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Pensar o desenvolvimento no Brasil, por Gabriel Cohn

O livro “República e civilização: um olhar brasileiro”, publicado na coleção Cadernos de Cultura e Pensamento, traz quatro ensaios do sociólogo Gabriel Cohn que refletem sobre o Brasil. Entre eles, está o ensaio “O desenvolvimento como processo criador”, do qual apresentamos o trecho abaixo, onde o autor trata do tema do desenvolvimento em importantes autores brasileiros, como Celso Furtado, Bresser-Pereira, Francisco de Oliveira, Milton Santos e Florestan Fernandes.

Celso Furtado e a criatividade

Tomemos algumas passagens de obra só aparentemente secundária de Furtado, na realidade uma espécie de súmula do seu pensamento: Criatividade e dependência na civilização industrial. O ponto de partida, naquilo que tange ao nosso tema, soa convencional, quando ele vincula o desenvolvimento à geração de excedente e à acumulação. Entretanto, Furtado se recusa a subordinar o desenvolvimento à acumulação (ainda quando lhe sirva como “base”), e nunca perde de vista a diferença entre as lógicas que regem esses processos. Desde logo isso confere um tom crítico às suas formulações, como neste enunciado de síntese: “A acumulação é apenas o vetor que permite, mediante a inovação, introduzir as modificações no sistema de produção e nas estruturas sociais que chamamos de desenvolvimento”. Isso pode ser lido como significando que a acumulação é, sim, a base para o desenvolvimento, no sentido estrito de condição para, e não de determinação (se for permitido valer-se, aqui, de termo emprestado ao marxismo). Pode ter efeito causal, mas não determina, não induz conteúdo nem imprime forma particular. Isso permite chamar atenção para a ausência de relação direta entre os dois processos. Povos com exíguo excedente e baixo nível de acumulação podem ter alto nível de sofisticação cultural e de tramas sociais (como a pesquisa etnológica seguidamente demonstra), assim como pode ocorrer relação inversa, quando um padrão de acumulação tem efeito dissolvente nas configurações sociais e culturais, a exemplo da imposição de relações de mercado na ex-URSS. É mérito de Furtado ter enxergado claramente que o problema começa na relação entre produção de excedente (um processo técnico-econômico), acumulação (um processo econômico-político) e desenvolvimento (um processo político-social). “Desenvolvimento é, portanto, um processo de recriação das relações sociais que se apoia na acumulação”, prossegue Furtado. “Se a acumulação se transforma em um fim em si mesma (quando passa a constituir a base do sistema de dominação social) o processo de criação de novas relações sociais transforma-se em simples meios para alcançá-la. A inexorabilidade do progresso levando à desumanização do indivíduo na civilização industrial é um desdobramento desse processo histórico”. À primeira vista essa concepção crítica é basicamente de natureza ética, fundada na distinção entre meios e fins, com ênfase nos fins. Veremos, adiante, que sua visada é mais específica. Neste momento cabe assinalar que não é apenas a reconstrução da lógica interna de cada processo que conduz a argumentação, mas, sobretudo, a percepção de que há algo de errado na “civilização industrial”. O dado novo, e decisivo, consiste na orientação da análise por uma concepção abrangente, de “civilização” historicamente definida. Ganha toda sua força, com isso, a ideia, fundamental para nós, de que o desenvolvimento deve ser visto como um processo de criação de novas relações sociais, e não como mero desdobramento da acumulação.
Na realidade, a concepção de Furtado revela-se mais nuançada do que a mera recusa de relação linear entre acumulação e desenvolvimento ou a redução daquela a vetor de mudanças favoráveis ao desenvolvimento. Trata-se, para ele, de detectar e examinar tudo o que está implícito nos diversos níveis da realidade social envolvidos. Isso significa trazer à tona, pela via do tratamento do desenvolvimento na sua dimensão normativa, o “projeto social implícito na acumulação”, que só se realiza no plano do desenvolvimento. Torna-se, assim, historicamente mais concreta a própria ideia de acumulação (ela própria ocupando o núcleo do processo capitalista, embora Furtado não dedique especial atenção a isso). Longe de ser inequívoca, ela incorpora aquilo que, em outra passagem, falando ainda da “emergência de um excedente”, ele denomina com grande finura conceitual “horizonte de opções”, que se manifesta num “desafio à inventividade”. Tal desafio é pensado em profundidade. Envolve ruptura, emergência do novo, inovação no sentido forte. É verdade que neste ponto a ênfase incide sobre a acumulação e o termo civilização é usado num registro basicamente descritivo, no máximo como caracterização de período histórico. Por outro lado, a e ideia de “desafio à inventividade” é das mais fecundas e, se for permitido algo próximo a um jogo de palavras, põe mais uma vez à mostra a inventiva de Furtado.
