Texto transcrito por Lygia Pape, em maio de 1970, de conversa com Mário Pedrosa, Antonio Manuel, Hugo Denizart e Alex Varella sobre a apresentação de Antônio Manuel na abertura do Salão Nacional de Arte Moderna. Publicado no livro “Mário Pedrosa – Encontros”, com organização de César Oiticica Filho, em 2013.
[Mário] O seu gesto se apresentando como obra, fazendo o que você fez, desmanchou, mostrou que o refugamento do salão não tem a menor importância. E o fato de você não ser recebido, de não estar constando do regulamento − o que existe é a vida. Então a vida é maior que o regulamento.
[Antonio] Inclusive, você fala que a arte está voltada para a natureza. Que ela pré-existe na natureza. Há um sentido disso também.
[Mário] Exato. É claro, o artista é sempre aquele que nunca
perde o contato com a natureza. O engenheiro, isto é, os outros, perdem o contato. Agora, o artista é aquele que não perde o contato mesmo num outro plano, dentro das máquinas. Ele vê as coisas como uma relação direta – ele e o mundo. Ele e a realidade. Ele e a natureza.
[Antonio] E, inclusive, Mário, isto foi uma atitude pessoal, parece que com isso eu assassinei mil preconceitos, mil coisas acadêmicas.
[Mário] Sem dúvida, claro. Você, com isso, levou adiante todo o processo da arte de despojamento que se faz – arte antiacadêmica, a arte despojada totalmente – deu uma conclusão magistral num salão típico da arte em si mesma: você desmanchou a mística, o mito de fazer arte assim, sem obra. Você voltou, depois, às origens. Não é só fonte da vida quando você bota esperma no óvulo da mulher. Você voltou às origens, à fonte da relação do ego com o mundo, à fonte da sabedoria – da consciência – da criação. Ontem falavam que você botou capim lá no salão da Bússola. Hoje dá uma consequência a tudo o que você fez – inclusive a arte pobre, a arte que se desmancha na ocasião. Você deu um exemplo. Foi de uma exemplaridade, nesse processo, extraordinária. Você foi ao fim de todo esse processo. De um modelo de uma arte que não é obra, a arte que se desmancha em si mesma – na ação. Criativa e se desmancha.
Os outros ficam sempre numa espécie de representação – é a representação de uma ideia. Você foi a realização de uma ideia – a conclusão de uma ideia. Isso é bonito, é uma coisa de um grande significado. Isso é uma coisa genial.
Você apresentou a obra – o ato – irresistível e ao mesmo tempo irreprimível. E ninguém pode impor uma exclusão. Não há regulamento nenhum que impeça que a obra se faça, o ato se faça. Você desmanchou todo o regulamento do salão, toda a burocracia da arte.
“Não adianta”. “Não deixo”. “Não pode apresentar”. Bem… Não pode apresentar a obra de arte, mas ela se faz! Está aqui!Independentemente de estar pregada no salão. Isso eu acho uma coisa importantíssima. Mais importante do que tudo o mais.
E é todo esse capítulo da atividade-criatividade que é a coisa fundamental do mundo de hoje – mundo de contestação – de recusa à sociedade de consumo de massa – da massificação – da cultura de massa.
Eu, aliás, ia propor na Bienal passada: arte moderna, depois arte pós-moderna, depois ambiental – arte-ambiental. Duas espécies de arte ambiental: existencial – é a que se faz
no Brasil – pois nós não temos tecnologia; e a arte ambiental abstrata – a arte da tecnologia. Depois disso, além disso – é a atividade-criatividade.
Tomem conta do mundo. Realizem o mundo do futuro. Criem uma situação nova de homens para homens. Além disso, é de uma negatividade absoluta; toda a negatividade
é criativa. Rompe todos os tabus, leva ao fim de todos os tabus, rompe tudo, no plano ético, no plano sexual, moral – no plano criativo.
