Entrevista realizada por Sergio Cohn, Renato Rezende e Pedro Cesarino, e publicada originalmente no volume “Traição/Vínculo” da Revista Azougue, em 2007.
Na trajetória da arte brasileira, nas escolhas de nossas vanguardas, sempre houve um embate entre uma tradição construtiva e uma outra mais ligada à experiência, ambas de matriz europeia. Como você vê isso?
Nós somos europeóides e temos uma contribuição importante a dar. Essa contribuição há de ser investigada exatamente na medida em que é possível colocar em crise essas matrizes que nós herdamos. Colocar em crise a precariedade com que elas foram assimiladas e as alterações que aconteceram no decorrer dessa assimilação. Eu acho que aquilo que surgiu no Brasil de legítimo e que pode ser considerado uma contribuição real, na arte produzida aqui nesse lugar que se chama Brasil, deve ser pensada à luz dessas contradições. Decerto, há um antagonismo interessante entre essas duas posturas, a construtiva e a de experiência, e raramente você consegue congregá-las em um artista. São poucos os artistas que congregam e conseguem pacificar, pacificar entre aspas, essas duas vertentes. Eu acho que há essa tentativa na minha obra. Agora, é preciso rever essas matrizes e é preciso compreender onde essas matrizes hão de ser transformadas. Toda a tradição construtiva brasileira está ligada a uma série de pressupostos que são um pouco arcaicos dentro da própria arte construtiva européia, ligada a um tipo de espaço, a uma espacialidade pensada a partir de uma coisa newtoniana, uma geometria euclidiana. Enfim, há a necessidade de se fazer uma revisão dessas noções e a possibilidade de adotar outros modelos mais avançados, porque mais adequados. Essa abertura também vai encontrar a questão da experiência porque é competente para pensar tal questão. É nesse momento que se começa a superar modelos antigos na arte que se produz aqui, com uma coisa mais vigorosa. No momento em que você muda as matrizes, você muda os modelos.
As artes visuais no Brasil sempre estiveram voltadas para a questão da identidade. Sua inserção recente no circuito internacional levou a um afastamento de tal diretriz, muito embora esse boom da arte brasileira no exterior ainda pareça atrelado à sua leitura como expressão identitária. Como pensar isso atualmente?
Acho que a gente enfrenta duas dificuldades, a primeira é a vontade de uma visão estranha à experiência que se vive no Brasil em termos de arte e de cultura. Uma vontade quase preestabelecida, como se fosse necessário para nossa arte lidar com problemas de identidade, como se o fato de sermos jovens, de sermos um país culturalmente miscigenado, nos colocasse em busca de uma identidade. Busca essa que me parece mais presente no olhar exterior sobre o que se constitui como coisa legítima da nossa produção. Então, por um lado, há que tentar desmanchar essa bobagem de que estamos procurando identidade e, por outro lado, tentar mostrar a eles que a falta de identidade que a gente lida é a rigor a atualização da questão moderna vivida efetivamente numa cultura sem identidade, ou com uma dinâmica de identidade diversa. Talvez a nossa identidade, e a coisa que a gente tem a ensinar, ou a acrescentar, ou a contribuir pra esse modelo de cultura europeóide que a gente herdou, seja o fato de que podemos não ter uma consistência de identidade, ou seja, ser a própria ausência de identidade em mutação contínua. Vamos dissolver a questão da identidade como questão central e falar a partir já dessa mutação constante que nos é característica por determinados fatores históricos. Quer dizer, se você consegue imprimir isso na sua poética, na sua obra, você tem efetivamente alguma contribuição a dar para a cena atual da cultura no Ocidente, na medida em que o Ocidente todo está vivendo esse processo que a gente experimenta há mais de cem anos, e que já nos foi explicitado pelo modo como o modernismo foi pensado no Brasil. Então essa é uma experiência efetiva, com a qual podemos contribuir. Isso veio de Oswald, da Antropofagia, passa pelo Hélio Oiticica, passa pelo Flávio de Carvalho, passa por inúmeros autores, poetas, artistas. E eu acho que esse é o grande legado. É o grande legado que nos cabe refletir. Você vai encontrar no Cabral uma base muito mais sólida do que em Oswald, mas a atitude do Oswald em alguns momentos da produção dele é muito mais lúcida e transformadora do que a de Cabral. Então, é um dilema para um artista trabalhar ao mesmo tempo com uma consistência poética, com rigor, e com uma vontade de transformação. A cultura brasileira muitas vezes parece não absorver a própria matriz que determina essa flutuação da identidade e consolidar uma produção, uma reflexão. Então, volta e meia se redescobre o Oswald modernista, como se fosse uma surpresa inédita.
