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Entrevista: Virgínia Rodrigues

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Entrevista realizada por Sergio Cohn, Leonardo Lichote, Ana Paula Simonaci e Paulo Almeida, em 2020. Publicada originalmente no Cadernos de Música – Virgínia Rodrigues (Revistas de Cultura, 2021).

Virgínia, para começar, você pode nos contar um pouco sobre a sua infância?

A minha infância, como toda criança, adolescente e jovem de periferia, de subúrbio, foi muito difícil. Muito difícil. Eu nasci em Salvador, na Bahia. Nasci em Sete de Abril, que é um bairro aqui perto de onde eu moro. Meu pai era aposentado por invalidez e vendia picolé para complementar a aposentadoria. Minha mãe foi empregada doméstica. Mas aí, depois minha mãe descobriu que, como feirante, ela ganharia muito melhor do que como empregada doméstica e foi trabalhar na feira de São Joaquim. É claro que nossa vida melhorou 80%. Porque nesse país… Agora eu não sei, mas na época de minha mãe, empregada doméstica não recebia salário, ganhava esmola. As patroas davam esmola e achavam que estavam pagando.

Ela vendia o que na feira?

Minha mãe vendia pimentão, vendia alho, vendia tomate e banana. Sempre foi muito difícil, porque o rapa escarrerava, tinha que correr do rapa, da polícia que vinha pegar todas as mercadorias. E mesmo assim a vida da gente melhorou 80%. Mesmo com todo esse sacrifício. Porque depois que minha mãe foi trabalhar na feira não faltava comida em casa, não faltava fruta, não faltava legume.

Você acompanhava ela na feira?

Eu acompanhei uma época. Mas depois fui ficando adolescente e quando fiz 11 anos ela ficou com medo e aí eu voltava para casa. Antes, eu e meus irmãos estudávamos perto da feira, a gente saía da escola e ia ficar com ela na feira. Mas aí eu fui ficando mocinha e ela não quis mais que eu ficasse na feira. Então, eu saía da escola, passava na feira, via ela e ia para a casa. Ficava em casa com o meu irmão menor e meu outro irmão que também não era chegado, não gostava da feira. Mas foi uma época boa, porque eu era inocente e quando a gente é inocente, a gente não vê as coisas. Meu Deus, quando a gente é criança, a gente é tão inocente. É tão boa a inocência. A inocência é boa porque a gente não vê as coisas, não vê a maldade. Não vê as perversidades, não tem conhecimento direito das coisas. Eu não sei se era viver na ignorância ou se era inocência. Quando eu fiquei adulta foi que eu vi que muita coisa que eu passei com a minha mãe, com meu pai, com meus irmãos, nós não precisávamos ter passado. Aí eu perdi essa inocência, né?

Que tipo de coisas?

 Por exemplo, a gente nunca pôde ter uma escola bacana, uma boa moradia, uma saúde decente, uma educação decente. Coisas que o pobre não tem no Brasil até hoje. Eu tenho 57 anos e a gente já vivia isso na época da minha infância e o Brasil continua igual. Nesse aspecto o Brasil não avançou em nada. O Brasil continua com uma péssima educação. Caidaça, né? Saúde, pelo amor de Deus! Eu me lembro que quando eu era criança minha mãe pegava uma fila às quatro horas da manhã para chegar no médico, só para pegar uma ficha para eu ser atendida, para os meus irmãos serem atendidos. Se não fosse assim, a gente não conseguia atendimento médico. E continua sendo hoje, não mudou nada. Continua tudo como era antes no quartel de seu Abrantes.

E nessa situação, com uma série de dificuldades, como é que foi a sua formação musical? Como é que a música chegava a você?

Aí é que vem a coisa boa da minha infância e da minha adolescência. A minha formação musical é de rádio. Eu sou da época que não existia jabá. Então, eu sou da época que você ouvia coisa boa no rádio. É claro que você também ouvia outras coisas que não eram tão boas… Mas eu sou da geração em que nós tínhamos o direito de escolher. Então, eu cresci ouvindo Elis Regina, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gal Costa. Eu cresci ouvindo “Ave Maria” de Schubert, “Ave Maria” de Gounod. Eu cresci ouvindo Bidu Sayão. Eu pensava que Bidu Sayão era homem. Por aí você tira a minha inocência. Eu criança, ouvindo Bidu Sayão cantando o “Canto Para Uma Só Voz” no rádio, achava, por causa do nome, que era um homem que cantava fino. Um homem com voz aguda…

A minha formação também é de igreja. Porque depois eu cantei em corais de igreja, cantei no Mosteiro de São Bento, cantei também no coro de Câmara da Bahia, no coral da fundação do Estado da Bahia. A minha formação musical é basicamente de rádio e igreja. O que sempre me levou à igreja nunca foi a igreja. Eu nunca fui à igreja pela religião, eu sempre fui à igreja por causa da música. Porque eu nunca gostei de igreja e não gosto até hoje. As únicas formas que eu tinha de ter uma coisa com música, de estar perto da música, eram a igreja e o rádio.

O que mais a emocionava com música quando era criança? Quais foram as primeiras músicas que você gostou?

Tinha muita gente que mexia comigo, mas samba é uma coisa que eu gosto muito e minha cantora de samba preferida, todo mundo acha graça quando eu falo, sempre foi a Clara Nunes. Por causa da forma como ela canta. Quando ela canta “Juízo Final”, aquela interpretação me embalou muito. Porque ela se foi, mas a obra dela ficou, né? E a versão dela de “Juízo Final” foi tão importante para mim que a canção depois entrou no meu repertório.

Quando a Clara Nunes morreu, eu já não era mais adolescente. Quando anunciaram a morte dela no rádio, eu lembro que a minha mãe teve que me dar água com açúcar para eu me acalmar, porque eu chorei muito. Eu fiquei muito emocionada. A minha mãe me falou: “Mas você nem conhecia ela, ela nem sabia da sua existência!” Mas para mim, parecia que eu tinha perdido alguém meu, de tanto que eu gostava do canto dela e fazia parte da minha vida.

Quando você se deu conta que cantava também?

Desde criança. Porque a primeira vez que cantei em público, eu tinha apenas seis anos de idade. Foi numa festa do Dia das Mães na escola. Eu cantei uma música em homenagem às mães. Aqui na Bahia, até hoje faz sucesso o Dia das Mães nas escolas. E eu cantei em homenagem à minha mãe. Não só a ela, mas a todas as mães que estavam ali. Era uma música antiga. Foi quando a professora descobriu que eu tinha facilidade para música, que aprendia com facilidade, e me botou para cantar. E eu comecei também a cantar na procissão, porque a minha mãe era católica. A minha avó gostava de me levar para a procissão para se exibir às minhas custas. Ela gostava de mostrar a neta dela cantando.

Na feira da sua época, ainda tinha os cantadores?

Não. O que tinha era que se vendia muito LP usado no chão. Na Feira de São Joaquim não tinha esse negócio de cantador de feira, não. No Sete de Abril tinha um homem que passava vendendo caranguejo e cantava “Olha o caranguejo!” E uma senhora que vendia tainha. Esses vendedores de rua ainda usavam o canto para atrair os compradores. Mas era só isso. Nos anos 1980, eu parei de ir para a feira, porque, como disse, já estava moça e a minha mãe não deixava mais eu ir. Eu ficava em casa tomando conta do meu irmão menor. Eu tenho três irmãos, uma mulher e dois homens. E logo depois, aos 13 anos, eu comecei a trabalhar. Na minha casa, todo mundo começou a se lascar cedo.

Qual foi o seu primeiro trabalho?

 Minha primeira profissão foi de manicure. Eu trabalhei como empregada doméstica, lavei roupa para ganhar dinheiro. Mas a minha profissão foi manicure. Fiquei mais tempo como manicure do que como empregada doméstica. Porque para ser empregada doméstica é preciso ser subserviente e eu nunca engoli sapo. Sempre fui desaforada, nunca fui subserviente. Então a minha durabilidade como empregada doméstica foi pouca.

Você se lembra de alguma situação constrangedora que sofreu trabalhando como empregada doméstica?

