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Entrevista: Zé Celso Martinez Corrêa

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Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023) é considerado um dos grandes nomes do teatro brasileiro, atuando por mais de seis décadas como diretor do Teatro Oficina, um dos mais experimentais e radicais grupos de teatro que já existiu no país. Na década de 1960, Zé Celso dirigiu montagens consideradas fundamentais de peças como “Roda Viva” e “O Rei da Vela”, além de ter sido um dos expoentes da Tropicália. Depois de ser preso, torturado e exilado durante a ditadura militar, nos anos 1970, voltou ao Brasil e retomou uma trajetória singular como diretor e dramaturgo, adaptando e montando peças como “As bacantes’ e a trilogia “Os sertões”, baseada na obra de Euclides da Cunha. O livro “Zé Celso Martinez Corrêa – Encontros”, reúne entrevistas e depoimentos realizados em mais de quarenta anos, entre 1967 e 2009. A entrevista aqui reproduzida foi realizada por Sergio Cohn e Fabio Maleronka, em 2010, e publicada originalmente na caixa “Produção Cultural no Brasil”, naquele mesmo ano.

Walt Whitman dizia: “Eu não encontro gordura mais doce do que a que está contida dentro dos ossos.” Um artista tem que se conhecer dessa forma para poder se expressar?


Walt Whitman tem toda razão. Para fazer essa afirmação, parte de seu próprio corpo, de seu país e do mundo todo. E, realmente, se o artista não está envolvido com sua obra, é um artista que não existe. Várias pessoas se dizem artistas, mas não se sabe nada a seu respeito, e isso é porque sua obra não passa pelo corpo – o corpo subjetivo e o físico, além do corpo sem órgãos, que se liga pelos sentidos a todo o cosmos. Como disse Oswald de Andrade: “Eu no cosmos, o cosmos em mim.” O que é condizente a uma afirmação de Einstein, de que estudar um fenômeno é já interferir e fazer parte desse fenômeno. Não existe a objetividade ou artista objetivo, esse está envolvido totalmente na criação, e sua função é envolver todos ao cosmos, que é a criação permanente. Todos os seres criam e desejam, e temos que entrar nesse circuito de desejos, nessa música do cosmos, que vem inclusive de nós. Em 1974 eu estava exilado em Portugal, muito envolvido com astrologia e com Galileu Galilei em cartaz. Foi aí que percebi que nós temos todo o cosmos dentro de nós e milhares de outros dentro de nós. Como dizia Rimbaud: “Eu é o outro.” Esse outro é o artista.


Zé Celso, o imbróglio contra Silvio Santos é um paralelo de O santo guerreiro contra o dragão da maldade?