É possível retomar, por essa via, o enfoque normativo, ao conferir-lhe conteúdo específico: “Se se traduz aumento nos gastos de consumo e diversificação deste por elevação do nível de vida, reintroduz-se na e ideia de desenvolvimento o critério valorativo de progresso no bem-estar social”. Isso significa que a dimensão normativa é intrínseca à ideia de desenvolvimento, não lhe é imposta por critérios de valor externos. É por isso que o argumento prossegue em termos que merecem citação: “Mas não se deve perder de vista que essa evolução do consumo é um subproduto do processo de reprodução das desigualdades sociais e exclui outras formas de elevação do nível de vida, concebíveis em função de outros projetos de transformação social. A percepção dessa problemática, a partir de uma consciência crítica fundada na prática do desenvolvimento, está por trás de grande parte dos movimentos políticos contemporâneos nos países em que mais avançou o processo de acumulação: as lutas contra a poluição, contra o desperdício de recursos não-renováveis, a defesa do patrimônio cultural, a rejeição do consumismo. Esses movimentos têm em comum o fato de que pretendem explicitar um conjunto de fins, a partir de uma visão global da sociedade”.
É nesses termos que aquilo que inicialmente se apresenta como uma concepção abstratamente valorativa se revela dotado de conteúdo muito preciso. “Nada é mais indicativo da canalização das forças criativas para os fins, na vida social, do que a existência da atividade política”. E mais adiante, numa explicitação daquilo que tem em mente para falar de fins em registro político (no sentido mais “clássico” do termo, que Tocqueville retomaria como “arte da associação”): “Se criatividade é liberdade, em nossa época a única forma autêntica de liberdade que existe é a política”. Neste ponto ganha expressão o modo como se associam, na argumentação de Furtado, a dimensão política e aquela das “forças criadoras”, que se dissipam quando não encontram canais de efetivação. Nessa mesma linguagem, que evoca Durkheim, Furtado escreve: “Se os grupamentos humanos se empenharam por todas as partes para ter acesso a novo excedente é porque a vida social gera uma energia potencial cuja liberação requer meios adicionais. E na sua dupla dimensão de força geradora de novo excedente e impulso criador de novos valores culturais, esse processo liberador de energias humanas constitui a fonte última do que entendemos por desenvolvimento”. Até porque “a civilização material engendrada pela industrialização não é outra coisa senão o conjunto das manifestações externas de um processo de criatividade cultural que abrange outras esferas da vida social”.
Cabe lembrar, nesse contexto, que em registro temático semelhante e na mesma época o injustamente esquecido sociólogo paulista Luiz Pereira punha a questão em termos mais duros, com clara impostação marxista, mas nem por isso deixava de aproximar-se de Furtado nesse ponto. Após sustentar que não há como separar subdesenvolvimento de desenvolvimento como fases distintas, mas, pelo contrário, ambas deve ser vistas como formando processo unitário, de subdesenvolvimento-desenvolvimento, ele vai ao ponto, naquilo que aqui nos importa, nos seus Ensaios de sociologia do desenvolvimento: “A problematicidade do subdesenvolvimento é, em boa parte, a problematicidade do capitalismo como forma de vida”. Temos, então, uma determinação histórica precisa: capitalismo. Como forma de vida, porém, o que abre amplos espaços para uma concepção mais densa e matizada do tema.

Bresser Pereira e o progresso

Mais recentemente o tema foi retomado, após explorações anteriores suas, por Luiz Carlos Bresser Pereira, em texto sobre “desenvolvimento, progresso e crescimento econômico” no qual a dimensão política ganha especial realce. Isso é feito num registro peculiar, no qual Bresser insiste na associação entre desenvolvimento e progresso. Em meados do século XIX a e ideia de progresso converte-se na de desenvolvimento, “com forte viés econômico”, sustenta. O viés econômico ele busca corrigir pela ênfase na política pelo ângulo dos objetivos perseguidos no desenvolvimento, enquanto retém a adesão “otimista” à ideia de progresso. Com isso, mantém a ótica nos fins sem deter-se nos meios, neste ponto com timbre semelhante ao de Furtado, sem, contudo, enveredar numa crítica à “civilização industrial”, nem, muito menos, ao capitalismo. “Desenvolvimento ou progresso é o processo histórico pelo qual sociedades nacionais alcançam seus objetivos políticos de segurança, liberdade, melhora material, redução da injustiça social e proteção do meio ambiente”, escreve ele, para assinalar a “gradativa consecução dos correspondentes direitos que as sociedades modernas definiram para elas mesmas como direitos humanos”. Nesses termos, o progresso é visto como um ideal (mas, enfatiza ele, não como um mito), ao passo que o desenvolvimento se apresenta como um processo.
