que nem sequer tinham cores próprias, decidi que faria uma fita com cores próprias. Escolhi o vermelho e o negro, porque era o comunismo e o anarquismo juntos. E daí, quando perguntavam, eu dizia que seria cineasta.
Foi assim que eu realmente comecei a fazer cinema. Hoje penso que foi um processo de não me sentir um pária, de não me sentir desprotegido, um apátrida. Não me sentir abandonado. Eu inventei que estudaria cinema, o que na época era muito difícil. Existiam apenas duas escolas principais: o Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma e o IDHEC, o Institut des Hautes Études, em Paris. Tinha também a escola de Lodz na Polonia, onde se formou o Roman Polanski e outros grandes diretores, como o Ivan Passer.
Eu só tinha essas três opções para estudar. Depois, havia cursos esparsos. Mas escolas mesmo de cinema eram só essas três. Eu descartei logo a Polônia porque teria que aprender polonês, não era muito fácil. E eram seis anos de curso, com dois anos de preparação interna. Eu queria, como todo garoto quer, colocar logo a mão na massa. Quer criar já no primeiro dia. Então, ficar dois aprendendo coisas abstratas antes de começar a filmar não me interessava. O Centro Sperimentale era a minha vocação mais natural. Estamos falando da virada dos anos 1950, então quem estudava lá acabava aprendendo o realismo italiano. Mas tinha um problema: estrangeiro só podia ser ouvinte, não podia ser aluno regular.
Como no IDHEC eu poderia ser aluno regular, desde que pagasse, acabou sendo a minha escolha. Para os franceses, era um curso financiado pelo Estado. Mas lá era muito complicado de entrar, tinha que fazer um ano de estudos preparatórios. Se apareciam 50 ou 60 candidatos, só eram aprovados 10 ou 12. Na minha turma, só foram aprovados oito. Mas, depois de ingressado, o tratamento era igual para todos. Agora, se você pudesse pagar integralmente, entrava sem fazer exame. Foi o meu caso. O IDHEC era radicalmente caro. Para mim, então, que tinha dinheiro exato para fazer o curso, tinha que ter disciplina.
Eu só pude fazer o IDHEC porque a minha tinha morrido no acidente de avião. O meu pai lutou muito e conseguiu um valor alto da companhia de seguros, que foi dividido entre os três filhos. Para mim, esse valor pagava dois ou três anos de estudo em Paris. Como eu nunca tinha administrado nada, pedi para o meu pai para me enviar mensalmente uma soma de dinheiro, mas ele recusou. Eu fiquei com tanto medo, porque quando fiz os cálculos, vi que dava uma soma justa para aquele período de tempo. Então, o que eu fazia? Todo mês eu tirava o valor que tinha direito para aquele período, e se gastasse antes, eu ficava sem dinheiro nenhum até o próximo mês. Eu cheguei a passar fome em Paris porque não fui buscar o dinheiro no banco antes da data certa.