Contra, não. Não há fetiche, nem existe Zé Celso. Zé Celso é um outro. Eu sou o Zé, e o Zé é um outro. Zé Celso é um personagem que me é muito estranho. Nem tenho absolutamente nada a ver com ele. Nem sou contra Silvio Santos, sou a favor. E nem sou contracultura. A própria ideia de contracultura foi um equívoco enorme. O que é contracultura foi o sistema que se estabeleceu e que a cultura teve que reagir contra ele para sobreviver. Aliás, houve uma revolução muito grande para mim, pois compreendi que no capitalismo, realmente, a infraestrutura é a economia. Mas na vida a infraestrutura não é a economia, é a própria vida. E na vida fazemos a economia que quisermos, os sistemas que quisermos. Mas a infraestrutura é a vida, e a cultura é o cuidado da vida. Para mim, a cultura passou a ser a coisa mais importante que existe na vida. É o cultivo do corpo, da saúde, da vida do seu semelhante, seja ele bicho, planta, paisagem – tudo o que existe, inclusive aquilo que criamos. Isso é cultura, a coisa mais produtiva que existe. Porque a vida é desejo, tesão. É com tesão que se cria, procria; produz-se sem ser escravo, na condição de liberdade. Porque o grande problema é que a verdadeira cultura, chamada erradamente de contracultura, bate de frente com o monoteísmo, seja ele judaico, cristão, maometano.
Esse monoteísmo organiza um Estado patriarcal, que organiza uma economia fundamentalista, capitalista, especulativa, e ela impõe essa ideia que o próprio Marx denuncia n’O capital. Eu acho mais importante denunciar que a infraestrutura não é economia. Se só mexermos na economia, não mexemos em nada. Mas se usarmos o poder humano, o poder da cultura, aí mexemos na economia, viramos do avesso a economia, fazemos o que quisermos. Isso depende de assumirmos nosso poder. Porque uma coisa é o poder das armas, do sistema, do direito romano, da propriedade, da pater familiae. Essa coisa toda, que é uma máquina, que é imposta no corpo da humanidade. Tudo isso foi vencedor num determinado período da história, e quis dominar a humanidade. Mas a humanidade é indomável e não se prende a isso. Ela corrompe, devora esse sistema. Eu compreendo mais que nunca o que Mao Tsé-Tung dizia, diante da grandeza da vida humana: “O imperialismo é um tigre de papel”.
Por isso, basta a possibilidade de se libertar dessa escravidão, que é ser classificado pelos sistemas todos como o pederasta inato, como diz o Antonin Artaud. Saia desse sistema, desses rótulos, e, de repente, descobrirá seu corpo, sua subjetividade, beberá a vida e começará a adquirir poder. Esse poder se chama carisma, carisma é poder de presença. E esse poder de presença atua na máquina no sentido de substituir essa máquina da castração por uma máquina de desejo, progressivamente. Porque desde que a minha geração, em 1967, resgatou o elo perdido com Oswald de Andrade, com a antropofagia, que é por onde começa a história do Brasil, voltamo-nos àquela cultura primitiva, devoradora, à cultura afro-brasileira, à cultura de todos os erros e acertos da cultura pop e ao mundo inteiro. Isso, realmente, superou uma visão colonialista que existiu até então: o teatro de Anchieta, a cultura que vinha de cima para baixo, que tudo vinha de um palco italiano, de uma cátedra, de uma ciência. Essa geração que criou a Tropicália se identificou através da antena do Oswald de Andrade, esse que tinha participado do modernismo, mas que, em 1928, declarou: “Eu não sou mais moderno; eu sou o primeiro pós-moderno do mundo”, e falou isso textualmente. “Eu sou antropófago.”

Além da modernidade, outra questão se coloca para ser superada: o herói romântico, que, num confronto com a sociedade opressora, se destrói. Segundo o que disse, devemos criar em vez de nos destruir?


A violência, quando é muito grande, faz com que as pessoas pensem em sacrificar sua vida e se submeter. Como é o fato das mulheres e homens-bombas. A situação é tão insustentável que eles preferem morrer. Eu não sou fundamentalista, jamais faria isso. Eu jamais faria o papel de Sócrates n’O Banquete. Não tomaria cicuta de jeito nenhum. Quer dizer, só se eu quiser, eu mesmo, sozinho. Mas se me impuserem cicuta, direi: “Afasta de mim esse cálice.”

Mas você fez Antônio Conselheiro.