Importa, neste ponto, reter a posição de Bresser, segundo a qual estamos lidando com construções sociais. À “fantasia exata” da associação entre liberdade e criatividade em Furtado, Bresser opõe uma concepção que poderíamos definir como “construtivista”. Sua atenção volta-se de preferência para os agentes e as instituições e não tanto para as grandes configurações históricas que preocupam Furtado. Prefere deter-se criticamente naquilo que denomina tecnoburocracia a examinar as perspectivas menos nítidas da “civilização industrial” ou mesmo do capitalismo. Importam-lhe mais (em termos analíticos, bem entendido, não por indiferença ética) as organizações do que os modos de vida que engendram ou aos quais são afins. Talvez isso possa ser visto pelo prisma daquilo que transparece da ocupação de ambos com o mundo da cultura. Enquanto Bresser dedicava atenção aos movimentos da contracultura e da contestação ao estado do mundo nos anos 1960 e 1970 e sempre se manteve ativo como crítico de cinema, Furtado dá sinais de ter-se concentrado mais na grande literatura e na música, como consumidor refinado. Do lado do primeiro, a atenção ao que se vai fazendo, “em busca do novo” (para usar título de livro em sua homenagem), tudo em nome de quem constrói o quê e de qual modo. Do lado do segundo, o olhar agudo para a feição que assume todo um modo de vida, com foco no alcance e nos limites do que se faz e em como se pode fazer avançar a criatividade livre.
Embora próximas (até porque ambas contemplam a inovação como fator indispensável), são perspectivas diversas: enquanto a criatividade é suscitada por desafio das circunstâncias que exige inventiva de longo fôlego, a construção envolve o exercício sistemático de capacidade de promover melhora consistente nas condições de vida correntes. É claro que também pela angulação de Bresser Pereira a construção, quando se trata da sociedade, é mais do que montagem de peças e envolve intrincada tessitura de relações que se criam e recriam no processo. Nesses termos, e reintroduzindo Furtado, a criatividade envolve a nova disposição dos fios da trama, com base naquilo que a invenção (que, em termos mais restritos, se traduz na inovação) propicia, que é a introdução de novos fios, junto com novos dispositivos para tecê-los. Nesses termos, é ao cabo de um processo inventivo e criativo de desenvolvimento que se pode fazer justiça à formulação de Marx segundo a qual a sociedade (e cada membro seu) é o conjunto das suas relações.

Francisco de Oliveira e Milton Santos

Ambas linhas de reflexão, que se desenrolam no interior do grande pensamento burguês naquilo que este apresenta de melhor, expõem-se a contraste incisivo e mesmo contundente quando se consideram as análises de antigo colaborador muito próximo de Furtado. Colaborador próximo, sim, e genuíno admirador, mas separado dele (e muito mais de Bresser) pela posição básica a que se filia e que adota com radicalidade e vigor. Trata-se de Francisco de Oliveira, um dos grandes representantes, junto com figuras como Florestan Fernandes e Milton Santos, de uma concepção plebeia da natureza e das exigências da sociedade brasileira (em contraste, por exemplo, com a concepção patrícia de um Gilberto Freyre).
Em artigo bem característico da sua capacidade de levar os argumentos aos seus limites e que deu ensejo a importantes desdobramentos, “Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal”, Francisco de Oliveira (ou Chico de Oliveira ou simplesmente Chico, como passará a ser chamado aqui, num talvez perdoável abuso, motivado mais por afeto do que por irreverência), assinala como questão central na sociedade brasileira aquela relativa à blindagem que as elites burguesas opõem à constituição de uma esfera pública e, de modo geral, à própria emergência da figura do público, em contraste com o privado. Isso, sustenta ele, afeta diretamente a constituição do conjunto dos direitos sem os quais não há como falar de sociedade desenvolvida. Não se trata de contentar-se com identificar os direitos para os quais aponta o desenvolvimento. É preciso mostrar por onde corre o caminho – no caso, a esfera pública – por onde necessariamente passa sua constituição. Como bom analista de inspiração marxista, busca no mesmo passo caracterizar os obstáculos estruturais à sua efetivação, relativos à configuração das relações de classe. E o faz sempre com visada atenta para os descompassos e os conflitos que essa configuração promove e para as correspondentes vias alternativas para a intervenção.
A questão básica é a do fundamento da privatização do público, que para Chico não se resume em alguma modalidade de herança histórica, nem é efeito de condutas perversas desses ou daqueles agentes sociais. Trata-se, no melhor registro da análise da ideologia, de um modo de pensar e agir que traduz irrefletidamente as condições da sua produção social. Neste ponto ele faz uso imaginativo da grande descoberta de Marx no plano social e de Freud no plano individual, de que a experiência não precisa ser verdadeira para gerar efeitos, desde que a falsidade e a ilusão sejam necessárias à reprodução da estrutura dada. “A privatização do público é uma falsa consciência da desnecessidade do público”, escreve ele. “Ela se objetiva pela chamada falência do Estado, pelo mecanismo da dívida pública interna, onde as formas aparentes são as de que o privado, as burguesias emprestam ao Estado: logo, o Estado, nessa aparência, somente se sustenta como uma extensão do privado. O processo real é o inverso: a riqueza pública, em forma de fundo, sustenta a reprodutibilidade do valor da riqueza, do capital privado. […] A esse processo objetivo corresponde uma subjetivação da experiência burguesa no Brasil de hoje que é radicalmente antipública”.