Quais são as premissas de seu trabalho? O seu modo de criação?
Eu parto de vários campos. Eu parto da flutuação de uma série de territórios. Trata-se de resgatar um território da linguagem que possa levar à experiências novas. Trata-se de criar uma linguagem mais densa, mais complexa. Por isso digo que, em geral, o que faço é poesia. Eu me coloco na posição do poeta porque acho que poesia não é apenas coisa escrita, falada ou cantada. Refiro-me ao que está por trás da poesia, e isso é texto em qualquer forma, através de qualquer linguagem. E a gente pode manipular qualquer campo da linguagem para ascender a esse território. Esse território é o quê? É o território da densidade máxima da experiência da linguagem, e o que se procura é isso. Se você expandir a noção de experiência, a noção de testemunha (antes de falar em público e observador, eu prefiro falar em testemunhas; acho que quando você está diante de uma obra de arte, você é testemunha, é a sua experiência que está em jogo), o que uma obra de arte faz é estimular, exacerbar, fazer funcionar um tipo de percepção diferente. Então, é como se houvesse uma câmera filmando, que é uma câmera neuroquímica, ou uma coisa assim, dentro de cada um, registrando aquilo que está ocorrendo com ele. A responsabilidade ética de um artista é saber que aquilo é indelével, que aquela experiência pode ficar marcada, pode ser marcante, deve ser marcante, ainda que possa ser esquecida, ela vai estar escrita no cérebro de um cidadão, marcada de algum jeito. Eu acho que arte não tem nada a ver com comunicação: tem a ver com revelação, influência, com o fenômeno. Colocar luz sob uma coisa que não está iluminada; mostrar a transparência no opaco, ou então abandonar a idéia de transparência. O que procuro são estados constantemente alterados. A obra veio para alterar, para diluir, não no sentido de dissolver, mas de abaixar a precipitação de uma coisa dentro da outra, de conectar uma coisa com outra, de fazer uma matéria penetrar em outra. A construção contínua da obra é isso, é você se propor a sucessivas experiências e transformações sucessivas. Se não for através de uma estrutura diferente, diferenciada, essa experiência vai ser diluída. Vai ser reduzida àqueles modelos que a gente conhece. O imaginário e o simbólico se encontram e falam dentro de uma linguagem, da estrutura de uma linguagem. A estrutura da linguagem é o que viabiliza isso. A rigor, o que está por trás disso tudo, voltando à coisa da forma, é uma investigação de como conectar coisas. É esse o território da minha investigação: como podemos conectar duas coisas inteiramente diversas e a partir dessa conexão criar algo também distinto. E como essa coisa que surge pode nos surpreender.
Então, conectando você acaba por transgredir registros ou regimes ontológicos, digamos assim, e não exatamente sociológicos ou políticos. Desta forma, seu trabalho se dá numa espécie de campo ampliado que transcende fronteiras do saber e disciplinas do conhecimento. Na sua relação com a ciência, por exemplo, surge a questão dos limites do humano, das relações de mutações e de gênese – penso aqui especificamente em Laminadas Almas. De que forma você integra esses elementos? Quais são os processos da ciência que você utiliza e por quais se interessa?