Lembro. Mas não é coisa muito boa de se lembrar não. Porque eu xingava, mandava nego ir pra não sei onde, se enchesse muito o meu saco. Uma vez em uma das casas que eu trabalhei a dona da casa perguntou a mim: “Quantos filhos você tem?”. Eu tinha 24 anos. Eu disse: “Eu não tenho filho não”. “Você não tem filho?”. Eu disse: “Não”. Ela: “Milagre”. Aí eu disse: “Milagre por quê?”. Ela: “Porque toda empregada doméstica da sua idade é cheia de filhos. A primeira coisa que faz é se encher de filho”. Eu falei: “Mas eu não tenho filho não”. Ela disse: “Você mora com quem?”. Eu disse: “Eu moro com o meu pai e com a minha mãe”. Aí ela disse: “Por isso que você é assim”. Eu disse: “Assim como?”. “Você não precisa, né? Se você trabalhar, você come. Se você não trabalhar, você come do mesmo jeito”. Eu disse: “Graças a Deus”. Entendeu? Como eu não tinha filho para sustentar, não precisava aguentar todo o desaforo.

A maioria das empregadas domésticas sempre tem filhos e de diferentes maridos. O primeiro não dá certo, aí tenta o segundo, também não dá certo. E vai tendo filho, vai tendo filho. Daí é obrigada a engolir desaforo. Naquela mesma casa acontecia um caso desse. Uma pessoa que trabalhava e tinha muito filho e que engolia muito sapo porque precisava engolir. Tinha que conseguir sustentar os filhos, não é? E ela disse: “Por isso que você é assim. Você não nasceu para ser empregada doméstica”. Foi isso que ela disse para mim. Anos depois, ela me encontrou no Teatro Castro Alves, depois de uma apresentação minha, e disse: “Eu não lhe disse que você não nasceu para ser empregada doméstica?”.

Tem uma história sua muito bonita com um disco da Aretha Franklin, você pode nos contar?

Ah, menino, esse disco, você não sabe… Falar disso é uma coisa que me emociona. Porque eu devia ter uns 11, 12 anos, e vi um cara vendendo um monte de discos no chão. Tinha Odair José, tinha Gilliard, tinha um monte de disco velho, e entre eles estava o dessa mulher, que eu nem sabia falar o nome direito: Aretha Franklin. Vou falar a verdade: só porque achei o nome diferente, porque era mulher e era preta, eu comprei o disco. Só que eu não tinha onde tocar, porque na minha casa não tinha vitrola. Só tinha rádio, era o único meio de comunicação. Na minha casa não tinha nem televisão. E aí o meu irmão ainda fazia gozação, porque a gente brigava muito, e para me irritar ele ficava olhando pra mim e girando o dedo, dizendo que eu teria que tocar o disco com o dedo. E daí eu chorava. Claro. No fim, deixei o disco na casa de um amigo que tinha vitrola, e ia para lá de vez em quando para ouvi-lo.

Quando viajei pela primeira vez para fora do Brasil, saí da Bahia com o Bando de Teatro Olodum para participar de um festival de teatro na Inglaterra, eu entrei numa daquelas lojas maravilhosas de disco que existiam na época. Fiquei deslumbrada! Pense em tabaréu, era eu mesma. Era uma tabaroa mesmo, assumo. Fiquei louca, deslumbrada quando vi aquele negócio grandão cheio de discos. Eu nunca tinha visto nada assim. Eu não comprava disco porque não tinha dinheiro para comprar, mas naquela viagem tinha ganhado um cachezinho. Eu fiquei doida, gastei tudo em discos. Para não dizer que não comprei nada além, comprei um presentinho para a minha mãe. Mas o resto foi em disco: Jessye Norman, Aretha Franklin, Bessie Smith, Cecilia Bartoli, Natalie Cole. Menino, eu fiquei louca.

E no meio de tudo eu encontrei aquele disco da Aretha Franklin, um CD com a mesma capa do disco que eu tinha. Aí eu comecei a chorar. Ninguém entendia porque eu estava chorando. Era o mesmo disco, igual, igual! As mesmas músicas, a mesma capa, só que em CD. Só que daí, naquela época, eu já sabia quem era Aretha Franklin. Já sabia que era soul, já sabia que era blues. Já sabia a diferença.

E aí anos depois você cantou para o presidente dos Estados Unidos…

Pois é. Mas daí eu já estava com o primeiro disco gravado. Já tinha lançado Sol Negro em 1998. Eu fui convidada pela primeira dama do país na época, que era a dona Ruth Cardoso, para cantar num jantar no Palácio da Alvorada, onde fica o presidente da República. Era um jantar de Bill Clinton e Hillary Clinton. E fui avisada que não podia quebrar protocolo, essas coisas. Mas não precisou eu quebrar protocolo nenhum, porque quem quebrou foi o presidente dos Estados Unidos mesmo…

O que ele fez?

Ah, ele saiu da plateia no final. Na última música, em “Adeus, Batucada”, ele saiu da plateia e veio pra cima dançar comigo no palco. Ele estava muito emocionado com o show e a música e veio com os dedos para cima, dançando. Veio ele e o sr. Fernando Henrique Cardoso, os dois com os dedos pra cima. Eles mesmos que quebraram o protocolo, não fui eu não.

Voltando um pouquinho atrás, como foi a sua aproximação com o Bando de Teatro Olodum?

Pois é, o Bando foi o seguinte: eu cantava em igreja e o Marcio Meirelles que foi quem me descobriu. Eu costumo falar que quem me lançou para o Brasil e o exterior foi o Caetano Veloso, mas quem me descobriu foi o Marcio Meirelles, diretor do Bando de Teatro Olodum na época. Foi ele que me levou para o palco. Ele foi responsável por crescer em mim a vontade de ter uma carreira profissional, porque até então eu estava na viagem de manicure mesmo e de só cantar em coral. E aí o Marcio me descobriu numa igreja cantando o Oratório de Santo Antônio. Ele precisava de alguém para botar no Bando de Teatro Olodum para cantar uma música chamada “Verônica”, que eu gravei depois no meu primeiro disco, Sol Negro. E aí ele me convidou e me levou para o Bando de Teatro Olodum. Foi assim que eu entrei no Bando. Foi ele também que me apresentou ao Caetano, que gostou muito e quis ajudar a produzir um disco meu.

O Marcio Meirelles e o Bando tinham um teatro bastante político, refletindo sobre a questão toda do Pelourinho, da gentrificação…

Ah, sim. A minha primeira peça no Bando de Teatro Olodum chama-se Bye Bye, Pelô. Ela fala sobre a expulsão das pessoas do Pelourinho. Quando as pessoas estão sendo mandadas embora. Mas antes disso teve Essa é Nossa Praia, teve Ó Paí, Ó. Nessa época eu era plateia, eu ia assistir. O Bando de Teatro Olodum fez no ano retrasado 40 anos e vários espetáculos diferentes, alguns com tom bastante político mesmo.

Quando você diz que era plateia, quer dizer que você acompanhava a cena de teatro também da cidade? Você gostava de acompanhar os espetáculos?

Eu comecei a acompanhar quando entrei no coral. Foi aí que comecei a ter necessidade de conhecer. Porque quando você vive no subúrbio, você fica invisível, né? Ninguém te enxerga, ninguém te vê e você fica como se você não existisse na face da Terra. É como se não existisse um outro lugar, outro mundo para você, a não ser aquele lugar que você vive. Principalmente quando você é pobre e não tem grana para sair e mora num bairro muito longe. Imagine, de Sete de Abril para Campo Grande, se é longe hoje, como era difícil na época. Nessa década de agora, de Sete de Abril para Campo Grande já é uma distância infinita, enorme, você avalie nos anos 1970 e nos anos 1980. Era muito mais longe ainda. Era praticamente impossível você sonhar, a não ser que você tivesse que sair para trabalhar, chegar no Campo Grande ou chegar na Vitória, chegar no teatro, chegar no cinema. Impossível.

É como se as pessoas que moram em Águas Claras, Jardim Esperança, Nova Brasília e Sete de Abril, como se lá não tivesse nada, como se não existissem esses lugares. Vou lhe dar um exemplo. Uma pessoa que vai olhar e quer uma modelo, uma manequim. Ela não vai para Jardim Esperança, Nova Brasília, Sete de Abril, Águas Claras. Ela não vai. Ela só vai para onde? Para Vitória, para Graça, para Pituba, os bairros mais ricos, mais centrais. Vai para os shopping centers. Não vai para esses bairros mais pobres, mais periféricos. É como se nesses lugares não existisse gente com talento, não existisse gente bonita. É como se o povo que a sociedade quer mostrar, não apenas para o Brasil, mas para o mundo todo, não estivesse também na Feira de São Joaquim. E se você for na feira de São Joaquim, você encontra cada mulher bonita, cada homem bonito!

