Em 2021, enquanto estava trabalhando na pesquisa para o livro de Rogério Sganzerla para a coleção Cadernos de Cinema, me deparei com uma matéria, publicada na revista Manchete, em que se contava o encontro, nos anos 1990, entre o cineasta e João Acácio, o mítico Bandido da Luz Vermelha que foi tema do longa-metragem de estreia de Sganzerla, em 1968, considerado um dos grandes clássicos do cinema brasileiro. Era uma preciosidade! Reproduzo aqui o trecho do meu ensaio no livro, que narra esse encontro entre um dos mais geniais cineastas que já tivemos e o homem que o inspirou na sua obra maior. [Sergio Cohn]
Naquela década de 1990, Sganzerla já havia realizado três curtas ou média-metragens: Anônimo e Incomum, sobre o artista visual Antonio Manuel (contemporâneo que possui paralelos com o cineasta, como na sua série “Clandestinas”, onde se utiliza de manchetes paródicas e imaginárias para serem inseridas em jornais, como “Chupava sangue dando gargalhadas”), Isto é Noel, novamente sobre Noel Rosa, em parceria com o montador Silvio Rinoldi (o mesmo do “Bandido da Luz Vermelha”), e Perigo Negro, baseado num roteiro de Oswald de Andrade, publicado na Revista do Brasileiro, em 1938, e extraído do romance Marco Zero, uma ficção filmada em tom mais clássico, que retrata a ascensão e queda de um jogador de futebol vistas por um torcedor fanático e sua mulher volúvel, deslumbrada pelo “cartola” Moscosão, que liquida com a carreira do craque.
Foi também um período de reencontros. Em 1994, Rogério foi convidado pela revista Manchete para visitar João Acácio, o Bandido da Luz Vermelha, na prisão, acompanhado do jornalista Celso Arnaldo Araújo. Assim Celso narrou o encontro:
Ele chega para o encontro, na galeria que dá acesso ao Pavilhão 1 da Penitenciária do Carandiru, com o rosto fechado e desconfiado – bem gênero bandido irrecuperável. Mas se amolece logo. Lembra-se de meu nome e sobrenome, oito anos depois de outra entrevista, e, é claro, sabe que Sganzerla é o diretor de seu filme. Começa a falar compulsivamente – as palavras saem em jorro, aos borbotões, misturando religiosidade com elucubrações sobre o poder. É difícil trazê-lo para a realidade, sobretudo para a realidade da gênese do bandido, 27 anos atrás. O lenço no rosto? Quando criança, era frequentador das matinês dos seriados de heróis mascarados, como Durango Kid, Capitão Marvel, Zorro. “Como Capitão Marvel, tive que destruir o Exército num filme.” É apenas um dos múltiplos enredos que, imaginariamente, Acácio roteiriza, filma e exibe. Rogério ainda tenta dirigi-lo: “Fala mais devagar, não mistura Deus com essas coisas”. Em vão. A mente cinematográfica de João Acácio é tão fértil e prolixa quanto um estúdio de Hong Kong, que faz fitas em linha de montagem. Às vezes, empolga a audiência. A descrição que faz de seu primeiro assassinato é primorosa. “É uma sequência completa de cinema já pronta para filmar” – diria Rogério mais tarde. Imaginem a cena: o filho da dona de casa que ele estava prestes a assaltar sai à janela, assustado com o barulho, mira sua espingardinha de chumbo e erra o alvo. Acácio retruca e acerta. Ouve as sirenes da política. De terno e descalço, sai andando calmamente, como se fosse um executivo do bairro, e cantarolando Roberto Carlos. A viatura passa por ele, diminui a marcha, mas segue adiante – metros depois há uma mãe desesperada, chorando a morte do filho. A esta altura, Acácio – já transformado em Bandido da Luz Vermelha – está longe. Tão distante quanto hoje, 27 anos depois, quando esse homem de 51 anos só tem mais três a cumprir numa cela toda forrada com embalagens de chocolate. Daria um Bandido da Luz Vermelha II? “Só dá” – suspira Rogério. Taí uma ideia para levantar o combalido cinema nacional.
O longo artigo de Sganzerla sobre o encontro com o legendário Bandido, publicado em 15 de janeiro de 1994, é também uma celebração da marginalidade, em resposta à corrupção sistêmica do país:
Procura-se vivo um mítico mitômano e monomaníaco personagem de nossos tempos, aquele que foi, continua sendo e será sempre o Luz Vermelha, personagem de nossos temíveis tempos.
Um nome de guerra que ecoou em todas as bocas, da boca do luxo ao lixão, assim como na boca de fuzil e metralhadora.
Nunca a fama corresponde inteiramente à verdade.
O Brasil mudou ou mudou o bandido?
Quem seria aquele Arsène Lupin dos pobres? Robin Hood ou o Zorro nacional? Sempre com a Bíblia ao alcance da mão, esse ser delituoso que passou mais da metade de sua vida na cadeia lembra a saga mística de Antônio Conselheiro e Lampião, pois não passa de um anti-herói da pilantrópica cleptocracia tropical.
A princípio altivo e ensimesmado, ao ouvir a palavra Manchete perde a máscara e se revela cordial e até afável. O “facies” acablocado lembra Mick Jagger e mesmo o ator Paulo Villaça que o reviveu no filme policialesco, dirigido por mim, narrado por um comentarista esportivo nos idos de 1968. Típico representante de uma geração de pés no chão, prestes a cumprir a pena máxima vigente no país, como todos nós tem dois lados. Um lado a gente conhece. O outro, só Deus sabe. Sobre seus crimes, nem é bom falar. Seria como mentir a Deus, de que adianta?