Naquilo que aqui mais importa o avanço analítico se encontra na última frase, na qual um processo objetivo que enlaça economia e política é associado a uma forma social de experiência. No plano mais fundo isso afeta a constituição daquilo que permite definir o sentido político do processo que aqui nos interessa, no qual se unem civilização e desenvolvimento. O essencial desse avanço consiste no modo como se examina a relação entre o público e o privado na sociedade brasileira. O argumento vai muito mais fundo do que a habitual referência a uma suposta confusão entre ambas as esferas (o que, no nível mais epidérmico, até pode ser sustentado). Busca-se demonstrar que para além disso há algo mais sério, compatível com os fundamentos estruturais aos quais alude a citação acima. É que na concepção difundida na nossa sociedade a referência àquilo que é público remete mais propriamente a objeto de apropriação, posse. Nela o espaço público figura como território ocupado ou a ocupar, mais do que como objeto de confusão de esferas ou mesmo de “colonização” – ou seja, de imposição de princípios de organização e funcionamento – de uma pela outra. Desse modo, Chico empresta a força da sua análise à crítica, intrínseca à posição aqui defendida, à concepção de público consoante critérios de propriedade, que atravessa de ponta a ponta nossa sociedade. Naquela concepção o que é público é “de todos”, logo de ninguém, logo disponível para quem chegar primeiro. Em contraste com isso e em posição que não é estranha àquela adotada por Chico, sustenta-se aqui que, longe de ser matéria de posse, a coisa pública é orientação normativa (pois o termo “pública” qualifica a coisa) antes de relação com objeto. Em condições adequadamente entendidas como republicanas, os cidadãos orientam-se com relação ao público (de preferência ao privado, que igualmente qualifica a orientação) como fim e não como meio, para usar o contraste de Furtado, muito a propósito ao assinalar que o privado concerne ao âmbito dos meios. É nesses termos que ganham todo o seu sentido posições críticas como a de Milton Santos, no sentido de que “brasileiro não quer direitos, quer privilégio”, ou o gracejo atribuído ao economista Edmar Bacha, de que o único partido político real no Brasil é o PQM, Partido do Quero o Meu. Ou ainda, num registro mais severo, o diagnóstico, por Hélio Jaguaribe, do caráter “cartorial” da sociedade brasileira. Se a essas qualificações for permitido adicionar mais uma, bem poderia ser a de que a sociedade brasileira está impregnada, nas suas instituições e nas modalidades de ação que induz nos seus integrantes (e mediante as quais se reproduz), por um estilo de democracia senhorial. O mérito de Chico, claro, consiste em não se deter na identificação ou na denúncia das insuficiências e em buscar os fundamentos estruturais do estado de coisas de que trata.
A análise de Chico desemboca em formulação de forte contundência, que poderá ter desconcertado muitos leitores. Após citar com aprovação o filósofo e jornalista liberal Rolf Kuntz, que em artigo havia qualificado o neoliberalismo como integrismo e fundamentalismo, conclui ele que “nas condições concretas da sociedade brasileira o neoliberalismo, como um Frankenstein construído de pedaços de social-democratas, antigos e novos oligarcas do Nordeste, populistas de direita, trânsfugas de esquerda […] passa por uma estranha metamorfose: sua face real é o totalitarismo”. Coerente com o modelo de análise que emprega, revela-se sempre atento, não à continuidade linear do mundo, mas às mudanças de forma, metamorfoses. E não só às metamorfoses, como também às condições objetivas que as geram; no caso, a configuração peculiar do neoliberalismo brasileiro. A forma final, a “face real” assumida nisso é que espanta: totalitarismo. Sabemos que esse termo na origem foi usado para caracterizar regimes políticos bem definidos historicamente, o nacional-socialismo de Hitler e o bolchevismo de Stalin. Também nos recordamos de que uma espécie de antecipação mais amena dessa forma extrema de sociedade autoritária de mobilização forçada já fora feita nos anos quarenta do século XIX por Tocqueville, na sua análise da democracia na América. Nesta, o problema do regime que divisava no horizonte como resultado da igualdade de condições democrática não era a exacerbada brutalidade e sim precisamente o seu caráter ameno, quase imperceptível, normal: o imenso poder tutelar que se estende sobre a sociedade toda e a penetra até nos espaços mais recônditos. A possível referência, no caso, claramente seria a esta segunda modalidade de regime, que vai eliminando sem maiores traumas o pensamento e as condutas que dele se desviem além de um certo ponto, que se move conforme as circunstâncias (ao contrário da tolerância zero dos totalitarismos consumados do século XX). É a gradativa absorção de todas as dimensões da vida por um padrão de pensamento e conduta que vai se tornando unitário. O exato oposto da vida social civilizada, portanto.
Há, contudo, um ponto especialmente intrigante na análise de Chico, que de algum modo evoca característica central dos regimes totalitários contemporâneos, como apontavam Hannah Arendt e, em outro registro, Franz Neumann com referência ao nacional-socialismo.