Outro dia eu estava na feira, estava comprando, e fiquei assim olhando para a menina. Eu não aguentei e falei com ela como ela era bonita. Mas ninguém vai lá. Ninguém vai na Liberdade. Cada preta bonita que tem na Liberdade! Cada preto bonito. Não vai, porque as pessoas acham que, primeiro, criou-se uma concepção de que o que é bonito tem que ter epiderme clara e nariz afilado. E essas pessoas não estão nos subúrbios. Nos bairros de periferia, na concepção deles, não existe gente bonita ou com talento, então nem tem que procurar.

Você falou que nunca gostou de igreja. Apesar de ter cantado muito tempo em igreja e ter sido descoberta pelo Marcio na igreja. Mas você é uma pessoa religiosa. Como é que era a sua relação nessa época que você cantava em igreja? Não tinha nenhuma relação religiosa naquele canto? A sua questão da religião se desenvolveu somente no terreiro?

Teve uma época que eu fui protestante. Eu era de uma igreja por causa da minha mãe, do Evangelho Quadrangular. Depois eu fui para a Batista. Mas tudo isso por causa da música, eu cantava no coral. Nunca foi pela igreja. O pastor falava, falava, falava, eu ouvia, mas louca para chegar a hora de cantar. Eu nunca fui para a igreja pela igreja. Mas sempre acreditei em Deus. Até acreditei em uma época da minha vida, não vou mentir para você, na Bíblia. Nunca gostei do sincretismo, não gosto até hoje. Agora gosto menos ainda, depois que eu me achei no candomblé, que é a minha religião.

Eu acho que eu, desde quando nasci, sempre fui para ser de Candomblé e por algum motivo de família me desviaram para outras coisas. Mas felizmente acabei voltando para a minha origem. Eu tenho certeza de que eu estou onde eu deveria estar, no Candomblé, que é a minha religião de coração, da qual eu tenho o maior orgulho. E digo a você, eu não acredito que em outra vida eu tivesse sido de outra religião que não fosse o Candomblé. E se eu vier de novo em outra vida, vier gente de novo, eu quero ser, eu não quero ser desviada para nenhum outro canto que não seja o Candomblé. Porque eu nunca fui a favor, eu nunca gostei do sincretismo. Eu nunca fui devota, só para você ter ideia, de nenhum santo católico. E ainda não sou.

Por que você não gosta do sincretismo?

Durante um tempo, nós negros que fomos do Candomblé, os negros que foram escravos, precisaram do sincretismo para poder adorar os seus deuses. Todo mundo sabe disso. Porque os brancos não deixavam os negros adorarem os seus deuses. Só que a gente não precisa mais disso, a gente pode adorar Ogum, Iansã, Oxóssi. Não precisa ficar inventando que Oxóssi é São Jorge, que Ogum é Santo Antônio, porque não é. Ogum é preto, a ferramenta dele é o facão e ele nasceu na África. São Jorge nasceu onde? São Jorge nasceu na Capadócia e a ferramenta dele é lança. A ferramenta de Oxóssi não é lança, a ferramenta de Oxóssi é um ofá e ele viveu nas matas, é um caçador e era negro, não tem nada a ver com São Jorge.

Então eu não gosto dessa mistura não. Santa Bárbara dizem que era uma mulher de classe média, rica, que brigou com a família e tudo o mais. Não tem nada a ver com a história de Iansã. Iansã não era branca. Então, eu não gosto, acho que nós não precisamos do sincretismo. Acho não, tenho certeza: nós não precisamos disso mais. Isso é muito chato, eu não gosto não, é uma coisa que me incomoda profundamente. Eu sou uma filha de Incoce, eu sou uma filha de Ogum, e quando se referem ao meu pai Ogum como Santo Antônio é uma coisa que me incomoda profundamente.

Você gosta daqueles cultos, daquelas missas da igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos?

Eu fui em algumas por compromisso, porque eu cantei nessas igrejas de Salvador quase todas. Mas sempre foi difícil para mim. Para falar a verdade, eu até gosto de cantar nas igrejas, porque elas têm uma acústica maravilhosa. Quando eu canto nelas não preciso do microfone. E eu cantei no Rosário dos Pretos várias vezes. Cantei o Oratório de Santo Antônio, porque eu fiz em várias igrejas de Salvador o Oratório de Santo Antônio quando eu era cantora do coral da Fundação do Estado de Salvador. Mas as missas, vou ser sincera, eu não sou adepta de missa, eu não tenho muito saco pra missa não.

O povo sempre achou que meu canto é canto de igreja. As pessoas falam muito isso, que meu canto é canto de igreja. Mas aí isso eu aprendi, e eu vou ser sincera, também um pouco na Igreja Católica, porque eu cantei no coral do Mosteiro de São Bento, que é muito bom. Era um coral, não sei agora, mas na minha época, muito bom, que tem uma didática maravilhosa. Para quem queria ser cantor, lá era a escola. Eu acho que as músicas nas igrejas protestantes na minha época, agora eu não sei mais porque eu não faço mais parte, eram muito boas e muito mais criativas. Tinham arranjos excelentes. Os cantores da época que eu acompanhava eram muito bons. Mas hoje, me parece quando ouço, é uma gritaria só, é uma maluquice, é uma mistura estrambólica.

Hoje eu não acompanho, até porque eu não aguento, eu não consigo acompanhar. Sou filha de mãe evangélica, irmã de irmão evangélico. E quando eu visito a minha mãe, ela nem bota música evangélica porque ela sabe que se ela botar, ela tem medo que eu vá-me embora. Mas eu nem vou, eu às vezes até boto para ela ouvir, porque eu fico até escabreada. Mas eu boto e dou uma saidinha de fininho, vou ali na casa da vizinha, sabe? Para dar uma disfarçada. Porque eu não tenho saco. A qualidade é ruim. Na época que eu era protestante, que eu frequentava a igreja protestante – porque eu nunca fui dessas denominações religiosas que surgiram agora – a qualidade era infinitamente melhor, muito boa. Não tem nem comparação.

Na virada dos anos 1980, quando você era adolescente, foi uma época que estavam explodindo os blocos afros. Ressurgindo os mais antigos, aparecendo novos. Filhos de Gandhi, Ilê Aiyê… Você acompanhou isso? Você gostava desse movimento de afoxé da época?

Acompanhei mais o Ilê, porque é um bloco que eu gosto e o Ilê sempre foi muito bonito, né? Eu costumo dizer que o Ilê… Eu não gosto de carnaval, não é uma festa que eu goste, embora eu tenha preferência pelos blocos afros. Afinal eu tenho que puxar a brasa para a minha sardinha, né? Não para a sardinha dos outros. Mas o bloco do meu coração é Ilê Aiyê e sempre foi. Eu via pela televisão. A coisa mais bonita que você tinha para ver no carnaval da Bahia era a saída do Ilê Aiyê. Eu sempre disse isso às pessoas. O resto para mim tem passagem livre.

Sobre essa coisa da música religiosa, como você vê o canto do terreiro, a música do terreiro?

Olha, tem uma diferença entre as músicas de cerimônias religiosas de terreiro e o que canto no palco. Eu não sei por que as pessoas falam que o que canto no palco é música de terreiro, porque eu canto música popular brasileira. Quando as pessoas falam música de terreiro, eu, quando estou na minha casa de santo, canto as músicas dos meus Orixás para os meus Orixás. Então, ali eu não sou cantora. Essas músicas das cerimônias religiosas não são músicas populares brasileiras, são músicas sacras, são músicas espirituais. É o que eu canto no meu momento espiritual com o meu orixá na minha roça. Isso eu não levo para a minha vida profissional. E quando eu estou lá, eu não sou a cantora Virgínia Rodrigues, quando eu estou no terreiro eu sou a Maria Virgínia Rodrigues da Silva. É isso.

Virgínia, quando foi que você teve consciência de que existe racismo no Brasil?

Olha, vou te falar. Eu, até os meus 25 anos, não tinha essa consciência. Como até hoje tem negro que pensa que no Brasil não tem racismo. Eu, até os meus 25 anos, acreditei nisso. Eu recebi vários elogios racistas sem perceber que não era um elogio, era que eu estava sendo vítima de racismo. Tipo, na época que eu era jovem, dizerem “as suas mãos são mãos de branco”. “Nossa, olha as suas mãos, Virgínia. É mão de branca. Fina”. “Virgínia, seus lábios. Você não tem lábios de beiço”. A palavra beiço, né? Quer dizer, branco tem lábios, mas preto tem beiço. Eu não percebia que isso tinha a ver com racismo.