Há uma vaidade escondida no coração do Luz que não cansa de lutar contra o seu passado, pois quando ele agia na megalópolis, os valentes iam dormir mais cedo e as mulheres mais tarde… Só está vivo porque sofreu mais que o suficiente devido a um curto-circuito cerebral. O seu drama é infinito, como os Miseráveis, de Victor Hugo:
“– Eu vivi a revolução do cinema nacional praticada com poderes divinos e não somente através dos magnatas do cinema barato. Destruí o mundo das aparências e tornei-me o Deus do cinema.”
Depois de 27 anos, fomos encontrá-la frente a frente, depois de atravessar os subterrâneos do complexo Carandiru, onde até os carcereiros o respeitam e reconhecem a fama. Mas quanta mocidade dispersa, quanta ilusão à toa! Todos os presos de seu tempo já estão na rua, mas sua pena se estende até 15 de março de 2319. Só sairá pela compulsória dos 30 anos. Tem uma teoria: o germe do crime está na rua, onde quem não tem dinheiro no bolso não é considerado gente, pois há dois códigos nesta terra. O civil para os ricos e o código penal para os pobres… Viver é aprender a pensar, e se morrer é descansar, eu simplesmente prefiro morrer cansado!
O sotaque carregado desse caboclo sulista, jogado em plena selva de concreto, denuncia o seu evangelho que às vezes parece uma zorra. Caso médico, jurídico ou social? O Luz Vermelha não é anti-social, mas a-social, e quando solta o verbo não pára mais, a exemplo do filme policial que eu dirigi, que se mantém cada vez mais atual. O excesso de informações torna-o enigmático, se não hermético, para quem não conhece o seu jeito acaboclado.
Mas ele tem palavra, reconhecem os policiais, embora não tenha muita coisa a salvar dentro ou fora da prisão. Ou mesmo do terceiro imundo, onde tudo é ilegal e a saída mais próxima é o crime ou o aeroporto.
A tarde foi curta para tudo o que ele contou como inimigo da tranquilidade humana. O jogo de sublimações, identificações de contrários, os ricos contrastes e o excesso de ideias parecem confiná-lo à condição de monomaníaco, disposto a aceitar somente as suas próprias leis! Seu coquetel explosivo relacionou totens com fetiches — as famosas coleções de calcinhas, a mania pelas rosas vermelhas, os cabos de madrepérola de seu saudoso 38, assim como castigo divino, a calhordice dos bajuladores, advogados de porta de delegacia, a imutável estupidez humana, miséria com m minúsculo, a bagunça institucionalizada e a impiedosa corporação que o torturou, deixando traços indeléveis.
Afora isso, tem boa memória e confessa ter sentido muito medo, sem transparecê-lo quando perseguido pela polícia, escapando quase sempre graças à sua famosa cara-de-pau. O ex-galã do crime mais hediondo (o estupro) percorreu esse caminho sem volta com asseio e ainda fez questão de trocar de roupa para ser fixado na sua revista predileta. A única pergunta a que não soube responder com desenvoltura foi minha indagação: por que penteia seus cabelos para a frente?
“Sempre fui assim mesmo e se causar repulsa ao mundo, onde minhas músicas e enredos fazem sucesso, não vou reclamar, pois também não tolero a burrice engravatada, trajada e penteada segundo o figurino do almanaque Capivarol!”
Ele é assim, imprevisível. Provavelmente, só o cinema criminal da grande fase norte-americana poderia explicar ou a imagem invertida de um espelho cinematográfico de um Brasil conflituado entre suas duas partes antagônicas. O Luz é como o nó da madeira que explode na fogueira, deixando-nos atordoados com tantas verdades definitivas sobre a nossa responsabilidade.
De bandidão gentil a rapaz cristão, não se pode nem compará-lo (ou pôr na mesma sala de reconhecimento criminal) com os exemplos vindos de cima, seja a urtiga danosa e o joio parasita dos nossos políticos de papel-machê. Diante da realidade dos anões e outros homúnculos éticos, parece um gigante físico e espiritual, uma reserva ética e um titular moral que só encontra ressonância na profundidade de Conselheiro ou na indignação de Lampião — nervos expostos e contrariados pelo clima de impunidade que fazem tremer todas as lógicas, mas não os dogmas. Se quiserem saber quem é o maior bandido vivo do Brasil, o próprio Luz é fichinha e não paga nem placê.
Em 1997, depois de cumprir 30 anos de prisão, a pena máxima brasileira, João Acácio foi solto. Poucos meses depois, é assassinado em uma briga de bar, na sua cidade natal, no Paraná. Mas a trajetória de Sganzerla e Acácio continuaria entrelaçada pelos anos seguintes: em 2001, o cineasta, novamente em parceria com Silvio Rinoldi, realiza um curta-metragem, B2, com trechos inéditos do filme original, além de uma performance da época de Gal Costa, acompanhada por Jards Macalé e Lanny Gordin e tocando a canção “Eu Sou Terrível”, de Roberto e Erasmo Carlos. Sganzerla escreveu também o roteiro de Luz nas Trevas, que seria dirigido em 2010 por Helena Ignez, em parceria com Ícaro Martins e trazendo o cantor Ney Matogrosso no papel de um Bandido da Luz Vermelha já maduro, que sai da prisão 30 anos depois para encontrar o seu filho. O filme é uma bem-sucedida homenagem ao clássico de Sganzerla.