Essa aparência levou a uma outra experiência, que é a da constante troca de posições no Estado e na empresa privada. […] Essa promiscuidade como que atuou no sentido de borrar, subjetivamente, as barreiras e fronteiras entre o público e o privado, ou, mais radicalmente, atua no sentido de que tudo é privado: as pessoas funcionam como persona, não apenas em razão de um trânsito que baralha os papéis, mas porque a racionalidade das decisões é fundamentalmente privada. A introdução de critérios micro na racionalidade estatal a transforma, subliminarmente, em uma racionalidade privada. De par com o método de custos/benefícios passa-se, como mestre Weber ensinou, da razão substantiva para a razão instrumental: há uma ruptura para um outro paradigma, que passa a presidir as decisões do Estado. Assiste-se como que uma regressão do universal abstrato como processo que cria o Estado como ‘comunidade ilusória’ para o mero chão de interesses privados que, já agora, não se universalizam, já não têm, aparentemente, a necessidade de liberarem-se da sua forma de interesses privados, tal o nível de dominação, ou sobretudo da experiência subjetiva vivida pela burguesia.
A semelhança consistiria na contínua troca de posições de poder e influência entre o setor privado e o público. É aqui, aliás, que poderíamos localizar algo como uma “confusão entre o público e o privado”. Mas não é este o ponto principal. Se no regime nazista, que nesse aspecto é o exemplo perfeito, a “promiscuidade”, feita em nome de uma esfera pública reduzida a “povo” compacto e sem fissuras, gerava níveis intensos de competição e insegurança e resultava em fortalecimento de um poder central pessoal e despótico, no nosso caso resulta no incremento de formas de cumplicidade em um ambiente permissivo que não é gerado por concentração de poder, mas, pelo contrário, pela persistente diluição do polo público da relação. É essa espécie de regressão do conjunto da esfera pública para o campo privado que gera a peculiar modalidade de experiência burguesa (no caso: dominante) pela qual a deriva “totalitária” se torna possível nos termos mais amenos do “pensamento único” e condutas afins.

Referência semelhante ao totalitarismo encontra-se também em Milton Santos, no notável livro no qual busca uma “outra globalização”. Após invocar outra obra que certamente merece ser revisitada, aquela Crítica da razão dialética na qual Sartre introduz a ideia de “serialização”, Milton Santos, após apontar as condições nas quais se acumulam dificuldades “para o convívio saudável e para o exercício da democracia”, reduzida esta a “democracia de mercado e amesquinhada como eleitoralismo, isto é, consumo de eleições”, comenta que essas são “condições para a difusão de um pensamento e de uma prática totalitárias”. Isso se dá “na esfera do trabalho como, por exemplo, num mundo agrícola onde atores subalternizados convivem, como um exército, submetidos a uma disciplina militar”. Ou seja, encontram-se na situação de arregimentados, perturbadoramente semelhante àquela que se via em regimes de despotismo escancarado. Curiosamente nenhum desses dois autores faz referência a fenômenos fortemente afins ao tema, como a crescente difusão de um estilo de “novilíngua” que deixaria Orwell alarmado ou as formas cada vez mais cerradas de controle dos seus “colaboradores” (esse é o termo oficial) pelas grandes corporações privadas, aproximando-se de um novo regime servil em pleno capitalismo tecno-informático.
Diante disso, conclui Milton Santos “cabe-nos, mesmo, indagar diante dessas novas realidades sobre a pertinência da presente utilização de concepções já ultrapassadas de democracia, opinião pública, cidadania, conceitos que necessitam urgente revisão, sobretudo nos lugares onde essas categorias nunca foram claramente definidas nem totalmente exercitadas”. Em outra passagem encontra-se observação que permite contextualizar, com vistas ao “paradigma da época” que é a velocidade, a afirmação de Jacques Austruy sobre o poder como senhor do tempo. Trata-se da questão do “relógio despótico”. Seja qual for o corpo social, escreve, “a velocidade hegemônica constitui uma das suas características, mas a definição da realidade somente pode ser obtida considerando-se as diversas velocidades em presença”. Poderia também escrever “múltiplas temporalidades”, mas o essencial é que “a eficácia da velocidade hegemônica é de natureza política e depende do sistema socioeconômico político em ação”. Impossível não ver em passagens como essas a impregnação do texto todo pela urgência de se repensar e refazer um modelo de processo civilizador marcado por uma ordem desordeira (a expressão não é dele) que promove o pior, a “ausência de compaixão” (mas esta, decisiva, é).