Também, por exemplo, eu não percebia que os negros não vestiam vermelho aqui na Bahia e alguns que não vestiam branco para não serem confundidos com gente de Candomblé. Não vestiam nem amarelo. Eu cresci ouvindo dizer que preto de vermelho era o diabo e que preto de amarelo era desespero. Alguns negros não vestiam branco para não serem confundidos com gente de Candomblé. Quando vestiam uma blusa branca, embaixo vestiam uma blusa de outra cor. Tudo isso era coisa do racismo e eu não percebia…

Quando eu descobri, com 25 anos, que o meu país era um país racista, eu fiquei com muito ódio. O que me veio foi ódio. E eu costumo dizer que o ódio é mau conselheiro. O ódio só faz você fazer besteira, né? Fazer e falar besteira. Mas eu fiquei com muito ódio quando eu descobri, caí na real, que meu país é um país racista e que o tempo inteiro eu estava sendo vítima de racismo e que eu não tive acesso a muitas coisas por conta da cor da minha pele. Coisas como, por exemplo, fazer uma aula de balé, que eu vivia enchendo o saco de minha mãe para fazer. Até o dia que eu descobri que minha mãe não tinha como me botar na aula de balé, porque balé era coisa para quem tinha dinheiro e, é óbvio, brancas. Foi quando eu caí na real. E isso foi bem nessa época que eu fui trabalhar em casa de família. Então, qualquer coisinha que me dissessem eu respondia com sete pedras na mão.

Aquela foi uma época que eu briguei muito, que eu discuti muito, que eu xinguei muito. E que qualquer pessoa que me olhasse… Eu briguei, eu saí aos tapas com gente. Eu dou risada agora, porque quando eu me lembro agora, com 57 anos, eu acho engraçado. Agora, né? Claro. Mas na época que eu briguei muito, disse muito desaforo a muita gente. Foi uma época que eu xinguei muito. E que as pessoas me diziam qualquer coisinha eu respondia com sete pedras na mão. Então foi uma época ruim, não foi uma época boa. Foi difícil. E que eu sentia muita tristeza também.

Foi também a época em que eu descobri que você só era bonita se você fosse branca ou morena, mas se você fosse preto, parece que não existe preto bonito, que preto não é bonito, né? Negro não é bonito, só quem é bonito é mulher branca, o homem branco. O homem negro e a mulher negra não são considerados bonitos. Isso doeu muito.

O Caetano Veloso acabou se tornando uma figura muito importante na sua vida. Como foi o encontro com ele?

O Caetano foi o seguinte: era o ensaio aberto do Bando de Teatro Olodum, no Teatro Vila Velha. A minha cena era só no final, quando eu entrava para cantar “Verônica”. E aí, o Caetano apareceu com uma câmera e começou a filmar, porque ele já era fã do Bando. Caetano já conhecia e frequentava. Todo mundo do Bando já estava acostumado com Caetano. Para o pessoal era absolutamente normal, mas para mim não. Quando ele chegou, eu gelei. Eu acho que se fosse hoje, nessa idade e diabética, eu teria mijado nas calças. Eu gelei, porque eu podia imaginar tudo, mas não que um dia Caetano fosse se sentar para assistir uma apresentação que eu participasse. Fiquei com muito medo.

Era a peça Bye Bye, Pelô e eu entrava no fim, depois que o rapaz que era protagonista da peça caía e morria. Eu entrava e cantava “Verônica”: “Oh, vós todos que passam por essa terra, vejam se a dor semelhante à minha dor”, que é a dor de uma mãe que perde um filho. E eu cantei com a cabeça baixa, olhando para a pessoa e de olho fechado, porque eu não sou besta. Eu tenho essa mania, até hoje, de fechar os olhos para cantar. Aí eu cantei de olhos fechados e cabeça baixa, não olhei para a cara de ninguém. Nem do Marcio Meirelles, que era o diretor, nem para Caetano, nem para ninguém. E, quando terminei de cantar, abri os olhos e Caetano estava chorando.

Aquela música é uma música que Caetano ouvia na infância dele em Santo Amaro da Purificação, na Procissão do Senhor Morto, que é comum aqui na Bahia. E ele ficou muito emocionado. Caetano é chorão. Eu também sou chorona. E aí foi isso, foi assim a minha aproximação com Caetano.

Caetano é muito importante na minha vida, na minha carreira. Eu chamo ele de dindo. Ele nem sabe que eu chamo ele assim. Mas foi ele quem me lançou no mundo, foi ele que me lançou no Brasil inteiro e fora do Brasil. Estados Unidos, Europa, foi ele que me lançou. O Marcio Meirelles me descobriu, mas quem me lançou no Brasil e fora do Brasil foi o Caetano Veloso.

E daí, a partir desse encontro, vocês lançaram o seu primeiro disco, não foi?

Pois é. O Sol Negro foi lançado pela Natasha, que era a gravadora da Paula Lavigne, em 1997. Eu tenho boas lembranças da gravação do Sol Negro, porque a gente não fez num estúdio. Eu não gosto de estúdio até hoje. E o Sol Negro a gente gravou num lugar lindo, que é Santa Teresa, na antiga sede da Natasha. E daí era aquilo: a gente começava a cantar, a coisa estava ficando boa, daí cachorro latia, avião passava, e tinha que recomeçar tudo de novo. Foi muito divertido gravar Sol Negro, eu tenho boas lembranças.

E aquela casa tinha uma vista! Tinha uma parede de vidro que dava vista para a Floresta da Tijuca e dava outra vista para uma favela. Santa Teresa é uma das minhas melhores lembranças do Rio de Janeiro. Foi lá que eu comecei a minha carreira profissional, gravando o meu primeiro disco. E, talvez por conta disso, eu sinceramente não gosto de estúdio até hoje. Eu entro em estúdio, gravo, é claro, fiz os meus outros discos em estúdio, mas é sempre um problema.

Como vocês montaram o repertório do disco?

 Eu e o Caetano montamos o Sol Negro juntos. Porque eu viajei para gravar no disco da Maria Bethânia, o Âmbar, fazer uma participação em uma música do Chico César chamada “Oração”. A gente gravou em São Paulo, e de lá o produtor da Bethânia me levou para o Rio, porque eu não sabia ainda andar sozinha de avião. Não tinha noção ainda de viajar de avião. Eu tinha saído de Salvador sozinha, mas em São Paulo fui recebida por esse rapaz e de lá ele me levou para a casa de Caetano. Lá, fiz uma reunião com ele e o Marcio Meirelles.

O Caetano queria me conhecer melhor. Ele praticamente só tinha me visto no Bando, então queria saber quem eu era, o que eu gostava de cantar, que tipo de música eu tinha o hábito de escutar. E aí eu mostrei para o Caetano que eu tinha uma didática vasta, conhecia muita coisa. Eu já cantava “Lua Lua Lua Lua” no Mosteiro de São Bento, que é uma música do Caetano. Eu já cantava “Luz do Sol” com arranjo para coro, feito pelo Lindembergue Cardoso para o coro do Mosteiro. Eu já cantava “Melodia Sentimental”, com arranjo de Villa-Lobos para coro.

Mas tinha muita coisa que eu não conhecia, então nós dois juntos montamos o Sol Negro. A ideia, por exemplo, de gravar Dorival Caymmi, de gravar Synval Silva, foi dele. Mas outras coisas fui eu que trouxe, como a própria “Lua Lua Lua Lua” e “I Wanna Be Ready”, que é um spiritual norte-americano que eu também já cantava no Mosteiro de São Bento. A gente montou junto o repertório. “Sol Negro”, quando eu cantei, ele perguntou onde eu tinha encontrado aquela música. Eu disse que tinha ouvido na voz de Gal e de Maria Bethânia, que gravaram muito jovenzinhas. Era a única gravação que tinha da música. E daí cantei e ele me pediu que gravasse no disco. Assim como foi ideia dele fazer “Verônica” à capela. E foi assim. A gente foi montando as coisas juntos, até chegar no que queria do disco.

Eu lembro de ver um show seu no Canecão, naquela época, e ficar muito impressionado com a gravação de “Noite de Temporal”.