Tem uma figura fascinante, do interior da França, o Jean-Pierre Brisset, que diz que a linguagem vem dos sapos, do coaxar dos sapos. Ele era um alucinado e os surrealistas o descobriram. Propõe uma coisa que me interessa muito, que é a chamada cabala fonêmica. Quer dizer, como as coisas se conectam foneticamente, como você pode atribuir sentidos diversos a partir da fonêmica. Existe uma tradição que começou com Duchamp (um grande leitor de Brisset, aliás), e que impregnou toda a arte moderna e contemporânea, que são modos não ortodoxos de conjugar coisas. E é evidente que a linguagem e o inconsciente se estruturam também desse modo, mas não é o modo que nos ensinam a usar a linguagem. Então, talvez isso apareça como transgressivo na medida em que não é o modo oficial que se costuma usar a linguagem. Eu faço uma paródia da ciência. Quer dizer, antes de falar do meu interesse pela ciência, talvez eu falasse de meu interesse pela intuição científica, e não pelo método científico. Há algo de poesia, claramente o pensamento poético se expandiu em todos os territórios do fazer humano, e que podem ser convertidos em linguagem. E é evidente que a ciência oculta muito dessa gênese, desse momento em que a intuição brota e e parte em direção ao conhecimento cientifico. No caso de Laminadas Almas, a ciência foi usada mais como uma paródia do laboratório. Agora, evidentemente, há uma comunicação com a linguagem da ciência, referente à geometria, ao modelo de espaço, ao modelo de tempo, ao modelo de física com o qual você está lidando. Na ciência, há a necessidade de um rigor enorme, de construir uma linguagem que explicite suas questões em um campo muito preciso. Na arte é o contrário, há a necessidade de ampliar ao máximo possível esse campo em termos de linguagem. É necessário que o que se deduz dessa intuição seja explicitado, faça-se presente, a fim de que adquira consistência e possa perdurar. Ciência e arte vão em direções opostas, mas o principio é o mesmo, e me interessa sobretudo esse princípio, que faz da linguagem o instrumento do pensar.
Essa paródia que você faz da ciência também se dá em outros campos, como no campo da religião. Muitos de seus trabalhos parecem evocar uma experiência do sagrado, no sentido restaurador e original que Bataille dá a esse termo, ou trazem elementos místicos ou mágicos, compreendendo a mágica como uma influência sobre outrem. Também há uma forte presença da ritualística cristã…
Acho que a gente pode evitar a palavra ‘mística’ tranqüilamente, não? Quando a gente se refere a essas palavras, da ordem do sagrado ou da ordem do mágico, a gente termina usando uma estratégia ruim. Não que as utilizemos de um modo errado, mas acabamos por nos basear em uma estratégia que já foi dominada. Então, quando se fala de mágico, vem a pergunta. Você vem de onde? Do Brasil. Ah, busca de identidade, coisa mágica, coisa mística. A coisa mais mágica que eu conheço é o Boogie Woogie de Mondrian, que entra em contradição com o racionalismo, que desmobiliza você e você não sabe mais onde está, em que espaço está, quando testemunha a obra de frente. Então vamos evitar essas palavras porque elas já foram dominadas e nos colocam taticamente em posição subalterna. Como se a mágica estivesse ligada a um modo primitivo de pensar. Eu acho que nós temos uma mágica, sim. Mas é uma mágica além da razão, uma mágica além das possibilidades das estruturas da linguagem que se usa na vida comum. É uma coisa onde a razão não penetra. Nós estamos pensando além da razão, não aquém da razão. Quando se fala de mágica, pretende-se uma impossibilidade de acesso à razão e uso de meios primitivos.
Existe um limite da linguagem e este limite se faz pela experiência. Quando a experiência não comporta mais linguagem, encontra-se um vazio. O caráter ritualístico é o caráter da experiência. E é evidente que isso termina em uma forma de paródia. A relação com a ritualística se faz presente em alguns de meus trabalhos. Os ritos católicos, que tecnicamente são muito pobres, estão impregnados, queira ou não, na minha formação. A presença do cálice não é inocente, não é mesmo? Quando você lê Santo Agostinho, você vê que a questão da fé pode se atualizar na questão da estética. Quando ele fala claramente na revelação da fé, você pode falar do desconhecido da coisa estética, da impressão estética. Há uma conversão possível disso em outros valores… Quer dizer, toda experiência pode ser transformada em um ritual. Lavar as mãos, por exemplo. Na missa, o padre lava as mãos simbolicamente, com a presença da água, antes de tocar sei lá o quê. Isso pode ser transformado em ritual e também em uma experiência estética vigorosa. Lavando as mãos todos os dias, você está fazendo uma escultura de sabão. Pode-se levar em conta que isso é uma experiência estética: da umidade da água, da temperatura da água, da fricção com a textura do sabão e do resultado disso no sabão. Isso é ao mesmo tempo uma performance e uma escultura. Mas pode ser também uma religião. Tudo isso tem que estar junto em uma obra. Ao colocar qualquer elemento dentro de uma obra, é preciso que você coloque sua carga máxima de significados, e aí você vai encontrar uma presença forte.