Por sua vez, Francisco de Oliveira, em outro texto, sobre “democratização e republicanização do Estado”, examina por ângulo diferente o complexo de problemas que busca enfrentar na sua forma limite. Ao fazê-lo matiza algumas das suas afirmações, para abrir espaço a outras, não menos incisivas. “Está em gestação uma sociedade de controle, que escapa aos rótulos simples do neoliberalismo e até mesmo ao mais radical e oposto de autoritarismo”, escreve ele para circunscrever o tema. “Não parece autoritarismo, pois as escolhas por intermédio das eleições se oferecem periodicamente, embora o instinto do eleitor desconfie da irrelevância de seu voto. […] Não é neoliberalismo porque raras vezes se viu controles estatais tão severos e ‘intervenções’ tão pesadas”. Aqui, como em outros momentos (como veremos a seguir) fazem falta conceitos mais precisos, pois as ciências sociais só os oferecem de maneira aproximada. “A ciência social já havia advertido para o novo Leviatã, que não é o Estado, mas um controle à la Orwell e Huxley, uma presença ausente ou uma estrutura invisível, um Big Brother que panopticamente tudo olha e vigia”. E, após lembrar a soma de micropoderes que, convertidos em macropoder, submetem até mesmo os governos mais poderosos, chega ao ponto central: “uma política sem política”. É que “as tendências contracionistas e centralizadoras do capitalismo contemporâneo caminham na contramão da democracia e da república, principalmente como normatividade”. Atente-se, neste passo, que o autor tem em vista concepções de democracia e república que não se esgotam no plano descritivo, mas alcançam dimensão normativa. Isso, contudo, não o conduz no rumo a uma concepção de índole ética ou valorativa do tema. Incide diretamente sobre um aprofundamento da dimensão propriamente política, relativa à orientação e condução dos desempenhos públicos e privados.
Tal percurso o leva, em outros passos da sua intervenção intelectual, a mais uma formulação inovadora, a da “hegemonia às avessas”. Presenciamos, sustenta Chico, a emergência de fenômeno novo, que ainda desafia conceituação precisa. É que se invertem os termos do processo político fundamental detectado por Gramsci. Para este, na relação de dominantes e dominados numa ordem estatal importa, para além da dimensão coercitiva costumeiramente associada ao Estado, também a dimensão de “direção intelectual e moral” da sociedade, a cargo da classe que, por isso mesmo, é dirigente e não meramente dominante. Pois bem, constata Chico, o que vemos é uma curiosa inversão da relação. Em condições específicas, que identifica em um modo de governar e em políticas sociais no Brasil recente, para todos os efeitos a direção moral da sociedade passa a ser exercida pelos dominados. São os dominantes (os capitalistas, o capital, especifica ele) que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, com uma condição: a de que a “direção moral” não questione a forma de exploração capitalista. Direção moral de baixo, dominação efetiva de cima: algo como uma nova forma de dominação política. Na realidade, antipolítica, porque, ao assim dispor as coisas, os dominantes escapam ao ônus da legitimação e os descompassos e conflitos não logram ganhar corpo naquilo que importa, que é uma esfera pública ocupada por aquilo que Gramsci chamaria de classes fundamentais.
Em outro momento, como vimos, Chico recorre ao termo “totalitarismo” para caracterizar a forma de dominação inaugurada pelo neoliberalismo. Trata-se de dominação que se exerce pelo lado social antes do que institucional, como se tivesse alcançado plena vigência a intuição de Tocqueville acerca da sociedade norte-americana no segundo quartel do século XIX, na qual o Estado podia dispensar as formas autoritárias de controle porque esse já era exercido diretamente pela sociedade (por aquilo que século e meio depois se chamaria de “sociedade civil organizada” e não por quaisquer “massas”). Tocqueville e Arendt, dois autores inteiramente estranhos ao modo de pensar de Chico, davam alento àquela primeira aproximação do tema. Na tentativa que agora nos ocupa a referência é outra e a reaproximação com o ambiente marxista se cumpre, com Gramsci. O “pequeno sardo” comparece para desempenhar de maneira inversa o papel de Hegel em relação a Marx. Não que Chico tivesse posto sobre os pés um Gramsci que se sustentasse de ponta-cabeça. É o mundo (ou, pelo menos, a sua parte que decide sobre a sorte dos muitos) que está às avessas – fora dos gonzos, diria Hamlet tão bem estudado entre nós por Eduardo Rinesi em Política e tragédia – e é de novo Gramsci que oferece as condições para perceber isso. Bem vistas as coisas, porém, a imagem da inversão das relações talvez não exprima da melhor forma a intuição de Chico. Na realidade, a coisa vai mais fundo. Como ele mesmo demonstra, o que está em jogo não é simples inversão, mas uma peculiar reiteração do consentimento, que leva mais água ao moinho das classes dominantes. O essencial no exercício da hegemonia é o consentimento. Os dominados consentem, os dominantes conduzem. A inversão dessa relação, no caso analisado por Chico, com todas as referências às condições estruturais envolvidas, não é linear. Os dominantes consentem, sim, na transferência da direção, ou do ônus da direção. Como dominantes, porém. São eles que consentem em transferir a direção moral. Contudo, nas condições e com as restrições que estabelecem. Não houve simples inversão, sequer transferência do consentimento. Houve, sim, reiteração do consentimento, consentimento ao quadrado, hegemonia consentida, na qual os dominantes reproduzem e reforçam sua condição.