Eu vou te falar, Ramiro Musotto, que Deus o tenha e bote a alma dele em um bom lugar, foi uma perda para a música. Foi um buraco, uma lacuna que ficou. Ele arrasou. Cara, ele arrasou simplesmente. Todos os berimbaus que você ouve em “Noite de Temporal” são do Ramiro. O Caetano que deu a ideia de gravar Caymmi e eu não queria gravar, porque eu tenho um defeito, eu não gosto de gravar música que todo mundo gravou. Música batida. E eu já cantava “É Doce Morrer no Mar” na oficina do Coral da Bahia, no Mosteiro de São Bento. Então, é uma música muito batida. Aí eu escolhi “Noite de Temporal”, porque ninguém conhecia.

Você falou do Ramiro e eu estou com um disco dele aqui do meu lado. O Ramiro é um músico fantástico. Na Bahia ele é cultuado e todo mundo entende a importância dele para a música baiana desde que ele chegou no Brasil. Mas fora da Bahia ele é infelizmente pouquíssimo conhecido como um cara importante.

Pois é. É uma pena que pouca gente saiba quem foi Ramiro Mussoto.  As pessoas dizem “a pessoa foi embora, mas a obra ficou”. Ah, mas eu queria que a pessoa fosse conhecida em vida! Esse negócio de reconhecer depois que a pessoa morre, de fazer homenagem para quem já morreu, é um pouco triste. Outro talento era o Naná Vasconcelos. Eu queria ter corrido a Europa, Estados Unidos com Naná Vasconcelos. Infelizmente isso não aconteceu. A gente não conseguiu fazer uma turnê nem no Brasil, quanto mais na Europa. Naná, caraca, na Europa, nos Estados Unidos ele é aclamado, no Brasil ninguém sabe quem é Naná. Pior para o Brasil, não é?

Como foi a sua gravação do seu segundo disco, Nós?

Vou te falar a verdade. Quando eu vi que a minha carreira tinha dado liga lá fora e meu irmão falou para mim assim: “É, você virou cantora mesmo, hein?”, menino, me deu um gelo, me deu um frio no estômago. E quando o Caetano veio com essa proposta, porque a proposta do disco Nós foi dele, não foi minha não, eu me desesperei. Caramba, vão me confundir com cantora de bloco de carnaval, como cantora de carnaval e eu não quero isso! Eu não quero ser cantora de carnaval, até porque, meu amor, aqui na Bahia se você quiser ser cantor de carnaval você tem que ser branco e loiro, tá? Se você não for branco, não for loiro, não tiver nariz afilado, você fica dando murro em ponta de faca.

Mas esse não era o meu caso, porque eu não queria ser cantora de carnaval. Eu nem gosto de carnaval! Eu queria ser o que eu sou, cantora de música popular brasileira. E aí eu me desesperei, eu me batia com Caetano. Na hora de fazer o repertório, quando o Caetano me jogou o repertório pelos peitos, aí eu cocei a cabeça, a gente sentou junto, eu e ele. Eu digo: “Caraca, velho, vão me confundir como cantora de bloco de carnaval!” Ele disse: “Não, o que eu quero é que você faça isso com a sua interpretação, com a sua roupagem. Eu quero que você faça essas músicas sobre a sua literatura, com a sua linguagem. Não com a linguagem original”. A ideia do Caetano era eu mostrar que era uma boa intérprete, que eu podia interpretar qualquer coisa.

E aí foi um negócio que deu um nó na minha cabeça. Eu chorei muito. Eu chorei muito, muito, muito, com muito medo. Eu fiquei com muito medo. Primeiro, que era o meu segundo disco e eu já estava com medo, porque o disco de estreia tinha sido muito bem recebido. E com medo de ser confundida, de ser rotulada. Então foi muito difícil. E aí eu consegui, estudando, estudando, troquei algumas músicas, ainda consegui dar um virotezinho no Caetano. Troquei algumas músicas, tentei botar coisas de blocos que eu gostava mais, não sei o que, tirar coisas que eu gostava menos. Eu fui dando as minhas puladinhas de cerca, sabe? Como mulher que quer trair o marido, pois é.

E aí fui, trabalhei, trabalhei. Cantava, não ouvia o original. Foi assim que eu consegui: eu não ouvia o original. Eu pegava a letra e não ouvia o original, para não me contaminar. “Mimar Você”, por exemplo, Caetano teve que fazer uma gravação para mim em voz e violão para eu conseguir cantar a música. Porque eu não conseguia cantar. Foi um disco que foi feito com orquestra, foi feito com um arranjo lindíssimo de Eduardo Souto Neto. Um disco que, modéstia a parte, tem arranjos lindíssimos. “Afreketê”, que é um bloco afro lindíssimo que não existe mais, já não existia quando eu gravei, já tinha acabado a muito tempo. Gravei Paulo César Pinheiro. O resultado é lindo, mas foi um disco muito difícil para mim. Não foi fácil não.

Mas mesmo depois de ter gravado, você tinha medo? Porque qualquer pessoa que ouve o Nós, aquilo é muito diferente de um disco de carnaval, aquelas canções são colocadas em um outro lugar. Aquela coisa do andamento muito mais lento e a orquestra. Ali eu acho que você não corria o menor risco de ser confundida com cantora de carnaval.

Você acredita que teve gente que achou? Teve gente, mas também foi aqui na Bahia. Teve gente que falou assim: “Ah Virgínia, queria convidar você”. Eu disse: “Minha querida, não vai dar liga. Eu não tenho essa pegada”. Porque eu não tenho mesmo. Não tenho nada contra quem tenha, mas eu não tenho, porque eu não tenho vontade. Não é a minha praia. Eu acho que todo mundo tem as suas preferências e eu tenho as minhas. Mas teve gente, sim, que tentou: “ah, você gravou aquelas músicas” ou “mas você é negra”. E aí eu dizia: “Não, uma coisa é você ouvir o meu disco, você vai entender que a proposta é completamente diferente”.

Eu demorei para conseguir assimilar tudo isso. Inclusive depois com o disco pronto, eu não ouvia o disco. Para eu ouvir esse disco, foi quando tive que viajar em turnê. Foi um inferno na minha vida. Porque eu tinha que fazer uma turnê do disco, os shows já vendidos lá nos Estados Unidos e Europa e eu não pegava no disco para escutar. É mole?

Esse é um ponto importante, porque já no seu primeiro disco a sua carreira estourou lá fora. Como começou essa repercussão internacional?

Lá fora o público é diferente daqui. As pessoas não vão te ver lá fora porque já é famoso, as pessoas vão te ver para te conhecer e conferir o trabalho. É diferente do Brasil, as pessoas lá tem outra cabeça. Então, já em 1998, eu fiz muito festival, muito circuito universitário. E as pessoas vão ver o seu show com muito senso crítico. Elas podem te elogiar ou te enfiar a faca. Então, elas têm um interesse pela música, uma curiosidade, e eu não precisei contar com jabá de rádio para me apresentar. Não precisava das rádios dizendo meu nome lá fora. As pessoas foram ver os festivais, onde se apresentam vários artistas de diferentes lugares do mundo, e estão curiosas em saber o que são essas músicas.

Aqui no Brasil, as pessoas foram me ver porque o Caetano era meu padrinho e disse na rádio e na televisão que eu era boa. Teve divulgação. Mas lá fora não, eu fui entrando no circuito de festivais e fui bem aceita. Eu voltei da primeira turnê, em 1998, já com shows marcados para ir para Estados Unidos e Europa. Eu acredito que foi muito mais fácil me lançar nos Estados Unidos e na Europa do que no Brasil.

Eu li em algum lugar que o Fernando Henrique ficou dando os seus discos. Todo o disco que você lançava, ele enviava para o Bill Clinton.

Foi a mulher dele, a Dona Ruth. Na verdade, o Fernando Henrique, quando chegou nos Estados Unidos, Bill Clinton perguntou a ele por mim e ele não se lembrava mais de mim. Aí o Bill Clinton lembrava de mim, como lembra até hoje. Quando encontra, pergunta. Eu acredito que ele seja meu fã. Claro, ele já foi em meu show depois daquele jantar. Mas quem me convidou e conheceu o meu disco foi Dona Ruth, a esposa dele. E o Fernando Henrique levou o meu disco para Bill Clinton sim, levou eu acho que o Nós. O Sol Negro ele já tinha, porque eu já tinha dado. Ele levou o Nós e levou Mares Profundos, eu acho.

E você imagina o nosso atual presidente ouvindo o seu disco e entregando o seu disco para alguém?