Fiz Antônio Conselheiro. Fiz todos esses papéis, que são muito bons. O teatro, aliás, é o rito da cultura, é o rito da tribo humana. Isso, se retornarmos aos índios, aos africanos, aos gregos – os gregos da Antiguidade, não os de agora, porque os de agora são ignorantes da cultura deles. Eles estão nessa crise desgraçada, os jovens estão putos, quebrando tudo, não têm noção da cultura, esse é o tempo em que os jovens não têm a sorte que nós tivemos, de nos ligarmos à cultura dos ancestrais.
A cultura dos ancestrais dá um valor enorme ao que não é positivista, ao não enquadrado, ao que não está classificado. Por exemplo, o Vinicius de Moraes fez esse retorno em Orfeu do carnaval, a conexão com o carnaval, o candomblé e a Grécia. O Vinicius de Moraes nos fez descobrir o valor que tem a cultura africana, o poder que tem o Exu, a Pombagira, o poder dos orixás, que é o mesmo poder que tem Apolo, que tem Dionísio, que tem Hera, que tem Eros. E os gregos não sabem disso. Nós sabemos porque nós herdamos essa cultura através dos africanos, dos índios. Daí a cultura brasileira. Se não tivéssemos herdado, não teria rebolada, não teria ditirambo, não teria samba, não teria Dionísio, não teria cultura brasileira.
A cultura brasileira é uma cultura de Babel que deu certo no suingue, no balanço do quadril, que é muito importante. O grego não tem a menor ideia do poder que tem. Por exemplo, eu fui expulso do Epidauro no ano passado. Rejeitaram Bacantes porque era muito provocativo. E nós, realmente, queríamos replantar Dionísio na Grécia. Cheguei à conclusão de que o teatro de Epidauro, a Grécia Antiga não é dos gregos, é do mundo. Não é o Estado grego, fundamentalista, ortodoxo, autoritário, que tem o direito àquelas pedras. Eu estou disposto a fazer uma discussão internacional. Eles não sabem do que se trata, não sabem o valor daquilo. Para eles, é um monte de pedras que utilizam como turismo. Claro que tem alguns poetas, alguns artistas que sabem, mas o grosso da população, inclusive o popular, e o próprio Estado grego, não têm a menor ideia. Tem que ser do mundo.

Qual o poder do seu teatro?


O teatro é o trabalho do empoderamento da espécie humana, do seu poder de carisma, do seu poder de presença, do seu poder de intervenção na vida. Agora nós estamos partindo para as Dionisíacas, para o teatro estádio, das multidões. Porque nós temos uma tradição maravilhosa, que é o carnaval; no carnaval, inverte-se tudo, põe-se tudo de ponta-cabeça. O poder não está só nas pedras, no concreto do teatro. Mas o concreto do teatro é muito importante. A Lina Bo Bardi, quem fez o Teatro Oficina, é uma escultora do concreto. O que ela fez com as janelas do Oficina, aquela coisa enorme, aquela janela aberta, foi exatamente para abrir o teatro para a cidade, para abrir para o cosmos – de lá vemos o Sol, a Lua, a chuva. Nós trabalhamos com esses elementos todos e com a tecnologia. A revolução digital é uma cúmplice maravilhosa que temos, permitiu fazermos cada vez mais com mais sofisticação. Lançaremos Os sertões em DVD, em HD, a tecnologia mais avançada que existe. É uma coisa espantosa!
Então você concorda com Walt Whitman, é preciso cantar o corpo elétrico?
Claro. Eu estou fazendo Cacilda Becker; inclusive, escrevi quatro peças sobre ela, porque é uma atriz que tinha o corpo elétrico, que é o corpo que está na acupuntura, é o corpo que a cultura chinesa conhece, que está no sistema nervoso, que se comunica eletricamente com as energias cósmicas. É muito poderoso. A Cacilda Becker entrava em cena, no meio daqueles atores dirigidos por diretores italianos, impostavam a voz, naquelas peças em que se tomava uísque, mas era chá, na verdade, com smoking. Mas ela chegava, e mudava realmente a ambiência elétrica do lugar. E a revolução digital prolonga essa eletricidade.

Existe o conceito do “do-in antropológico”, que o Gilberto Gil e o Antonio Risério criaram, quando começou o Ministério da Cultura do governo Lula. Quais são as ações necessárias para que esse corpo elétrico seja difundido na cultura brasileira?