Se na caracterização da índole totalitária do neoliberalismo um tema central era a “destituição da fala” (da fala como expressão do dissenso e resistência à homogeneização, como figura medular da política na sua encarnação pública), agora é a fala esvaziada, porque provém de um não lugar, que absorve a atenção de Chico. Por trás disso tudo, dois adversários sempre presentes: o peso de uma configuração social marcada por uma etapa do capitalismo que leva a extremos o impulso a homogeneizar as relações ao torná-las lineares e entregá-las a agentes sociais indiferenciados, junto com a divisão do mundo em dois grupos, os que contam e os indiferentes. Temos aí um retrato de tudo aquilo que conspira contra o desenvolvimento e contra sua face civilizadora. Isso, desde que admitamos o essencial naquilo que se busca sustentar aqui, a saber: que a ideia de desenvolvimento não pode ser reduzida a conceito meramente descritivo de um estado de coisas, mas aponta para objetivo a ser perseguido. Isso significa que a referência a desenvolvimento, ou a carência dele, configura um princípio de avaliação de formas de organização e de políticas mais do que um esquema de exposição e análise de processos em curso. É também nesse sentido que tem escasso sentido a posição “desenvolvimentista”, salvo como exigência de que haja de fato desenvolvimento, mais qualificador que aditivo.
O desenvolvimento necessariamente passa pela qualificação das relações entre grupos e entre indivíduos na sociedade. Daí sua íntima afinidade com civilização. Daí também que seu oposto não seja algo como estagnação econômica ou baixa eficácia de instituições políticas. O seu campo é o das relações de todo tipo e ordem, desde que sociais. Cumpre, aqui, entender este termo também na sua dimensão crítica (como exigência no horizonte mais do que identificação de estado de coisas): a de laços entre pessoas iguais e livres. Os alemães, que com Tönnies inventaram o contraste entre comunidade, Gemeinschaft, e sociedade, Gesellschaft, esqueceram-se de que o segundo termo, referente à sociedade, compartilha suas raízes com Geselle: igual, companheiro (enquanto o primeiro vem de comum, compartilhado). Daí que, na sua concepção mais funda e só vislumbrável por empenho crítico, sociedade é afim à democracia, entendida não meramente como regime de poder, e sim como empenho compartilhado na universalização de relações igualitárias.

Florestan Fernandes e a visão ampliada

“Desenvolvimento não é um ‘problema econômico’, e tampouco um ‘problema social’, um ‘problema cultural’, um ‘problema político’ etc. Ele possui o caráter de problema macrossociológico, que afeta toda a organização da economia, da sociedade e da cultura e que diz respeito, essencialmente, a todo o ‘destino nacional’, a curto ou a longo prazo”. O registro é semelhante, porém o autor é outro. É Florestan Fernandes que assim se pronuncia, ao tratar do “desenvolvimento como problema nacional” (na importante coleção de ensaios Sociedade de classes e subdesenvolvimento, que nos servirá de referência aqui), ao discutir aquilo que denomina, com aspas, “destino histórico”. A ênfase incide no duplo caráter das mudanças a serem feitas na sociedade brasileira, na sua condição de nação envolvida em redes de dependência. Trata-se de articular processos externos e internos à sociedade, com vistas à autonomia e à independência. Internamente, trata-se de enfrentar os dilemas (o termo é típico de Florestan) da revolução burguesa no Brasil. Nessa ótica, o desenvolvimento continua a ser caracterizado em registro negativo, como carência, subdesenvolvimento. Contudo, isso não se reduz a para mera descrição de estado de coisas. Remete ao problema das relações de dependência, vistas pela ótica de um processo histórico interno fundamental: a revolução burguesa (com o que ganha inteiro sentido a associação, já no título do livro, entre subdesenvolvimento e sociedade de classes). Tal revolução tem limites bem definidos. “Ela não leva a uma crescente autonomização econômica, mas ao tipo mais complexo, sutil e completo de dependência econômica que já pesou sobre o destino desta nação”. Essa constatação lhe serve para caracterizar, na sua expressão limite, a tarefa que cabe àquela revolução burguesa. Tarefa mal cumprida, é verdade; mas, como escreve em outro texto, sobre a revolução burguesa e os intelectuais, “essa débil revolução burguesa constitui, por enquanto, o único processo dinâmico e irreversível que abre algumas alternativas históricas”. Pode-se, apesar de tudo, “reconhecer que ela possui um sentido histórico criador”. O essencial, contudo, consiste em que “ela e o capitalismo só conduzem a uma verdadeira independência econômica, social e cultural quando, atrás da industrialização e do crescimento econômico, exista uma vontade nacional que se afirme coletivamente por meios políticos, e tome por seu objetivo supremo a construção de uma sociedade nacional autônoma”. Falta, porém avançar na construção dessa vontade afirmada por meios políticos. Pois é esta condição que importa: trata-se de instaurar uma “sociedade econômica, social e politicamente democrática”. A exigência não se esgota no plano da construção e implementação de instituições (Florestan costuma falar, sem muitas concessões, em “técnicas de organização do poder”) representativas e vinculadas a direitos básicos. Quando trata do desenvolvimento como “problema nacional”, ele insiste na exigência daquilo que denomina “querer coletivo”. E este depende, por sua vez, da “democratização da renda, do prestígio social e do poder”, que lhe oferece os fundamentos para um “consenso democrático”. Sem este consenso não haveria como “alimentar imagens do ‘destino nacional’ que possam ser aceitas e defendidas por todos, por possuírem o mesmo significado e a mesma importância para todos”. Se neste ponto for permitida uma observação demasiado sumária e injusta com todos os envolvidos, estranha trajetória intelectual essa que se cumpre nessas passagens, nas quais ressoam, sem adesão embora, nomes tão díspares como o do porta-voz da “revolução da direita” alemã nos anos 1930, Hans Freyer na referência ao “querer coletivo”, junto com o teórico da planificação democrática e grande inspirador de Florestan, de Furtado e de tantos outros no Brasil e na América Latina, Karl Mannheim (conterrâneo, contemporâneo e contrapartida sociológica de Karl Polanyi) na exigência da democracia, para desembocar numa espécie de antecipação de Habermas na busca do consenso, passando pelas ressonâncias weberianas do “destino nacional”.