Não acredito não. Até porque, pelo amor de Deus, né? Nem acredito nem quero. Senão o meu público vai me odiar. Deixa ele lá no canto dele quieto…

Nesses festivais, você deve ter visto também muitas apresentações marcantes de outros músicos. Quais foram as que mais a impressionaram?

Os shows que eu vi? Caramba, tiveram vários. Omara Portuondo, por exemplo, foi um show que me marcou muito. Ver aquela mulher! Cara, nós estávamos em turnê ao mesmo tempo, você acredita? Ela no ônibus dela e eu no meu. E nós estávamos indo para o mesmo festival na Itália, numa cidadezinha na Itália, e o meu show era um dia depois do dela. Caramba, aquela mulher é do balacobaco. Quando eu vi aquela mulher fazer coisas assim, com o corpo todo para trás. Coisas que pelo amor de Deus. Omara Portuondo, maravilhosa. Vi vários, mas o de Omara foi um show que me marcou. Fiquei muito emocionada de ver aquela senhora, sabe? Aquela imponência. Foi um show que me marcou.

Você já ouvia música cubana antes?

A música cubana não fazia parte da minha formação, não. Passou a fazer depois. Eu comecei a ouvir música cubana quando eu comecei a viajar para fora do país e sair comprando discos. Não era uma coisa que eu tinha hábito, para falar a verdade, de ouvir não. Mas a música cubana, pelo amor de Deus, tem tudo a ver com nós, brasileiros. É uma música viva, quente. Tem tudo a ver com a gente, é muito quente. Adoro.

Me fala um pouco do disco dos afro-sambas. No Mares Profundos, você revisitou algumas canções muito conhecidas, que eram aquelas parcerias do Baden Powell e do Vinicius de Moraes. E você disse que prefere gravar coisas menos conhecidas. Qual foi a história desse disco?

Gravar os afro-sambas foi ideia minha. Tinha que ser tudo que fazia parte dos afro-sambas, então por isso eu gravei “Canto de Ossanha”, gravei essas músicas mais conhecidas. “Canto de Ossanha” é muito conhecida, porque todo mundo gravou. Mas eu gravei coisas que pouca gente gravou e eu fiz questão de ouvir o original, que era Baden no violão e Vinicius cantando com um coro. Eu quis ouvir o original, que foi gravado em 1966 aqui em Itapuã, na Bahia, porque ia me dar bagagem para eu criar a minha própria interpretação.

Muita gente diz que em termos religiosos, quanto à descrição dos santos, os afro-sambas não são exatamente precisos.  Como é que você vê isso?

Vinicius não era autoridade nenhuma nesse assunto, né? Vamos combinar, vai. Mas eu sou fã do Vinicius…

É, mas tem a coisa da Mãe Menininha, era amigo da Mãe Menininha, a Mãe Menininha explicava a ele, conversava com ele.

É, ele era amigo dela. Mas, por exemplo, tem aquela música que ele canta com a Clara Nunes, que é “Apanha folha por folha, Tatamirô / Apanha maracanã, Tatamirô / Eu sou filha de Oxalá,  Tatamirô / Menininha me apanhou, Tatamirô!”, e muita gente pensa que é dele, mas que não é. Essa música é um ponto de Candomblé, mas muita gente pensa que é de Vinicius e nunca foi. Eu acho que ele inclusive pediu permissão para cantar essa música. Essa música não é dele e aí eu acho que ele incluiu algumas coisas dele na letra. Mas a música original é um ponto de Candomblé e é só isso. E é um Xirê, porque ela fala de todos os Orixás.

Eu acho que a Mãe Menininha dava apenas algumas dicas a ele, até porque ela como Iyalorixá não ia poder estar dando tudo, porque Iyalorixá nenhuma dá, né? Então, ela devia dizer que pode cantar, devia dar permissão para ele cantar, devia olhar lá e permitia. Mas o Vinicius não tinha autoridade nenhuma. Nem ele, nem o Baden. É porque ele gostava, devia achar bonito. Gostava muito de estudar, né?

Não tinha autoridade, mas era muito carismático e muito charmoso, né? Aí ele conseguia.

É, né. E tem gente que também pensa que coisas de candomblé, coisas de santo, e leva para o lado científico. Leva para o lado da antropologia. Leva para o lado da ciência, tudo quer explicação. O povo que estuda muito esquece que religião e antropologia, essas coisas, não se misturam muito. E acham que pode meter a mão em tudo, pode meter o bedelho, que pode saber tudo. E não pode. E toda Iyalorixá sabe disso. Então a Mãe Menininha devia dar: “Olhe, isso aqui você pode, isso aqui você não pode”. Mas ela não ensinou a ele, eu não acredito.

E o Recomeço, que foi o seu disco seguinte? Que já era uma outra coisa, já estava fora de todo esse universo que estava ali nos seus três primeiros discos. Como é que foi o Recomeço?

Pois é, o Recomeço foi o meu quarto disco, foi um disco que eu fiz na gravadora Biscoito Fino. Foi um disco que eu fiz com Cristovão Bastos, que é um grande músico. Eu gostaria muito de estar numa época mais feliz da minha vida para ter feito esse disco com o Cristovão, porque é um músico que eu admiro demais. Eu sou apaixonada por Cristovão Bastos, sempre fui fã dele, por isso que eu quis que ele fizesse esse disco comigo. Mas eu não estava numa época muito feliz, muito bem. E eu sinto isso, de não ter estado em uma época feliz para ter feito, ter aproveitado Cristovão como ele merece ser aproveitado, porque ele é um maravilhoso de um pianista, um grande músico. Recomeço é um disco que eu escolhi canções, fui pegando repertório. Eu canto coisas de Francis Hime, por exemplo. Mas eu canto muita coisa muito triste, porque era o estado que eu estava. Mas eu queria estar numa época bem feliz para ter aproveitado melhor esse disco, podido ter feito melhor, já que eu estava com um músico tão grande como o Cristovão.

E por que essa tristeza toda naquela época?

Ah, porque são épocas. Acho que toda cantora fica triste de vez em quando. Não, não foi por isso não. É porque eu não estava bem, estava num momento ruim da minha carreira, não estava num momento bom. E não estava também muito bem. E aí você vai juntando coisas, acumulando coisas e chega um momento que… E você precisa trabalhar, né? Mas aí, você acaba passando isso para única coisa que você tem para botar para fora para desabafar, que é a música. E eu acabei passando isso para esse disco. Eu não queria, mas passei. Não foi de propósito, foi sem querer.

E o que é a música para você?

Olha, com a música você consegue, sim, falar com Deus. Com certeza, não tenha dúvida disso. Música para mim é oração. É por isso que eu sou muito ligada na poesia, porque a música é uma oração. E a música é fonte de cura sim. Eu sou prova viva disso. A música é uma fonte de cura e com ela você consegue, sim, falar com Deus. Por isso que a gente tem que se preocupar muito com aquilo que a gente canta, com aquilo que a gente bota para fora, principalmente quando a gente é uma pessoa pública. Tem que se escolher o que se canta. Eu não consigo assimilar você, por exemplo, colocar palavrão em música. Palavrão é uma coisa que você dá quando você está com ódio, está com raiva, quando você quer engarguelar alguém. Isso não cabe em música, porque a música é sagrada. A música está acima de mim, está acima de você, está acima de todo mundo. Ninguém se sobrepõe à música. Quem tenta isso, ela derruba. Se dana. Ninguém se sobrepõe a ela, ela está sempre acima.

E você concebe uma cantora ou um cantor, um intérprete, não saber das palavras que está cantando? Porque isso a gente vê muito. Um cantor muito técnico e que consegue emitir aquelas sílabas, aquelas coisas, mas não entender. Você concebe um canto que não entenda exatamente o que está sendo falado? Você acha que pode ser bom?

Por exemplo, quando você vai para um show e você não consegue se emocionar, você percebe que se você não conseguiu se emocionar, o problema não é da música, não é da palavra, é da pessoa que está interpretando. Porque a função do cantor, do artista, tanto do ator, como do cantor, como do instrumentista, é emocionar. Se você não consegue passar para a pessoa… Se você não consegue emocionar, é porque o problema está em você, não está na pessoa que está ali na plateia. Então, existem pessoas assim. Quem tenta se sobrepor à música, quem tenta se sobrepor à poesia, quem tenta se sobrepor à arte é engolido. E existem, sim, pessoas que cantam coisas belíssimas e falam, mas é daqui pra cá. Fala o que não sente. Essas pessoas não conseguem emocionar e acho que nem elas sentem. Eu digo que isso tem a ver com frieza, né?