Tem que penetrar em todos, porque é a única coisa revolucionária que existe. A grande revolução não foi a luta armada, foi o desbunde. O desbunde foi fundamental para desmontar totalmente o corpo careta, pequeno burguês, patriarcal, formado com a cabeça, e essa decapitada do resto do corpo. Foi com o desbunde, com as viagens de ácido, as viagens de mescalina maravilhosas daquele tempo, através das orgias, da liberdade, daquele paganismo que retornou ao mundo todo que percebemos que ali houve uma revolução. Essa revolução trouxe a revolução da mulher, a revolução do homem, num certo sentido, que é a revolução gay, a revolução dos alimentos, da comida, a revolução do corpo, a percepção do corpo, a percepção de que a cultura dominante é o beat da batida africana. As transformações verdadeiras vieram do desbunde. O corpo foi elemento principal na minha geração de uma forma ou de outra. Quem não jogou o corpo ao desbunde foi para a luta armada, muita gente arriscou o corpo. Mas quando aconteceu o reencontro dessa geração no exílio, foi um choque, porque eles estavam completamente caretas, e nós estávamos transloucados. Hoje isso tudo está superado.

Como difundir o corpo elétrico?


A mudança faz parte da natureza. Mesmo que não queira se transformar, se transformará. Por exemplo, o capitalismo ganhou uma religião explícita nos evangélicos. Para eles, para subir na vida tem que haver repressão, tem de deixar de beber, deixar de se divertir. Já o corpo elétrico faz parte da natureza. Por isso que há um retorno ao homem primitivo. Oswald de Andrade, com a antropofagia, percebe o corpo primitivo, o corpo indígena, no qual tudo é sagrado. Porque tudo fala, tudo tem uma alma. O animismo é uma coisa maravilhosa, está à frente. Mas as pessoas, por medo da morte, começam a construir para se proteger: a propriedade, a família, o dinheiro. E criam uma escravidão para si. Abdicam de muita coisa.

Qual relação é possível entre o corpo elétrico e o Centro de Pesquisa Teatral, o CPT do Antunes Filho?


Antunes é um artista que não se coloca. Acho interessante a sua obra, mas eu não o conheço. Mesmo tendo visto trinta peças dele, não tenho a menor ideia de quem é essa pessoa. Sei que ele é muito importante, que ele transforma os atores, dá disciplina e sabedoria a eles, mas a mim não me fixa nada, porque nós somos opostos. Respeito-o, mas eu não tenho adoração de artista por ele. Eu acho que a noção de cultura que ele usa está fora dele, como uma transcendência, não como uma imanência. E se assumir isso em vida será maravilhoso, ele terá uma revolução. Ele deve até saber, mas nos espetáculos, na obra dele, a impressão que me dá é que a ideia de cultura que ele concebe é a cultura que vem de fora, que tem que ser adquirida. Eu não devia dizer isso, mas eu digo com o maior amor, com a maior franqueza, porque é o que eu penso realmente. Eu acho que a gente, nessa vida, deve, antes de desaparecer, dizer tudo que acha com o maior carinho, com o maior amor. Eu tenho o maior amor pelo trabalho dele. Ele forma mesmo os atores, ele tem uma disciplina. Só que ele não deixa os atores namorar, não deixa os atores tomar droga, não deixa os atores ser amigos íntimos. E eu faço tudo ao contrário: eu quero que os atores tomem drogas, eu quero que os atores se amem entre si, que os atores vivam a vida e sofram experiências da vida, porque só assim vão se autocoroar. Eu tento que sejam divas e divos e craques, jogadores, pessoas que saibam de si. Eu sou pelo teatro-poesia, como tem o futebol-arte.

O Paulo Borges diz que é perigoso o Brasil só vender alegria. Como você vê esse tema?


A produção da alegria é uma ciência. Para mim é a prova dos nove. Só está funcionando se você está alegre; se não está alegre, tem alguma coisa errada. Saber enlouquecer é uma grande sabedoria. E é preciso ter essa sabedoria para trabalhar com cultura. Quem tem medo de trabalhar em cultura tem medo de si mesmo, da própria potência. A cultura é uma potência. Quando você descobre a potência que você tem, é assustador.

O que você acha do Augusto Boal e do Teatro do Oprimido?