[Hugo] Tua atitude, Antonio, é tão criativa, que a própria discussão do troço, como que abre perspectivas… Uma abertura…
[Mário] Pois é. Transcende o plano da discussão puramente estético – em função de uma obra. É a própria vida. Não se discute mais uma obra feita, mas uma ação criadora. É uma arte eminentemente de vanguarda. É um aspecto da revolução cultural, onde se rompem os tabus. O fato de, hoje, você ter feito isso, sacode toda a perspectiva da arte, a discussão estética, a discussão ética, a discussão sobre arte. Discute tudo. E com uma autenticidade enorme. O que Antônio está fazendo é o exercício experimental de liberdade.
Ele não está querendo dominar os outros. Ele está dizendo: “É assim é que é”. Autenticidade total, que é autenticidade criativa.
[Antonio] E senti uma euforia… Uma liberdade.
[Mário] É verdade, euforia quando você cria alguma coisa. Liberdade e criatividade são dois conceitos que vão juntos. Antonio cria e mostra todas as consequências de uma atitude de arte, de uma atitude de vanguarda, arte criativa, arte autêntica – o que se espera que seja arte – ele realizou isso, de uma maneira muito simples, e ao mesmo tempo radical.
Não adianta fazer arte do lixo, arte pobre, arte conceitual – todas essas formas. Está direito que faça, mas ele foi ao fundo desses problemas, para mostrar que se trata de uma incompatibilidade fundamental entre o homem e o ego, entre o ser e a sociedade de consumo de massa – a sociedade opressiva – que impede que a arte seja uma atividade legítima.
Então, eu acho essa coisa de Antonio fabulosa – o resto é brinquedo. E daí a importância do fato. A coisa mais revolucionária que há é a criatividade. É atividade criativa. A atividade criativa arranca o homem da sua rotina do cotidiano, ela põe sempre uma nova dimensão
para o homem.
[Alex] Eu acredito que todos que estavam lá, no salão, se sentiram fazendo aquilo. Cada pessoa que aplaudia, estava se despindo.
[Mário] Exato, exato, um poder de comunicação acima da comunicação de massa, acima da teoria da informação. Isso é a única coisa que se opõe de novo a essa sociedade de consumo. Então, a época moderna é uma época à procura exatamente da autenticidade final das coisas, das atitudes e tal. Para romper com a mistificação da sociedade de consumo de massa e mesmo da cultura de massa, porque a única coisa que se opõe hoje à cultura de massa é a revolução cultural. Cultura de massa existe fundada
num folclore do urbano. É uma média. A média que alcançava então para a média do público; ninguém existe individualmente. Existe uma média – uma média de tudo – que tem um poder de comunicação formidável. Mas ela não é autêntica. Ela é um intermediário – uma mediação. Ela só é autêntica em função de uma aceitação do imediato, do cotidiano.
Então a arte é a única maneira de romper com esse tabu, para pôr os problemas na sua autenticidade final. Então, um ato como o teu, Antonio, é um ato em si. A comunicação não se faz através de médias. Não é a média que se comunica com os outros – é o fato em si – a unidade fundamental irredutível do homem que se comunica com o outro. Esta é que é a relação – a comunicação fundamental que está por baixo de tudo isso – faz parte da revolução cultural – total – contra o status quo – contra o establishment. Daí a importância enorme, transcendente, do fato. A arte é a única coisa que é contra a entropia do mundo.
Caída no estado da homogeneidade da morte – arte foi sempre assim, mas ela precisa chegar às suas origens. E a um despojamento total. Você colocou tudo o mais num plano estético. Toda aquela problemática da arte pobre etc… Também fica no plano estético, porque não reúne, ao lado do plano criativo, o lado ético. Você colocou de uma maneira esplêndida o problema ético. Toda a arte de hoje – toda atividade-criatividade. O problema ético aparece de uma maneira espantosa – porque só tem significação a partir do problema ético. Toda aquela arte que se propõe a não fazer nada – é uma atitude – é um ato – mas o ato, o que significa? Um anticotidiano. Aí fica no plano estético, por exclusão. Ao passo que com tua atitude, Antonio, todos os elementos estão presentes – inclusive o lado ético é fundamental.