Um poeta que eu gosto muito é o Dylan Thomas. Ele disse que escrevia usando sinônimos sucessivos, que compunha uma sentença, depois ia buscar o sinônimo de cada palavra e depois o sinônimo do sinônimo, e o sinônimo do sinônimo até dissolver numa instância mais remota o sentido preliminar daquela sentença, daquela frase. Eu acho que esse é um dos processos presentes no modo pelo qual eu preparo uma obra. Essas camadas, o primeiro gancho, o primeiro acesso, podem se dar numa ordem psicológica, até ultrapassar o sujeito. Basta você lidar com a linguagem para que você esteja sempre além de si mesmo, porque você se surpreende. A grande herança moderna é exatamente essa. A herança de Poe, de Baudelaire, é falar dessa estranheza que as coisas são capazes de produzir nos sentidos. Colocar o heterogêneo, conjugar o heterogêneo é criar sentidos novos. Uma obra de arte é um modelo que pode ser alçado a diversos campos, ou não é nada. Essa é experiência forte que a arte oferece, que ela pretende oferecer. Você pode abstrair completamente o fato de serem linhas, de serem pontos, de ser latão, etc., e transformar isso em um modelo, e pensar como um modelo. Agora, cada modelo tem sua versão, cada obra é uma versão de coisas, cada obra tem sua fantasia e sua estrutura dentro disso. O que eu espero do tema é que ele me ensine. Eu informo, eu faço o poema aprender de mim tudo aquilo que eu sei, depois eu espero que ele me ensine. Eu acho que essa é a fórmula, se há alguma.
Seu trabalho inclui a narrativa do outro, a experiência da alteridade. O quanto de ruptura há nele? Qual o vínculo que conecta o espectador à sua obra e qual é o lastro que o criador pode ter nos dias de hoje diante dessa abertura total?
Ruptura não é a idéia que me interessa mais, pois uma ruptura se faz necessária para inaugurar um novo campo quando há resistência. Isso fica claro quando compreendemos os surrealistas em sua época e vemos que eram todos burgueses, e que a sociedade burguesa resistia a essas possibilidades. A resistência hoje não é dessa ordem, quer dizer, as questões de agora são como se fazer entender, como não ser neutralizado; como não ser capturado dentro de um sistema que assimila tudo, onde você pode fazer tudo. Os surrealistas e os dadaístas não podiam fazer tudo, então havia essa necessidade de transgressão. Hoje, lutamos contra a neutralização das linguagens. A publicidade assimila tudo. A sociedade assimila tudo. A questão agora é como se fazer ouvir, como mostrar que a experiência que você propõe é veemente, é importante. É preciso então ouvir os poetas, não é? Vamos ouvir o Hélio Oiticica, por exemplo, que está muito na moda e que foi finalmente despertado. Você vai ver a exposição que hoje está circulando fora do Brasil – por exemplo, em Houston, no Texas –, com uma opção clara de mostrar a constituição de uma trajetória. Apresentam obras extremamente rigorosas do ponto de vista formal, com um pensamento extremamente claro, até a transgressão desse pensamento estruturado que ele fez a partir da ruptura com o espaço, indo em direção ao espaço da cor, à conquista do corpo, etc. Evidentemente, abre-se mão do banditismo na obra do Hélio, da reivindicação da marginalidade, etc. É preciso olhar isso como uma continuidade. É preciso pensar que Hélio partiu de uma estrutura bastante rigorosa, era preciso que ele tivesse consolidado formalmente uma reflexão para fazer tal transgressão. A falta da presença de instituições, ou da sedimentação formal (através da perfeição, da exatidão, da concisão) leva a uma ausência de paradigma para que sejam criadas rupturas. Então, essas rupturas terminam não rompendo com nada, rompendo apenas como uma fantasmática pessoal que você constrói. O Hélio é um bom instrumento para se pensar isso, para se pensar a relação dele com as instituições e como hoje, por exemplo, a obra dele aparece para as instituições estrangeiras como uma grande obra sólida e consistente, como um pensamento realmente original. E para pensar também como esse mesmo Hélio termina sendo absorvido no Brasil pela geração mais jovem como o rebelde, como o Hélio da transgressão, ou o Hélio da coca, ou o do banditismo, como se ele tivesse chegado a isso do nada, apenas por uma identificação sociológica com o povo oprimido das favelas. Como se tivesse chegado a isso espontaneamente. E não foi, não é assim. Quer dizer, é preciso uma mistura de Cabral com Oswald para que a gente consiga fazer uma transformação efetiva, para que o trabalho, a obra de cada um tenha uma consistência maior.