Detesto o Teatro do Oprimido. Detesto. Eu adoro o Boal, mas o Teatro do Oprimido cerceou o artista dele. Teatro do Oprimido não existe, cara. Todo mundo é oprimido. Precisamos é do teatro da libertação. A encenação que ele fez com o Gianfrancesco Guarnieri é memorável, ele é um gênio. Mas aí ele foi para psicanálise e para o Teatro do Oprimido.
Eu acho o Teatro do Oprimido um equívoco, não ensina as pessoas a se libertarem. Você dá arte para elas e dá mágica! Isso é mágico no palco. Eu adoro o Boal, eu aprendi muito com ele, foi meu mestre. Fui assistente dele, senti muito a morte dele, ele faz muita falta, mas o Teatro do Oprimido não. Com toda a sinceridade, eu detesto essa visão que a esquerda tem do oprimido, do coitado etc. Tenho horror disso. Eu acho que isso é antipopulismo. Eu sou populista, mas eu sou pelo populismo carnavalesco. Essa história do povo sofrido demais não, não, não, não!

Fale um pouco de Grotowski e Stanislavski.


O Stanislavski foi a primeira pessoa que pensou a atuação. E Meyerhold foi mais longe. Graças a uma tradução dele, que saiu em 1966, eu fiz o Rei da Vela. Me iluminou demais. E agora estou lendo uma tradução nova, muito boa, extremamente bem-feita pela Maria Thaís, um livro que ela editou com uma tese dela, em que reescreveu Meyerhold. Eu estou apaixonado de novo por ele. Mas a cada geração que chega no Oficina eu faço Stanislavski. Porque é como Freud: você pode superar várias coisas, mas tem que ler Stanislavski. Porque ele valoriza exatamente a interiorização, o estado de alma. No fundo, Stanislavski trabalha o lado animista, trabalha a percepção que você tem do inconsciente. Trabalha tudo o que o ator precisa, para, em cena, despertar o inconsciente. Aquilo se espalha pelo espaço todo e supera a quarta parede do palco italiano.
Grotowski é outra coisa muito boa. Em Roda viva eu o trabalhei de uma forma que ele iria odiar se visse. Eu o interpretei à minha maneira, com o Chico Buarque. A geração de 1968 fez a peça. Grotowski fala da autopenetração, que é preciso autopenetrar-se. Mas ele é muito cristão. Eu me lembro que quando eu saí da prisão, da tortura, fiquei puto com ele. Eu o conheci na casa da Ruth Escobar, e ele parecia um monge. Ele pensou que eu tivesse sido preso por tomar drogas, o que tanto faz, e para mim tomar drogas era uma virtude política também. Se eu fosse preso por drogas, eu estaria muito orgulhoso também, não tinha problema nenhum. Mas ele falou assim: “Tomar drogas não pode!” E me olhou com um olhar de inquisidor. Fiquei com horror dele. Porque ele tem livros muito interessantes, mas se fechou numa seita. E meu caminho é o oposto, eu gosto muito de multidão. Então, apliquei as teorias dele, mas apliquei no paganismo, que surgiu em 1968 com aqueles jovens que invadiram o palco, a plateia, o espectador, que tocaram o público, fizeram essa revolução de se tocar fisicamente.

E o teatro da experiência do Flávio de Carvalho?


Ah, também tem muita importância. Ele, infelizmente, não pôde realizar completamente, porque foi muito censurado. Eu sou muito parecido com ele fisicamente. E talvez eu faça esse ano, na bienal, O bailado do deus morto, dele, que gosto muito. Bom, ele a fez introduzindo uma macumba em cena, uma espécie de boi-bumbá macumbico. Tinha a morte do touro, e ao mesmo tempo a diversão do touro, um culto ao Dionísio. Flávio de Carvalho é fantástico. Construiu sua casa, um templo, e dedicou ao Nietzsche. Foi amante de Cacilda Becker, que recebeu dele toda sua cultura de artes plásticas. Era um homem muito rico, muito viajado. Quando ele a viu fazendo a dança do fogo, disse: “Eu vou fazer um templo para você, que pareceu a deusa do deus que dança. Vou fazer um templo para Nietzsche.” E fez a casa, e fazia grandes orgias, e levantava sempre a bandeira gay, do arco-íris. Aliás, a gente pretende primeiro fazer na casa dele o projeto da bienal. E quero fazer dentro de um intestino, o público entrando em um corpo, passando dentro das entranhas. Porque ele trabalhou muito essa questão da antropofagia ligada à fome, à comida. É um gênio.