Você já se preocupou com você mesma, de pegar e pensar assim: “Eu tenho que tomar cuidado para não me deixar seduzir pela beleza do meu canto, porque eu estou a serviço da música”. Você já parou para pensar nisso? “Será que isso é vaidade?” Porque você é uma intérprete com o seu poder, assim, com a sua força. A gente pode ver algumas pessoas que têm um vozeirão que a gente vê que ela usa o vozeirão de uma maneira exibicionista. Isso não é o seu caso em nenhum dos seus trabalhos, você sempre é muito cuidadosa. Você não gasta o seu vozeirão assim, você vai onde precisa que ele vá.

Olha, eu vou te falar. Primeiro, vou te falar, quando eu subo no palco, eu subo para cantar, então eu não me lembro de nada. Não lembro que não tenho dinheiro, não lembro que o cachê é uma merda, não lembro de nada. Eu não consigo pensar em nada, só em cantar. Então, eu nunca me preocupei com isso, porque eu também não acho que eu tenho esse vozeirão. Eu, sinceramente, do fundo do meu coração, estou falando sério, eu não acho isso. As pessoas é que falam, mas eu não acho. Eu me preocupo basicamente com a poesia, o que vem, vem. Vai vindo, vai vindo.

Uma vez uma amiga me perguntou: “Virgínia, o que você sente quando você abre a boca para cantar?”. Eu disse: “Eu procuro me preocupar com a poesia, que é a letra, e com a melodia”. E com as pessoas que estão me assistindo. Eu tento passar para as pessoas o que elas merecem.  Porque as pessoas que vão te assistir, gente, as pessoas que vão nos assistir, elas saíram de casa cansadas ou vieram do trabalho cansadas. Ou saíram de casa pensando: “estou a fim de esquecer, estou a fim de dar uma purificada, de lavar a alma”. Então, eu procuro me preocupar com isso.

Minha ligação com a música é espiritual. A música não é só a minha sobrevida, ela não é só a minha subsistência, ela não é o cachê que eu recebo. A música é a minha vida, eu preciso dela para viver. A ideia de não poder cantar é pior do que a ideia de não poder ir para o palco. Eu estou mais sentida agora, durante a pandemia, de não poder cantar do que de não poder ir para o palco. A música é a minha vida.

Mama Kalunga, o seu disco seguinte, traz um encontro seu com um músico admirável, que é o Tiganá Santana. E ele trabalha exatamente nessa frequência sua. A música, assim, para ele e na mão dele, quando você vê ele no palco, é uma música que está colocada num outro lugar. Como foi esse encontro de vocês?

O Tiganá e eu somos muito parecidos. O dia que eu conheci o Tiganá, eu quase morri de emoção. Eu conheci o Tiganá, ele foi na minha casa e quando ele me mostrou a primeira música dele chamada “Dembwa (10 de Agosto)”, daí ele foi embora e eu fiquei cantando a música em casa. O Tiganá na minha vida veio no mesmo momento do Recomeço, um momento difícil para cacete. Eu vou te falar uma coisa, o Tiganá é o responsável por eu continuar cantando, porque conheci o Tiganá quando eu tinha desistido de ser cantora. Já estava procurando ver o que queria fazer para sobreviver, porque estava desistindo de ser cantora. Foi nesse momento que o Tiganá entrou na minha vida e aí voltou a reacender em mim a vontade de continuar sendo uma cantora. Eu descobri que eu não podia parar de cantar, senão ia me lascar.

Aí, até então eu fui conhecendo as músicas do Tiganá, fui conhecendo o Tiganá e eu fui vendo que, da geração dele, eu, Maria Virgínia Rodrigues da Silva, considero a coisa mais bela que eu conheci. Claro, não tô dizendo que não existam outros compositores maravilhosos, mas eu pessoalmente não conheci nada tão maravilhoso como o Tiganá. Foi uma das coisas mais bonitas que aconteceu na minha vida ter conhecido o Tiganá. Quando a gente sentou na varanda da casa da mãe dele para formatar o Mama Kalunga, foi muito bacana, porque foi depois do Recomeço, eu estava ainda tentando entender o que fazer da vida. Acho que tinha oito anos que eu tinha gravado Recomeço, sei lá.

Tinha sete anos.

É, pois é. E aí a gente sentou na varanda da casa da mãe dele. Mama Kalunga nasceu naquela varanda. Foi um disco que eu coloquei o nome, a partir de uma música dele. E tinha muita música dele no disco. Ele que foi tirando as músicas dele todas. Dizia: “Vi, tem música minha demais aqui, senão o disco vai ficar parecendo que só tem eu aqui, Vi. Peraí, Vi, corta aqui, tem música demais, Vi”. E foi tirando as músicas e botando outros artistas. Aí eu disse: “Então vamos fazer alguma coisa do Paulinho da Viola, que eu adoro o Paulinho da Viola”. Não, na verdade a ideia de fazer Paulinho da Viola foi dele. Ele me mostrou músicas do Paulinho da Viola, eu escolhi “Nos Horizontes do Mundo”. Depois, ele me mostrou Geraldo Filme, e escolhemos “Vai Cuidar da Sua Vida”. A gente foi fazendo assim, ouvindo e escolhendo.

Virgínia, você falou da música cubana. E a música africana, você tem acompanhado? Você gosta de ouvir?

Gosto, adoro, ouço muito em casa. Porque me remete. A música africana me traz para os meus ancestrais, para a minha ancestralidade. Então, a forma que nós negros baianos temos de vir para a nossa ancestralidade passa pela música africana. Eu assisti a um show do Tiganá, que ele trouxe um pessoal da África, da Guiné. Caramba! Foi no Teatro Castro Alves. Eu pensei que todo mundo ia morrer, porque ninguém parava de chorar. Gente, era como se eles tivessem saído daqui e voltado. Não sei, foi uma sensação muito estranha, chego a me arrepiar quando eu falo. Foi porradão.

O seu disco mais recente é Cada Voz É Uma Mulher…

Pois é. Foi um disco meu que não se trabalhou muito, por causa da pandemia.

E é um disco que está exatamente voltado para a questão das mulheres e das mulheres negras e está muito afinado com a força com a qual esse debate se apresenta hoje na sociedade. Tanto do feminismo, quanto da questão da negritude. Você está interessada nisso?

Eu olho e estou interessada sim, embora tenha algumas coisas que eu acho que são cansativas. Tem umas coisas também que eu olho que é: “Ah, o empoderamento da mulher, o empoderamento da mulher negra”. São umas coisas que eu acho que são muito repetitivas, aí eu vou passando. Mas as coisas que eu vejo que vale a pena eu olho. Eu paro. Porque nós estamos… Eu acho que a mulher está avançando um pouquinho, né? Aí o pessoal, quando o povo enche a boca de empoderamento, eu acho que ainda foi muito pouco. Para mim, eu não sei se é porque eu sou exagerada, mas eu acho muito pouco. Eu acho que a mulher ainda tem muito para conquistar. Principalmente a mulher negra e suburbana. Enquanto eu estou vendo isso só nas mulheres de classe média, as mulheres que têm um certo estudo, que têm um grau de nível superior, que mora em bairros de classe média e classe média alta estão realmente conseguindo essas conquistas. Mas isso ainda não chegou nas mulheres do subúrbio. Eu sou suburbana e sou negra, e vejo que isso ainda não chegou. Então para mim essa conquista ainda não chegou na sociedade. Porque chegou só para uma minoria, não é?

Esse disco toca nessa questão, às vezes de maneira mais clara, mas às vezes de maneira indireta.

Toca. Olha, esse disco nasceu de um projeto do Tiganá, eu gravar só composições de mulheres. E aí fizemos o projeto e fomos aprovados e eu não tinha ideia de como realizar. Estávamos com o edital, o projeto já inscrito, mas eu não tinha ideia do que fazer. Não tinha mesmo. Eu não sabia se dava para fazer um disco só de composição de mulheres. Mas ele disse: “Isso vai tirar você da sua zona de conforto”. Por que da minha zona de conforto? Gente, eu descobri que eu era machista! Porque eu não tinha hábito de cantar compositoras mulheres. As únicas mulheres que eu gravei foram Dolores Duran e Sueli Costa. Ninguém mais. Gravei “Alma” de Sueli Costa e gravei “A Noite do meu Bem” de Dolores Duran. Só. Então eu descobri: “Eu falo tanto de gente machista e eu sou machista” Eu saí da minha zona de conforto! Esse disco foi um disco que me deu trabalho, porque eu tive que sair da minha zona de conforto. E como eu sou muito criteriosa com poesia, muito criteriosa com letra e com música, me deu muito trabalho.