O essencial nisso tudo é bastante claro. Estamos diante de uma concepção de desenvolvimento com algo grau de diferenciação interna e pensada em vários níveis. Isso permite a Florestan atingir uma formulação verdadeiramente notável no tocante à democracia como exigência básica do processo todo. O que se encontra na base do encaminhamento da solução para esse problema histórico? A vontade de elites autocraticamente imposta? Governos e partidos dotados de legitimidade? Algo mais fundo é necessário, sugere Florestan. E, em momento decisivo da fala aqui citada (pois o texto se destinava a discurso de paraninfo na USP, em 1964) sobre a revolução brasileira e as tarefas dos intelectuais (que “devem fazer da instauração da democracia o seu grande objetivo histórico”) ele propõe a exigência da “consolidação do estilo democrático de vida”. Em outra passagem, das várias nas quais essa expressão decisiva aparece, ele a define esse estilo de vida como envolvendo, além das dimensões econômicas e política, aquela que interessa aqui, a “societária”. Talvez tenhamos mesmo que reconhecer que Florestan não tinha isso em vista com toda a clareza quando empregava a expressão, mas o que nela se invoca é efetivamente democracia como estilo de vida, como modo de viver em todas as dimensões da existência socialmente compartilhada. Sugere-se, nisso, a questão fundamental, da intrincada e sutil rede de relações entre democracia (seria melhor, em analogia a “processo civilizador”, falar em “processo democrático”) e determinado modo social de configuração da vida, que lhe dá alento. Fiel à sua linguagem própria, Florestan, se perguntado, provavelmente traduziria isso como uma específica “técnica de organização da existência social”. Ganharia, talvez, em precisão, mas perderia muito em caráter expressivo. Estilo democrático de vida é um achado, vai ao cerne da questão.
Como sempre em Florestan, a referência mais funda é a algo mais do que exigências estruturais como papéis e funções. Esses dois conceitos elementares ocupam posições de relevo em seu pensamento. Numa acepção muito peculiar, porém: importa que estejam “saturadas” com motivações regulares mediante conteúdos dinamizados por “impulsões”. É nesses termos que ele se refere às “impulsões igualitárias e de defesa de um estilo democrático de vida” e atribui à democracia um “estado de equidade social que confere a cada cidadão o dever de solidariedade para com os demais e o direito de exprimir essa solidariedade de acordo com as determinações de sua própria consciência cívica”. E é no mesmo espírito que ele enuncia uma intuição básica, ao tratar da revolução burguesa. À democracia, sustenta ele, para além de ser exigência básica daquela revolução compete também servir-lhe de “freio”, pois, deixada só e sem peias, ela tende a reproduzir e mesmo ampliar as distorções e iniquidades da sociedade de cunho tradicional. Curiosa formulação, que o coloca nas cercanias da teoria crítica da sociedade, pela qual jamais manifestou simpatia (Florestan e Walter Benjamin, eis dupla difícil de imaginar); mas de novo o aproxima da concepção “civilizadora” do desenvolvimento e da democracia que aqui importa frisar. Cabe aqui retomar tema já evocado com referência a Francisco de Oliveira, em que desponta um aspecto pouco saliente e, contudo, dos mais característicos do pensamento de índole plebeia de Florestan. É que ele, embora não usasse o termo que aqui se usa e talvez nem se desse conta disso, pensava a democracia e, mais fundo, o estilo de vida democrático em exata contraposição àquilo que intuía ser o caráter de grande parte da conduta corrente na sociedade brasileira. Pois muito do que nela se apresenta como conduta democrática em estado puro não passa daquilo que aqui vem sendo denominado democracia senhorial, igualdade “para inglês ver”, retomada contínua do jogo de faz de conta que permeia a sociedade, pálido verniz que não resiste ao menor atrito.

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