Vamos voltar para as Bacantes.


Foram treze anos para montar Bacantes. O Oficina foi tombado, mas até hoje não está resolvido, até hoje está num impasse. Mas, praticamente, na semana passada, a gente fez a Bacantes num teatro superlotado, onde foi replantada a orgia. É diferente o público de hoje, porque em Bacantes, quando iniciou, foi maravilhosamente bem. Estreou no Teatro de Ribeirão Preto, que é um teatro grego lindo. Quando chegou o Dionísio, sem o público nem saber quem era, quando entrou o Marcelo Drummond em cena, houve uma ovação. Ele só falou: “Cheguei!”, aí foi uma ovação, parecia que esse deus é brasileiro, parecia que todo mundo conhecia esse deus. Aí veio para São Paulo, um sucesso. Fomos para o Rio, o Caetano Veloso foi estraçalhado, e houve uma difusão enorme disso, o que afastou o público da classe média e da classe alta, que passou a não ir mais. E até hoje, no teatro, tem meninos que dizem assim: “Eu prefiro que tirem o meu sangue do que a minha roupa.” Aí, no domingo passado, você teve uma orgia doce, delicada, maravilhosa, e foi replantada a orgia. Não é como antigamente, aquela agressão. Ao contrário. O público está aceitando totalmente Dionísio. Claro que tem um público que nem aparece, morre de medo. Minha geração não vai, não sabe o que está perdendo. Na Alemanha todos ficam pelados, tiram a roupa, fazem tudo…

Quais os seus projetos atuais?


Atualmente, eu procuro criar uma companhia que não é compreendida ainda, inclusive pela ordem jurídica. É a associação Teatro Oficina Uzyna Uzona, que trabalha com todas as mídias, com música, transmissão direta pela Internet, uma série de coisas. Trabalha com coro, principalmente. E é um coro que instiga o público a atuar também junto. Então está se formando uma outra geração de atores. O que é difícil, porque o teatro instituído é o teatro do monólogo, uma espécie de cartório que faz a terceira idade pagar caríssimo pra ver de perto atores de televisão. Nosso teatro a mídia ignora completamente.

Qual a importância do teatro?


O teatro e a poesia são as duas coisas mais importantes do mundo… Foram as artes mais descartadas, menosprezadas nesse período todo do neoliberalismo. No entanto, o poder está na poesia e no teatro poético.

O teatro sempre necessitou do atual, da presença. Ao mesmo tempo, aparecem as novas mídias. Charles Olson dizia que a poesia é a energia colocada num papel para ser desprendida pelo leitor. É possível que essa presença e essa atualidade reinventem novos caminhos pelo virtual e pelas novas tecnologias?