Como foi essa descoberta das compositoras?

Eu fui descobrindo que Alzira Espíndola, que é a irmã da Tetê Espíndola, é compositora. Eu não conhecia Alzira Espíndola. Ignorância, mas eu não tenho vergonha de falar, tá? Eu não conhecia. E a gente quis ir para umas compositoras mais jovens, como Aline Frazão. Eu gravei também Iara Rennó, que é filha de Alzira Espíndola, que eu conhecia de nome, mas eu não sabia que era compositora, mas conhecia de nome. E aí eu tive que sair, correr atrás, descobrir. Estou fazendo isso até hoje. Conheci a que é aqui da Bahia, a Luedji Luna. Eu gravei dela “Asas”, que é linda. Eu conhecia a cantora, sabia que ela era cantora, tinha visto ela na TV Cultura e tal, mas eu não sabia que ela era compositora. Quando meu amigo me mostrou “Asas”, eu fiquei louca. Disse: “Essa eu vou gravar!” Então é isso: foi bom. Foi bom e está sendo bom até hoje, porque eu estou avançando nessa procura por compositoras. Eu agora vou sempre colocar nos meus discos compositoras mulheres, mesmo que tenha homens, vou sempre colocar mulheres.

Virgínia, como é que está a sua quarentena? Você já tem algum projeto na cabeça?

Tenho sim. Já estou com outro projeto na cabeça, no juízo, já tem até nome, mas eu não posso falar. Mas a cabeça não para, né? E espero que eu consiga patrocínio. Porque ainda tem isso, preto conseguir patrocínio nesse país sempre foi difícil. E agora que acabaram com os editais, ficou pior. Eu sou uma artista que depende de patrocínio, que depende de edital. É muito ruim você não poder ir para o palco, não poder cantar. Você fica presa. Embora eu saiba que a humanidade merece tudo isso que está passando. A humanidade merece, porque a humanidade buscou isso, procurou isso. Mas também não adiantou nada, porque o ser humano não aprendeu. Eu pensei que com essa Covid o ser humano fosse aprender, mas não aprendeu.

Você acha que a gente não vai para um lugar melhor não? Você acha que a gente não vai ter tirado uma lição e evoluir em algum sentido?

Olha, é melhor eu não falar. Segundo minha amiga, nem tudo o que a gente pensa, a gente pode falar. Mas eu não acredito que o ser humano tenha aprendido não.

Com toda essa repercussão do seu trabalho no exterior, com todo esse respeito ao seu trabalho lá fora e as dificuldades aqui no Brasil, você nunca pensou em sair e ficar lá fora, gravar lá fora?

Houve uma época em que eu tive todas as oportunidades para ir embora do Brasil e eu não fui. Eu era mais nova, você sabe que juventude conta. Mesmo agora eu ainda penso, mas ao mesmo tempo eu pondero. Eu tenho uma mãe de 85 anos, se eu for morar fora do Brasil é capaz da minha mãe morrer. Então, mesmo com toda essa dificuldade de hoje, eu já não tenho mais tanta vontade de ir embora do Brasil. Mas é por causa da minha mãe. Eu tive todas essas oportunidades quando a minha mãe era mais nova e eu também era mais jovem e eu não fiz isso. E oportunidade que volta só acontece em novela, na vida real ela não acontece.

E você não foi por que, Virgínia? Por medo, por vontade de ficar no Brasil?

Não foi medo não. Pior que não. Aquela ideia burra que às vezes você tem, eu pelo menos tinha. Um amigo, um produtor que trabalhou comigo uma vez disse a mim: “Você vivia dizendo que o lugar melhor para você viver era tal ou tal, mas não mudou para lá”. Porque ele me avisou, né? “Eu lhe avisei”. Ele falava que eu estaria em um lugar melhor. Acho que eu demorei em tomar uma decisão. E depois disso, quando eu quis, não deu mais. Foi isso. Porque essa coisa de que as oportunidades voltam, as oportunidades quando você vê, você tem que pegar. Quando ela vem, você tem que agarrar, porque ela não volta.

Virgínia, você é muito bem humorada. Tem um riso muito fácil, solto. Você é espirituosa demais. Queria saber, você é muito festeira? Você gosta de festa? Apesar de não gostar de carnaval, você gosta de festa?

Já gostei mais. Hoje eu gosto de receber amigos em casa. Gosto de sair com os meus músicos depois do show. Sempre no último show, quando no outro dia eu não tenho que me apresentar. E receber amigos em casa. É que a gente não está podendo receber ninguém em casa, então isso eu sinto falta. Eu sinto falta disso, de poder receber meus amigos em casa, fazer aquele almoço para poder dar risada, quiquiqui, cácácá. Mas festa, festa mesmo, quando era jovem eu dancei muito. Gente, eu dancei muito, você não tem noção de como eu dancei! Eu dancei tanto forró no São João, que é a festa que eu mais gosto. Aliás, a festa que eu gosto é São João, porque eu não gosto nem de natal, nem de carnaval e nem de réveillon. Eu dancei tanto forró que meu cabelo estava da cor do chão de tanta poeira. Se tem uma festa que eu adoro é forró, São João. Forró-forró. Forró verdadeiro.

E você gosta de cozinhar? Quando você recebe seus amigos, você vai para a cozinha?

Vou, vou. Mas eu só gosto de cozinhar para quem eu gosto.

Eu cozinhei para quem eu não gostava também, eu não sei como é que eles não passavam mal, porque eu fazia muito a contragosto.

E você bebe alguma coisa?

Eu gosto de uma champanhezinha, gosto de uma cervejinha. Hoje eu bebo menos por causa da diabetes. Quer dizer, eu nunca bebi muito, mas hoje eu bebo menos ainda por causa da diabetes. Mas gosto de tomar uma cervejinha, gosto de uma champagne, gosto de um vinho.

Você falou sobre a sua dificuldade com o estúdio. E do palco, você gosta?

Eu gosto muito de estar no palco. Eu gosto de fazer show. Tanto que eu, quando entro para um estúdio, para conseguir cantar, fico imaginando que estou no teatro. Porque eu não suporto estúdio.

Você falou bastante sobre poesia, qual a sua relação com poesia?

A minha relação com a poesia está mais ligada à música. Tudo que eu escolho para cantar, eu olho, eu presto atenção. Por exemplo, se eu vou escolher uma coisa do Gil. Aliás, de Gil é só poesia, né? Poeta Gilberto Gil. Caetano é outro poeta. Então, está mais ligada à música do que à leitura. Mais ligado à poesia que vem junto com a música, com a melodia, do que com o livro. Mas eu sempre me preocupo com a poesia das músicas que vou cantar.

Com tanto apreço pela palavra, você compõe? Mesmo que em casa, só para você? A sua palavra, você trabalha ela também?

Não, eu sou só intérprete. Olha, tem muito compositor bom e já tem gente demais escrevendo besteira querendo ser compositor a pulso, né? Uma vez falaram para mim: “Virgínia, você devia compor. Você não pensa? Então se você pensa, você pode compor”. Eu digo: “Não, minha filha, já tem gente demais escrevendo besteira, me deixa no meu canto, eu só sei mesmo é cantar”. Tem gente muito boa, tem o Tiganá, tem o Paulinho da Viola, tem o Gilberto Gil, tem e Caetano Veloso. Tem os jovens, né? Tem a Luedji Luna, tem  um monte de gente aí. O Lazzo Matumbi. Um monte de gente boa aí fazendo música boa. Jovens que compõem coisas bonitas. Não precisa de mim compondo. Tem o BNegão e por aí vai, compondo coisa bonita.

Eu não sei compor, eu sei cantar. Quer dizer, eu acho que sei cantar. Pelo menos eu me esforço. Agora, compor não, acho que é forçar uma barra. Seria forçar uma coisa que você sabe que não está em você. Tem música que você ouve que, pelo amor de Deus, você vê bem que é um negócio errado, que é forçação de barra. Então eu prefiro ser mais sincera, fazer o que eu sinto que sei fazer. Não preciso fazer nada além. Eu já fico muito feliz cantando.

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