Texto publicado originalmente na revista GAM, em 1968, e republicado no livro “Experimentar o experimental”, dos Cadernos de Cultura e Pensamento, com organização de Sergio Cohn e Renato Rezende, em 2024.
O problema do objeto, como é invocado na arte contemporânea, traz em si uma contradição: é a liberação criadora que resulta da superação do quadro e da escultura tradicionais, mas é, ao mesmo tempo, uma tentativa de criação de uma nova categoria, que seria tão acadêmica e tradicional quanto as anteriores. O enfoque, pois, do problema do objeto deve ser o mais claro possívle para que se consiga resolver essa contradição. A ingenuidade de se pensar que seria uma categoria nova, híbrida, síntese de pintura-escultura-decoração, etc., fica posta desde já em cheque. O conceito de objeto, a sua formulação, é antes de mais nada intelectual: digo mais, de origem filosófica, nascida de um pensamento teórico que se originou desde cedo na arte moderna, e é na sutileza do seu campo que deve ser resolvido. Ele é puramente teórico. Desde a clássica conceituação de Malevitch ao pintar um quadrado branco sobre um fundo branco, abordando o problmea do objeto como representação, onde dizia chegar à “sensibilidade da ausência do objeto”, até a conceituação da “obra aberta”, os caminhos foram os mais diversos e de uma sutileza intelectual como jamais se vira na história da arte: uma verdadeira disecção teórica do próprio conceito de “obra de arte”, do seu porquê, do seu “estar”, do seu modo, etc.
Na pintura o problema da representação foi-se, checando cada vez mais com a descoberta do plano do quadro como elemento ativo, chegando Mondrian às suas já super conhecidas soluções, e nos seus inúmeros seguidores, ou nos movimentos que levaram a consequências novas suas ideias como no movimento neoconcreto brasileiro, à abolição do quadro ou à sua transformação numa nova manifestação estrutural diretamente derivada da pintura (Lygia Clark e o “Bicho”). Ives Klein, ao chegar no monocrômico, chega também a um outro ângulo (“elementar” – cor-cor, plano-plano, etc.) do limite da pintura; aliás, durante a época neoconcreta pintei um quadro totalmente branco (1959), onde o plano do quadro era o “plano objetivo do seu limite”. Ferreira Gullar, nessa época, escreveu sua célebre Teoria do Não Objeto, onde todos esses problemas foram abordados de modo magistral. Mas o problema do objeto não se restringe somente às transformaç~eos de ordem esturutural: parece ser uma aspiração mais ampla no pensamento moderno: parece desafiar a lógica dessas transformações. Aliás é importante que essa lógica seja quebrada, sob pena de termos apenas uma evolução acadêmica do problema: o objeto que era antes representado no quadro de cavalete, sob diversas maneiras, passaria a ser criado nele mesmo, no espaço tridimensional, etc. O fato, já se vê, nunca se deu desse modo, pois sua natureza é bem mais complexa: essa premissa estrutural parece se diluir num pensamento ainda antigo. A criação de “objetos”, de coisas, etc., é mais ligado ao comportamento criador do que a outra coisa qualquer: o giro dialético se dá nesse campo mais do que no das transformações estruturais: o problema do comportamento criador, de como encarar a criação, do ato criador como tal, etc., importa muito mais. Já o urinol de Duchamp ou os “objets trouvés” surrealistas, de caráter poético, é certo, mostravam essa mudança mais na atitude do artista do que na preocupação esteticista de transformar alguma estrutura. A liberdade crescente das manfiestações da criação humana começa a exigir novas estruturas, novos objetos, de modo cada vez mais direto: nascem as apropriações de objetos, objetos metafóricos, objetos estruturais, objetos que pedem a manipulação, etc. O interesse se volta para a ação no ambiente, dentro do qual os objetos existem como sinais, mas não mais simplesmente como “obras”: e esse caráter de sinal vai sendo absorvido e transformado também no decorrer das experiências, pois é agora a ação ou um exercício para um comportamento que passa a importaar: a obra de arte criada, o objeto de arte, é uma questão superada, uma fase que passou: de sinal para a ação no ambiente, passa à condição de elemento: é a nova fase do puro exercício vital, onde o artista é propositor de atividades criadoras: o objeto é a descoberta do mundo a cada instante, não existe como “obra” estabelecida “a priori”, ele é a criação do que queiramos que seja: um som, um grito, pode ser o objeto, a obra tão propalada outrora, ou guardada num museu: é a manifestação pura – a luz do sol que neste momento me banha é o objeto, no espaço e no tempo, no instante – objeto do instante, que existe à medida em que é experimentado e não pode ser repetido. Na verdade, a razão de ser primeira do surgimento deste problema, o objeto, na arte moderna, foi o de propor novo rumo para o da representação, de ordem maior, e esse da representação passou ao do comportamento, à descoberta do mundo, do homem ético, social, político, enfim da vida como perpétua manifestação criadora. Não nos limitemos a encarar acadêmica e comodamente o objeto como uma nova categoria, substituindo as antigas de pintura e escultura, pois estaremos sendo tão antigos quanto antes. A conceituação e formulação do objeto nada mais é do que uma ponte para a descoberta do instante, OBJETato, criação humana pura e única.
Rogério Duarte, recentemente, numa conversa comigo, formulou um novo conceito relativo a esse problema, na ideia do PROBJETO, que se refere às proposições “em aberto” feitas por artistas, que a meu ver são de real interesse: o objeto, ou a obra, seriam as probalidades infinitas contidas nas mais diversas proposições da criação humana: a mágica do fluir de ideias, no instante, no ato, no comportamento. Uma proposição, nesse sentido, seriam, por exemplo, os “ovos” de Lygia Pape, que são estruturas cúbicas forradas de papel fino ou plástico: a pessoa entra por baixo e sai furando o papel: o ato de furar e sair como se de um ovo é que importa, como a própria descoberta da ação específica aí invocada (Apocalipopótese); uma cama coberta por um cortinado de aniagem, que construí, para dentro da qual a pessoa é solicitada a entrar e ficar quanto tempo quiser, na supra busca de vivências, o que interessa não é o objeto cama como obra mas como instrumento para as vivências que se têm no seu interior; ou uma cabine minha que se encontra em Londres, onde as pessoas são convidadas a cheirar algo, também (Drógen). O próprio Rogério, numa manifestação recente no Aterro, levou cães amestrados que fizeram uma demonstração: todo o “environment” ativo, a hora, o dia, as circunstâncias, etc., importam na vivência, nas probabilidades gerais dos comportamentos, como algo tão válido quantoas antigas necessidades de uma obra acabada: tata-se da poética do instante, ou do seu erguimento como o mais eficaz para exprimir as ifinitas possibilidades da imaginação humana posta em ação.