Eu não sabia que eu era poeta, fui saber que era poeta quando eu remontei aos setenta anos Vento forte para papagaio subir, que foi considerada, na época, uma peça psicológica, uma peça pequeno-burguesa, uma peça simbolista. Eu tinha vergonha dela. Ficou só três dias, mas ela inaugurou o Oficina. Fui encontrar a peça depois, quando fui escrever Cacilda, num artigo. Quando eu fui remontar a peça, eu falei: “Pô! Eu sou poeta!” Isso me deu uma força, cara. Isso me deu uma força humana. Eu percebi que, hoje em dia, o poeta é uma coisa importantérrima. Poeta quer dizer poder, porque me radicalizou, inclusive, no caminho do teatro poético, quer dizer, o teatro do poder. Eu acho que o teatro tem um potencial extraordinário de Walt Whitman. Rimbaud, por exemplo, Rimbaud, Mário Faustino. O Roberto Piva. Eu acho que não apareceu ainda à tona, mas eu sinto que a poesia é a coisa mais forte que existe porque ela é tudo que não foi dito esses anos todos de dominação, está nela, e isso tudo explode nos não ditos.
A poesia é exatamente o que não está escrito, é o que está por trás do que está escrito; é aquela possibilidade da palavra ser a palavra-chave, mântrica, que o coloca num universo louco. Eu tenho relido muito Rimbaud, estou apaixonado de novo por ele. As traduções são péssimas, todas, todas péssimas, péssimas, péssimas, percebo isso quando lançam edições bilíngues. O “Soneto do olho do cu”, que Marcelo e eu traduzimos com o Zé Miguel Wisnik, é uma tradução maravilhosa.

É a tradução sem música a que se faz geralmente.


É pudico, sem respiração, sem interjeição, sem ar. É cerebral.

O que são os Brics, Zé?


Os Brics, realmente, são o fim do império americano, que já acabou, mas ainda domina, porque tem o poder armamentista, o dólar, a especulação. E mesmo Obama, para fazer o que faz, tem que fazer concessões homéricas, como teve que tirar a lei do aborto para fazer passar a lei da saúde, manter a guerra no Afeganistão. Mas ele foi eleito por essa vontade, esse desejo de mudança mundial. O Bush teve um papel importantíssimo na história, expôs o programa do Partido Republicano, e o mundo inteiro rejeitou. Lula foi eleito também por essa vontade de mudança. O mundo está em evolução. Eu gosto do que o presidente do Equador fala: “Não é época de mudança, é mudança de era”. A gente já está numa outra era, quer a gente queira ou não. Mas tem ainda uma coisa velha que domina: o armamento. A especulação e o armamento. Por isso que tem que fazer cultura no meio dos armamentistas, com a beleza da cultura, fazer olharem para si mesmos, menos deslumbrados com os armamentos, mais deslumbrados com as armas que o ser humano tem para construir a paz. Eu adoraria fazer peças em quartéis, em bolsa de valores, nos lugares onde a cultura não vai. Porque a única maneira de transformar é por meio da cultura, não tem outra. Ideologia, eu não acredito. Religião, eu não acredito. Agora, a vida, os ensinamentos trágicos que a vida tem, os ensinamentos cósmicos que a vida tem, e com tesão, corroem essas defesas. Eu tinha muita vontade de atuar nessas áreas, nos agronegócios. No princípio, eu pensei em levar a cultura para o operário ou para o morro. Mas o Cartola, Dona Ivone Lara, o samba veio. Mas essas castas, castelos, apartheids precisam ser invadidos por bacantes e por sátiros poderosos para cobrar. Mas com o pleno sentido de fazer essas pessoas se descobrirem, não ficarem atrás das armas, como diz o Artaud. Os americanos são muito fortes, e têm atrás deles aqueles milhões de armas. E o cara que está lá atrás é um coitado, não sabe nada vezes nada de si. Artaud, entre os índios que tomavam peiote, viu um ritual e a potência que existia naqueles corpos. Comparou com aquela Europa e ficou envergonhado. Em Cuba, deram uma espada de Ogum a ele, então rumou à Islândia para tentar levantar o povo irlandês. Ele acreditava que aquele povo tinha uma energia, mas se enganou. Eles o capturaram e o botaram num hospício, onde ele ficou durante toda a II Guerra Mundial.

Como o corpo pode ser reinventado pelas novas mídias? A presença pode ser reinventada por elas?


Acredito que pode. Porque não há nada que propicie mais encontros do que a Internet, inclusive sexuais. O encontro humano. Todos querem encontrar o humano. Claro que tem pessoas que ficam no virtual e não querem sair dele, que é uma espécie de doença, uma espécie de fundamentalismo. E qualquer “ismo” não está com nada.

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